Nunca tive em meu ventre nada mais importante que meu almoço.

Pouco tempo atrás, no Estadão, a editoria em que eu trabalhava publicava os temas relacionados ao aborto. Sem exceção, toda reportagem era seguida de cartas e e-mails. O leitor padrão do jornal não é exatamente liberal em relação a comportamentos. Ou seja, as cartas normalmente criticavam a cobertura ou apenas o fato de se dar espaço ao tema.

A editoria era composta por maioria de mulheres. Grandes mulheres, ótimas profissionais. Mas, mesmo na busca utópica pelo debate igualitário (e a maioria o procurava), a cobertura tendia para certo lado, inconscientemente ou não — não sou tão ingênuo; já tive de podar asinhas de repórteres.

O fato é que essa história do almoço me incomodava. Melhor: me incomoda. O que diabos eu sei?

Prezo a vida. Prezo a vida.

(Não vou repetir certo comentário aqui).

Mas o que aprendi é que até nisso há exceção. E sinto que cabe à mulher decidir usá-la ou descartá-la. Não se trata apenas de direito sobre o corpo — as feministas radicalizaram tanto nesta direção que hoje não são tão bem-vistas quanto gostariam nem pelas próprias mulheres.

Temos no Brasil uma legislação moderna que nem sempre é bem aplicada. Ela prevê algumas dessas exceções.

Se o fruto no ventre é causado por violência, sim, há de se poder escolher. Se a escolha for usar a lei, desejo-lhe que isto lhe traga paz. Se for, apesar de tudo, amadurecer o fruto, parabenizo-a.

Se o fruto ameaçar sua vida, sim, há de se poder escolher. Se a escolha for secá-lo, desejo-lhe outros frutos, de outras formas. Se for cultivá-lo, invejo sua coragem e desejo-lhe sorte.

Outro ponto não é previsto na lei, por conta de uma polêmica liminar. No Estadão, um dos temas de maior debate eram os fetos anencéfalos.

A maior ambição de uma reportagem é provar objetivamente um dos muitos lados de uma questão. Neste caso, o que se tentou fazer foi bastante simples. Buscou-se um personagem: criança, jovem ou adulto, deficiente, entubado numa UTI, fosse o que fosse, mas queríamos uma pessoa, um ser humano anencéfalo. Vivo. Se o encontrássemos, toda uma retórica, todo um lado do debate estaria em xeque.

Dê meios e tempo a um bom repórter e ele descobre quase tudo. Presidentes e bolsas já caíram por causa disso.

Nunca achamos tal personagem — Yuri, o caso que você citou é hidrocefalia, algo diferente de anencefalia. Todos os portadores deste mal nasceram mortos ou morreram horas depois ou, em alguns casos, poucos dias depois. A medicina atual consegue detectar com incrível precisão e de forma precoce se o feto sofre deste mal.

Por que então fazer uma mulher carregar em seu ventre algo predestinado a morrer? Fazê-la sofrer tanto vai torná-la melhor? Subvertendo a ironia do poema, nunca conheci alguém que não tivesse levado porrada. Não sei de ninguém que seja apenas alegria. Outros obstáculos virão; este ela poderia escolher pular. Sim, há de se poder escolher.

Dados da OAB, de 2004, mostram que 6 milhões de abortos são realizados por ano no Brasil. Ilegalmente. Quatrocentos mil deles causam a morte das gestantes. (Na hora em que gastei para escrever este texto, ocorreram, em tese, 685 abortos e 45 mortes).

Por que tantos abortos e mortes? Porque somos um país de miseráveis. De deseducados. Porque, segundo os dados mais recentes do IBGE, de 2004, 16 milhões de brasileiros até 17 anos não freqüentam a escola — e, acredite, isso até é boa notícia; uma década atrás era pior. Porque, conforme o Censo Escolar, em 2004, 15% (ou 1,4 milhão) dos jovens brasileiros matriculados no ensino médio abandonaram os estudos — o maior índice desde 1996.

Sem saber ler nem escrever, sem saber o que lhes espera em poucos anos, se terão um teto ou um simples almoço em seus ventres, de que lhe importam os tais métodos contraceptivos? Muito provavelmente, essas pessoas nunca ouviram falar deles.

Não, não defendo a escolha por interromper pura e simplesmente este tipo de gravidez. Este ainda é um debate aberto. Minha escolha é utópica (talvez eu seja realmente ingênuo). Escolho não precisar chegar a este ponto. De qualquer forma, há de se poder escolher.