Era final de tarde e o sol se punha lento e sanguíneo na borda da árida planície. Sua luz, difundida pela densa carga de poeira no ar – era setembro e não chovia há meses –, tingia de vermelho o remanso preguiçoso do Velho Chico.

Domingos, acocorado atrás de um grande cupinzeiro, com o trapo amarelado de blusa que cobria seu tronco empapado de suor, fumava e esperava ansioso que Josina aparecesse. Pelos rasgos do tecido, entreviam-se as quelóides de anos de sovas no pelourinho. O feitor era homem de intuição forte, trabalhara nas Minas Gerais, comandando manadas de escravos que se contavam aos milhares, e conhecia melhor que ninguém um negro rebelde. Sabia que Domingos tentaria fugir, mais hora menos hora, e não se cansava de amarrá-lo ao tronco e chicoteá-lo por qualquer motivo.

A decadência dos currais do São Francisco e o número cada vez menor de escravos só pareciam agravar o ódio gutural que sentiam pelos negros o ausente Dom Luiz Mascarenhas, capitão-mor agraciado com aquela sesmaria, e o feitor, conhecido entre os escravos como o “cafombe vimbundo”, que, no dialeto banto aportuguesado em que se comunicavam as mulheres e homens de várias origens africanas na senzala, queria dizer “homem branco, homem preto”, em referência às roupas sempre escuras que usava.

O raquítico milharal estalou assustando Domingos. Ele se pôs na ponta dos pés, pronto à carreira desabalada no rumo da Catinga, mas era Josina, cujos brancos olhos arregalados saltavam da cara escura.

Ele apagou o pito.

“O Cumbe já tá cuendando!”, resmungou ele sussurradamente, apontando para o horizonte vermelho.

Josina só abaixava os olhos. Ele arrancou-lhe o embornal que trazia embaixo do braço.

“Dá cá o injequê!”

“Obicangua do pepa, obicangua do avero”, conferiu seu conteúdo – um queijo, um pão – e sorriu satisfeito. Ela sorriu de volta.

Domingos levou um dedo aos lábios, olhando para a mulher, verificou mais uma vez os arredores com os olhos bem abertos e, ainda acocorado e seguido de perto por Josina, começou a caminhar em direção ao Rio São Francisco. Tinham entre o final do dia e o começo da noite, quando o feitor faria a contagem dos escravos antes de trancá-los na senzala, para ganhar distância suficiente e uma promessa ainda longínqua de liberdade.

Ao cruzarem a proteção da barranca seca que marcava as cheias monstruosas de tempos que não haviam conhecido, os dois começaram a correr como nunca o tinham feito. Solitários, ambos sentiam um enorme e desconhecido pavor, o que, tempos depois, na segurança do Kalunga, faria Domingos refletir. Afinal de contas, àquela altura, há muito já deixara de ter medo do que quer que fosse, afinal não tinha nada a perder. Já sofrera os piores castigos, seu único filho até então morrera de doença, e a morte já não temia, pois tinha a segurança de que o lado de lá deveria certamente ser melhor que a brutalidade do de cá. Mas, se era assim, porque sentira tanto pavor naquela fuga? Pavor que se converteria depois, já escondidos do mundo no quilombo, numa eterna apreensão, como se algum mal enorme estivesse sempre prestes a desabar? Entendeu que esse medo, que começou já ali, antes mesmo de cruzarem o grande rio, ganhava vida porque a liberdade finalmente parecia tangível. E isso já era ter alguma coisa.

De uma pequena grota camuflada pelos umbuzeiros, Domingos puxou uma pequena e precária jangada construída de várias madeiras e amarrada com cordas de buriti. Com uma vara comprida de bambu, corações disparados, os dois lançaram-se àquelas águas turvas. Josina encolhida, cabeça entre os joelhos, Domingos agachado, cutucando o fundo lamacento e impulsionando sua duvidosa embarcação rumo à margem oeste.

A poucos metros do fim, a fraca corrente foi suficiente para virar-lhes o barco. Josina teve certeza da morte iminente e lamentou a perda de uma liberdade que ainda não tinha. No último instante, entretanto, o braço forte do marido a agarrou com um tranco e os dois, em meio a um desesperado nado, conseguiram ganhar a planície seca do oeste baiano. Perderam apenas o pão e o queijo para a longa caminhada.

Em meio à corrida, tropeçando em cipós e se arranhando nas unhas de gato, ouviram, já distantes, os tiros que o feitor disparava, e imaginaram escutar-lhe os gritos de ódio e o ladrar da matilha de cães em seu encalço. Não dormiram. Apenas descansavam ofegantes, encostados um ao outro, o suficiente para uma nova carreira desabalada pelo mato.

Cruzaram com muita sede a chapada baiana, desceram aos tombos a Serra Geral de Goiás e toparam finalmente com gigantescos buracos abertos na rocha, onde se esconderam e pensaram em ficar. Mas não, a conversa silenciosa na senzala falava de outras serras, mais adiante e mais altas, verdadeiras muralhas perdidas do lado de lá do primeiro rio grande de águas claras depois da serra, depois da planície.

Seguiram o rumo imaginado da terra prometida, sempre evitando todo sinal de presença humana, e acompanharam outro rio que descia para o oeste. Dezesseis dias depois daquela tarde quente na barranca do São Francisco, fracos e famintos, mas exultantes, esbarraram no Rio Paranã e tiveram a certeza de que aquilo que se sussurrava na senzala não eram delírios de gente ensandecida pelo chicote, pelas correntes e pelo banzo. Do lado de lá, erguiam-se grandes serras, de onde, tinham quase certeza, soava um canto contido, mas alegre, de gente livre.

O Kalunga é o maior remanescente de quilombo do Brasil. São cerca de cinco mil descendentes de escravos escondidos nas serras mais distantes do sertão da Chapada dos Veadeiros, nordeste do Estado de Goiás, entre os municípios de Cavalcante, Monte Alegre e Teresina de Goiás.

Entre os dias 23 e 26 deste mês, eu e dois amigos fizemos um belíssimo trekking pela terra dessa gente simples, pobre e calorosa. O relato completo pode ser lido no Nomad ou no Multiply. Também no Multiply, há um álbum com nossas fotos da travessia realizada.