Eu não tenho dúvida de que aprender a julgar as pessoas com base em seus atos, e não em suas idéias, é um dos grandes desafios que todos nós temos. Possuímos toda uma retórica sobre a importância e o valor da democracia, mas, infelizmente, e aqui me incluo, somos virtualmente incapazes de verdadeiro respeito pelas opiniões e preferências das pessoas. Julgamos e condenamos, muitas vezes perpetuamente, com base em duas palavras e, pior, mas nessa não me incluo, volta e meia estamos prontos a querer calar o outro, cerceá-lo em suas idéias.
É muito difícil manter uma postura realmente aberta e de genuína curiosidade diante das pessoas e do mundo porque isso pressupõe, em alguma medida, manter sempre em questão nossos valores e nossas próprias idéias, o que dá um medão. Mas é um trabalho que vale à pena. Aliás, talvez o único que realmente o valha porque fora dele é pura perdição. Não é à toa que nosso mundo ande tão mal das pernas, eternamente de TPM.
Yuri é, de longe, das pessoas que conheço, a mais próxima dessa capacidade. Se tem preconceitos e se julga a priori, ele disfarça bem. Além disso, é dos que mais me ensina sempre sobre esse respeito integral pelo outro porque eu o conheço em seus atos e sei que é um camarada pra lá de generoso, um verdadeiro amigo, mas eu acho muitas de suas idéias pra lá de enviesadas.
Tudo isso porque eu quero iniciar um debate com o bom calor, calor generoso, e não com aquele calor enfezado. E isso se deve, primeiro, aos motivos expostos acima e, em segundo lugar, ao fato de que, no assunto levantado pelo Paulo ali embaixo sob o título “Anarco Liberalismo” mora uma série de discordâncias entre nós, mas talvez um chão comum muito mais amplo, uma série de concordâncias bem maior do que pensamos. Só que, volta e meia, nós nos detemos no que nos desune – se é que há – por pura ranhetice, vontade de sair por cima ou sei lá o quê.
Meu caro, Paulo, o velho Edgard Leuenroth , que Deus o tenha, embora ele não acreditasse n’Ele, deve rolar no túmulo ao escutar um camarada como David D. Friedman se auto-denominando “libertário”. Ou não, afinal aqueles tempos eram outros e todo esse papo sobre liberalismo ainda estava longe de voltar à moda, de encantar tanta gente e causar os arrepios mais profundos em outro tantos.
Seu Edgard foi um dos grandes líderes anarquistas do início do século no Brasil, e já gritava contra Stalin, a URSS e os comunistas em geral muito antes que os capitalistas se dessem conta que algo fervia do outro lado do Danúbio.
Os anarquistas “verdadeiros” – aliás, essa necessidade de adjetivar o termo é sinal de que o conceito perdeu sua heurística! Certo, Daniel? – ou “originais”, inspirados nas idéias de Kropotkin e Bakunin sobretudo, viam no Estado e na propriedade privada os grandes inimigos da liberdade e da plenitude humanas e lutavam portanto por sua abolição.
Entendiam que um dos grandes problemas do mundo estava no fato de os indivíduos se guiarem pela competição, vendo nos outros “concorrentes” ou “inimigos” e, por isso, criam na cooperação e na solidariedade como os princípios essenciais para a criação da sociedade ideal. Pregavam e praticavam a organização da sociedade por meio de associações livres e federações de associações de produtores e consumidores (epa!).
Por fim, declaravam “Guerra a todos os preconceitos religiosos e a todas as mentiras , mesmo que se ocultem sob o manto da Ciência. (…). Abolição das Fronteiras, confraternização de todos os povos. Libertação da família de todas as peias, de tal modo que ela resulte da prática do amor, livre de toda a influência estatal ou religiosa e da opressão econômica ou física.”
Os trechos entre aspas são de Errico Malatesta, outro célebre anarquista, reproduzido em “Anarquismo, Roteiro da Libertação Social”, do velho Leuenroth.
Esses caras, no começo do século, eram fodas. Quase ninguém sabe, mas eles pararam São Paulo mais de uma vez com grandes greves na década de 1910 e, mais importante que isso, se esforçavam ao máximo para praticar suas idéias. Os sindicatos de orientação anarquista na época, por exemplo, não tinham organização hierárquica. Eram integralmente regidos por comissões.
Meu pai teve o privilégio de conhecer Edgard trabalhando n’O Estado de S. Paulo como arquivista. Certa vez, o velho Júlio Mesquita chamou-o para lhe dar a notícia de que precisavam ampliar o arquivo e que, para isso, estava contratando assistentes e designando a ele Chefe do Arquivo. Muito humildemente, seu Edgard se desculpou e pediu demissão, pois se recusava a chefiar pessoas.
Muito bem. Feita a homenagem, o que difere os libertários – os verdadeiros, hem, Paulo… – de um libertário como nosso David D. Friedman?
Básica e obviamente uma coisa: a visão da propriedade privada. E, básica e um pouco menos obviamente, a visão a respeito do ser humano.
Enquanto Bakunin, Kropotkin e seu Edgard acreditavam na viabilidadde da cooperação como pedra basilar da sociedade, Friedman não descarta sua utilidade instrumental (que se ressalte aqui o instrumental), mas entende que o ser humano é inerentemente hedonista e que todos nos orientamos segundo equações visando a maximização de nossa “utilidade individual”, para usar o jargão ao gosto dos economistas, ou, em termos mais evidentes, de nossos desejos individuais. O resultado é que, para Friedman e para a Teoria Econômica, a competição entre os indivíduos é algo natural e inelutável. Mas, entendem eles, isso não é de todo mau, pois, se nada atrapalhar, dessa competição milagrosamente resultará o bem coletivo.
Eu não vou entrar aqui numa digressão em relação às cisões que marcam nossa visão de mundo, especialmente essa que leva a uma oposição entre sujeito e sociedade, que é de especial interesse para essa discussão, porque se não isso vira um tratado e todo o mundo, menos o Daniel, talvez, se entedia. Quero me ater aos aspectos empíricos e às conseqüências e possibilidades práticas das duas visões para ver se chegamos a algum lugar.
São duas compreensões com dois aspectos comuns: abominam o Estado e, interessante, ambas acham que os homens podem se haver muito bem sozinhos a partir de suas possibilidades de produção e necessidades de consumo. Depois divergem e depois eu continuo.
Mas talvez já possamos chegar a uma primeira conclusão: somos todos libertários.
paulo paiva
Caro Pedro,
Meu post seguinte ilustra perfeitamente meu ponto de vista. A sociedade pode resolver seus problemas sem a necessidade de um governo! Mas há de haver a propriedade privada, de terra, de dinheiro, de roupas, de qq coisa, senão, para que se esforçar? Para que criar? Você tem o sonho totalistarista de um mundo composto somente por filósofos, que não ligam para o mundo material? É a moral que impede o homem de se matar, o capitalismo é só a ferramenta de produção! Todas as experiências de eliminação da propriedade privada resultaram em aumento da miséria, isto é claro. O anarco liberalismo é o que há de mais revolucionário nas idéias, o resto é reciclagem…