Vale à pena reproduzir aqui artigo de hoje, na Folha, do Cláudio Weber Abramo, diretor-executivo da Transparência Brasil. Aliás, o Cláudio tem também um blog que é de acompanhamento obrigatório.

Acham que somos idiotas?

CLAUDIO WEBER ABRAMO

A entrevista que o ex-deputado Roberto Jefferson concedeu à revista “Carta Capital” há alguns dias traz um trecho que merece atenção mais detida. A horas tantas, disse o sr. Roberto Jefferson o seguinte: “Eu quero deixar claro que o recurso [o caixa clandestino de Furnas] não sai do caixa da empresa. Isso é da relação com as empresas que fornecem serviços à empresa. É assim em todas as estatais. Por isso os partidos se digladiam pelas nomeações. Sempre foi assim”.

O expediente de dizer que o dinheiro escuso “não saiu dos cofres públicos”, mas do cofre-dois de empresas, tem sido muito utilizado pelos “mensaleiros”. Isso é, na verdade, trivial. É evidente, ou deveria ser, que propinas nunca saem diretamente do caixa do Estado, em cheque nominal para o bolso do sujeito que capta a grana. Não há nos lançamentos contábeis de Furnas, dos Correios e do resto das estatais, ministérios, secretarias e autarquias, sejam federais, estaduais ou municipais, administradas por qualquer partido que seja, entradas identificadas como “Pagamento de propina ao deputado Fulano”.

O que está escrito é “Pagamento à empresa fornecedora Sicrana”, devido pela execução do contrato X, conquistado na licitação número Y. Ocorre que a licitação de número Y foi direcionada para a empresa Sicrana, a qual praticou preço superfaturado -no mínimo, no montante correspondente ao suborno cobrado como contrapartida do direcionamento. É esse suborno que, seja diretamente, seja na forma de contribuição a um “fundo” (como se alega no caso de Furnas), é pago ao receptor final.

O dinheiro do suborno sai, sim, dos cofres da estatal, na forma do superfaturamento, refletindo-se, no caso de Furnas, no custo da energia elétrica (e em menor capacidade de investimento e menor distribuição de dividendos aos acionistas, pois Furnas é uma sociedade anônima), o qual aparece direitinho na conta de luz que pagamos no final de todos os meses.
Ao tecer essa história para boi dormir de que dinheiros ilícitos não saem dos cofres públicos, Roberto Jefferson e o resto dos “mensaleiros” demonstram acreditar que sejamos todos idiotas.

Querem fazer crer que corrupção é alguma coisa que acontece por meio da criação miraculosa de dinheiro, sem prejuízo para os cofres públicos e sem que arquemos todos com ela.

Além do ex-deputado Roberto Jefferson, têm se esmerado no tecido dessa conversinha fiada os srs. Marcos Valério e Delúbio Soares, entre outros mais e menos notórios.

A crer no que afirmam, dinheiro de suborno criar-se-ia como na fábula da multiplicação dos pães ou, então, apareceria pela benemerência de empresas privadas desinteressadas em seu benefício próprio e dedicadas à distribuição anônima de benesses a políticos.

O que as investigações em torno do escândalo dos Correios/”mensalão” e suas possíveis extensões para o passado estão deixando de fazer é mostrar com a ênfase necessária que, se dinheiro escuso apareceu no bolso dos mensaleiros, então foi gerado, na extremidade de origem, por algum mecanismo de favorecimento. Foram empresas específicas que alimentaram não só o valerioduto como outros dutos presumidos ou suspeitados. Essas empresas venceram licitações fraudadas, receberam benefícios fiscais de algum tipo, tiveram pleitos de natureza estratégica atendidos pelas quadrilhas partidárias instaladas no aparelho de Estado.

Um dos principais motivos pelos quais esses esquemas industrializados de captação de propinas florescem historicamente no Brasil -nas três esferas e operados por todos os partidos- é o fato de se permitir que os governantes, no agregado geral, nomeiem dezenas de milhares de pessoas para ocupar os chamados cargos de confiança. Como podem nomear, presidentes da República, governadores e prefeitos negociam tais cargos com partidos em troca de apoios parlamentares. Quem ocupa os cargos monta as quadrilhas. Conforme aponta o sr. Roberto Jefferson: “Por isso os partidos se digladiam pelas nomeações. Sempre foi assim”.

É possível fazer com que deixe de ser assim, mas para isso não basta cassar parlamentares e indiciar suspeitos -embora, é claro, isso tenha de ser feito. Para romper esse círculo infernal de picaretagem institucionalizada, é imprescindível promulgar legislação que coíba drasticamente a capacidade de nomear, nas três esferas e nos três Poderes. Se da CPMI dos Correios resultar essa única recomendação, ela terá cumprido seu papel. Se não o fizer, os meses de crise terão sido em vão.