Fernando PessoaPessoa sempre afirmou ser um neurastênico (categoria muito difundida hoje em dia), sendo, além disso – eis seu diferencial – capaz de criar uma personalidade para cada sentimento que lhe acometesse: “Dar a cada emoção uma personalidade, a cada estado de alma uma alma”, escreveu. Daí seus heterônimos. Mas a lucidez, não sendo uma emoção, mas um “enxergar apesar de toda emoção”, não era uma prerrogativa do, digamos, Álvaro de Campos. Bernardo Soares era, como “outros Pessoas”, muito lúcido também. Veja como ele possuía, na primeira metade do século vinte, a clara noção do estado de coisas que se prolonga até os nossos dias:

Quando nasceu a geração, a que pertenço, encontrou o mundo desprovido de apoios para quem tivesse cérebro, e ao mesmo tempo coração. O trabalho destrutivo das gerações anteriores fizera que o mundo, para o qual nascemos, não tivesse segurança que nos dar na ordem religiosa, esteio que nos dar na ordem moral, tranqüilidade que nos dar na ordem política. Nascemos já em plena angústia metafísica, em plena angústia moral, em pleno desassossego político. Ébrias das fórmulas externas, dos meros processos da razão e da ciência, as gerações, que nos precederam, aluíram todos os fundamentos da fé cristã, porque a sua crítica bíblica, subindo de crítica dos textos a crítica mitológica, reduziu os evangelhos e a anterior hierografia dos judeus a um amontoado incerto de mitos, de legendas e de mera literatura; e a sua crítica científica gradualmente apontou os erros, as ingenuidades selvagens da “ciência” primitiva dos evangelhos; e, ao mesmo tempo, a liberdade de discussão, que pôs em praça todos os problemas metafísicos, arrastou com eles os problemas religiosos onde fossem da metafísica. Ébrias de uma coisa incerta, a que chamaram “positividade”, essas gerações criticaram toda a moral, esquadrinharam todas as regras de viver, e, de tal choque de doutrinas, só ficou a certeza de nenhuma, e a dor de não haver essa certeza. Uma sociedade assim indisciplinada nos seus fundamentos culturais não podia, evidentemente, ser senão vítima, na política, dessa indisciplina; e assim foi que acordamos para um mundo ávido de novidades sociais, e com alegria ia à conquista de uma liberdade que não sabia o que era, de um processo que nunca definira.

Mas o criticismo frustro dos nossos pais, se nos legou a impossibilidade de ser cristãos, não nos legou o contentamento com que a tivéssemos; se nos legou a descrença nas fórmulas morais estabelecidas, não nos legou à indiferença à moral e às regras de viver humanamente; se deixou incerto o problema político, não deixou indiferente o nosso espírito a como esse problema se resolvesse. Nossos pais destruíram contentemente porque viviam em uma época que tinha ainda reflexos da solidez do passado. Era aquilo mesmo que eles destruíam, que dava força à sociedade, para que pudessem destruir sem sentir o edifício rachar-se. Nós herdamos a destruição e os seus resultados.

Na vida de hoje, o mundo só pertence aos estúpidos, aos insensíveis e aos agitados. O direito a viver e a triunfar conquista-se hoje quase pelos mesmos processos, por que se conquista o internamento num manicômio: a incapacidade de pensar, a amoralidade, e a hiperexcitação.

(…)

Sem ilusões, vivemos apenas do sonho, que é a ilusão de quem não pode ter ilusões. Vivendo de nós próprios, diminuimo-nos, porque o homem completo é o homem que se ignora. Sem fé, não temos esperança, e sem esperança não temos propriamente vida. Não tendo uma idéia do futuro, também não temos uma idéia de hoje, porque o hoje, para o homem de ação, não é senão um prólogo do futuro. A energia para lutar nasceu morta conosco, porque nós nascemos sem o entusiasmo da luta.

Acredito que muita gente julgaria ser esta posição, menos estóica que desesperada, exatamente a mesma de Fernando Pessoa. “Estamos fodidos e mal pagos aqui nesse mundo sem sentido, logo, fazer o quê?, vamos morto-vivendo…” Mas, para ele, viver não era preciso, criar era. E, por isso, identificar de forma absoluta tal análise como sendo a do próprio Fernando Pessoa seria um equívoco. Se ele, a momentos, sentia-se realmente assim, em outros era capaz de escrever coisas do tipo:

A alma é divina e a obra é imperfeita.
Este padrão signala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

Ou ainda:

Que importa o areal e a morte e a desventura
Se com Deus me guardei?

Alguns poderiam dizer que estes poemas, do livro Mensagem, seriam, como tantos outros, apenas obra de um dos estados d’alma do poeta. Mas por que então foi este, além de Antinuous e 35 Sonnets, não somente um dos únicos livros publicados em vida, mas também um dos três únicos assinados por “Fernando Pessoa”? Isso me leva a crer que os poemas de Mensagem participam do estado d’alma mais constante do poeta, isto é, do estado subjacente a todos os demais: a fé. Embora tenha sido dono de algumas das vozes mais expressivas de seu tempo, embora tenha compreendido plenamente a alma órfã dos modernos, Fernando Pessoa, ele mesmo, o astrólogo, o sensacionista, o tradutor dos temerários teosofistas, foi um antepassado de si mesmo, ou seja, um homem com os pés bem fixos na Eternidade.

[Ouvindo: Monkey gone to heaven – Pixies ]