Tudo bem. O cemitério Père-Lachaise possui os “indícios” de Apollinaire, Balzac, Sarah Bernhardt, Chopin, Delacroix, Saint-Hilaire, Ingres, Kardec, la Fontaine, Méliès, Molière, Édith Piaf, Oscar Wilde, Proust, Pissarro, Yves Montand, Jim Morrison, Rossini, etc. e tal — até Abelardo e Heloísa estão ali, imagine — mas… mas… ele, o Père Lachaise, está morrendo de inveja do cemitério da Consolação, sim, o cemitério paulistano. Simplesmente porque este o impediu de abrilhantar ainda mais sua coleção de figurinhas fúnebres. Talvez seja porque o dono do defunto em questão, isto é, o espírito que o habitou, tenha combatido a influência opressiva da cultura francesa nas letras e nas artes brasileiras do princípio do século XX. Claro, também ele bebeu dela, mas sabia que a monotonia francesa enfraquecia nossa expressão. Quem é a figurinha que o Père-Lachaise perdeu? Ora, quem…

Fui ao Cemitério da Consolação pela primeira vez, creio, no carnaval de 1998. Eu acabara de chegar duma viagem que fizera a São Tomé das Letras com M.C., minha então namorada, e, naquela manhã de carnaval, acordei com a figura novamente arrumando as malas.

“Onde a gente vai agora?”, perguntei.

“A gente não – eu!”. Fiquei aliviado. Eu, tão escorpiano quanto ela, também estava intoxicado com a relação. Muitas risadas, muito papo, muito prazer, mas, claro, ferroadas em excesso. Só havia um problema: estávamos no apartamento dela e eu não estava nem um pouquinho interessado em sair da cama. Deixar o apartamento e voltar para minha casa naquela hora então? Nem pensar.

“Eu vou pra Serra do Caparaó”, disse ela. “Você pode ficar aqui se quiser. Vou deixar a chave. Se trouxer alguém aqui, por favor, não deixe vestígios.”

Trocamos um beijo e ela saiu. Voltei a dormir. Mais tarde, já de pé, fui à janela: o que poderia fazer sozinho em São Paulo numa manhã de carnaval? Depois da viagem, eu queria tudo, menos badalação. Vi então, logo adiante, os ciprestes do Cemitério da Consolação. Pensei: dizem que São Paulo é o túmulo do samba. Bom, vou verificar… e saí. Circulei por quase duas horas ali dentro. Mil ex-presidentes, políticos ilustres, ricaços tradicionais, gente de livro de história. Parei, pois, para descansar nessa caixa de mármore: Monteiro Lobato 18/04/1882 – 04/07/1948. Fiquei um bom tempo ali, matutando. Eu não sabia que o cara havia deixado a “roupa” em São Paulo. Pensei que fosse em Taubaté ou algo assim. Lembrei então da primeira escola em que estudei: Jardim Escola Visconde de Sabugosa. Quando criança, eu sentia orgulho de estudar numa escola homônima de um dos personagens do Sítio do Picapau Amarelo. Lembrei dos livros, claro. Graças ao anjo do filme “A felicidade não se compra” (Frank Capra), anjo este que fala sobre o mais recente livro de Mark Twain escrito “lá em cima”, fiquei imaginando: o que o cara não estará escrevendo agora? Ao contrário dos demais “mortos”, que faziam parte da história do país ou de São Paulo, aquele cara fazia parte da minha história. Foi um ótimo primeiro dia de Carnaval…
Eu no túmulo do Monteiro Lobato 1882-1948
Esta semana, voltei ao local. Passei dois meses lendo vários livros do sujeito, precisava ir até ali prestar minhas homenagens. Agora eu tinha um novo Monteiro Lobato em mente. Era não o autor infantil, mas o autor de “Miscelânea”, “America”, “Negrinha”, “Na antevéspera”, “Onda verde”, “Mundo da Lua”, “Prefácios e entrevistas”, “Problema vital”, “A barca de Gleyre”, “Mister Slang e o Brasil”, “O escândalo do Petróleo e do Ferro”, “Urupês” e “Idéias de Jeca Tatu”. Alguns destes livros deveriam ser obrigatórios em todas as escolas. Atualíssimos. Reveladores da nossa história, do nosso país, desse grande vulto, Monteiro Lobato – um desses escritores com quem agora me sinto irmanado. Aliás, um cara a ser emulado, posto que se esforçou tanto pela Arte e por esse país de Jecas… Fiquei feliz por ver tantas flores sobre seu túmulo. Morra de inveja, Père-Lachaise.