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Tocando o Vazio

Tocando o Vazio é dessas histórias que nos fazem pensar, em todos os sentidos, sobre limites. Quais são os limites do ser humano, em termos físicos e mentais? Até onde nosso corpo é capaz de nos levar? Até que ponto a mente comanda o corpo? E, mais que isso, onde termina o ser humano? Que estranhas conexões etéricas guardamos com o mundo que nos cerca e com o universo? Como explicar uma saga de sobrevivência que desafia todas as possibilidades? Como dar conta das inexplicáveis intuições que guiam o ser humano numa jornada cara a cara com a morte? Por que certas pessoas, como Joe Simpson, insistem em viver, quando outros submetidos às mesmas situações, já teriam passado desta para melhor?

O livro Tocando o Vazio, do mencionado Joe Simpson, apenas recentemente publicado no Brasil pela Companhia das Letras, com tradução da escaladora Rosita Belinky, é um dos grandes clássicos da literatura de montanha, perfilando ombro a ombro com peças sagradas como Annapurna, de Maurice Herzog (também em português pela Cia. das Letras), Crystal Horizon, do mestre Reinhold Messner, e Boundless Horizons, de Sir Chris Bonington.

Recentemente também convertido em um filme tão sensacional quanto o livro, Tocando o Vazio conta a história de uma ousada escalada e dos trágicos eventos que se sucederam. Simpson e seu parceiro Simon Yates, ambos ingleses então com pouco mais de 20 anos, em meados da década de 1980, derrotaram uma das últimas grandes paredes não escaladas na temida Cordilheira Huayuash, no Peru: a Face Oeste do Siula Grande (6.344 m).

Após dois dias de delicada escalada em meio a uma tempestade, os dois chegam ao cume da montanha. Durante a descida, entretanto, Joe fratura a perna e começa então uma das sagas mais impressionantes de que se tem notícia na história do montanhismo. Tentando continuar seu retorno com o auxílio do parceiro, em meio à tormenta, Joe acaba pendurado pela corda sobre uma parede negativa, sem qualquer possibilidade de que Simon o pudesse resgatar. Após algumas horas de suplício mental, Yates acaba tomando a difícil decisão de cortar a corda para que pudesse se salvar. Joe despenca 40 metros e acaba no interior de uma colossal greta de gelo.

Juntando toda a sua força de vontade, atingindo os limites extremos da solidão humana, abandonando todas as máscaras e carcaças que carregamos e olhando a morte nos olhos, Joe Simpson se arrasta durante dias pelos mais de 20 quilômetros de glaciar e morainas subseqüentes, submetido a grande dor, cansaço e desidratação, para chegar de volta ao acampamento onde Simon e outro companheiro se preparavam para partir, certos de que ele morrera.

A escrita de Joe é inigualável. O relato em primeira pessoa, entremeado por depoimentos do próprio Simon, é vivíssimo e impossível de largar. Mais que contar uma saga, Joe exercita uma profunda reflexão sobre os motivos que nos levam a arriscarmos nossas vidas em atividades como o montanhismo. Após dias se arrastando, havia uma voz, claramente fora de sua cabeça, que o guiava e o fazia seguir quando o corpo clamava para que se abandonasse ao sono da morte.

Mais que isso, Joe consegue dar idéia da profundidade da dor e terror que o assaltavam. Não apenas a dor lancinante, a cada movimento, da perna estraçalhada, mas a imensa dor de se sentir profundamente sozinho diante da morte iminente. Sentir-se tão solitário quanto pode ser possível a um ser humano. E, nesse processo, obrigar-se a abrir mão de toda a onipotência e de qualquer vaidade, disposto a qualquer coisa para sobreviver.

Ao contrário do que possa pensar, Joe não abandonou as escaladas. Ele segue se aventurando ainda hoje, 20 anos depois. Seu último livro – The Becknoning Silence -, entretanto, relata precisamente o difícil processo, em anos recentes, para tomar a decisão de aposentar as cordas e mosquetões.

Por incrível que pareça, poucos anos depois do Siula Grande, Joe sofreu um outro acidente muito grave em outra montanha no Peru. E, nesses 20 anos, seguiu escapando por pouco em diversas ocasiões.

O que torna fascinantes seus livros são os relatos absolutamente francos em primeira pessoa. Longe de se retratar como uma pessoa ousada e destemida, Joe exibe sem receio todo o seu medo e dúvidas quando escala, expondo-se em toda a sua humanidade e criando identificação imediata com o leitor.

Em 2003, finalmente saiu a tão esperada versão cinematográfica de Tocando o Vazio, infelizmente apenas exibida em algumas mostras no Brasil, mas já disponível em DVD nos EUA e na Europa.

Originalmente programado para se tornar um blockbuster com Tom Cruise no papel de Simpson, seus produtores logo chegaram à conclusão de que o livro não renderia um filme comum de aventura. Trata-se de uma história que se passa essencialmente na cabeça do personagem principal. O que acontece na realidade não tem ritmo de aventura. É apenas um ser humano se arrastando durante dias pela neve, gelo e pedras.

Dirigido por Kevin Macdonald, o filme mescla cenas com atores e depoimentos dos personagens reais, e é complementado por um documentário e um making of que mostram o retorno de Joe e Simon ao Siula Grande para as filmagens. Todas as panorâmicas e cenas gerais foram feitas no próprio Siula, com Joe e Simon representando a si mesmos. As cenas com atores foram feitas em estúdio e nos Alpes.

Impossível levantar da poltrona. Um raro filme tão bom quanto o livro.

E caso você esteja se perguntando sobre o absurdo de que Simon Yates tenha cortado a corda, essa é precisamente a questão mais simbólica da história. Será mesmo um absurdo? Joe dedica o livro a Simon com as seguintes palavras: “Para Simon, por uma dívida que nunca poderei pagar”. Leia e entenda por quê.

Depois de Joe e Simon, a dificílima Face Oeste do Siula Grande só foi escalada outras duas vezes, em 1999 e 2001.

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1 Comment

  1. Daniele

    Oie!
    Então, tô mto a fim de assistir esse filme, mas onde eu encontro aqui no brasil pra comprá-lo ou até mesmo baixar?
    Por favor help!
    Bjs
    Feliz Ano Novo!

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