Depois da via crucis do Pedro com o Banco do Brasil, vamos a algo mais inspirador. Comprei “A imitação do amanhecer” do Bruno Tolentino. Entre uma e outra leitura teórica, é um bálsamo voltar à erudição sem pedantismos do Bruno. Poesia é um negócio doido. Tematicamente, o livro fala de Alexandria – aliás, a capa é muito bonita, desenhada a partir de uma gravura de Johann Bernhard Fischer von Erlach, toda em tons de cinza levemente azulado, com o nome do autor, em violeta, e o nome do livro, em preto, alinhados ao topo e à direita da página, margeados pelo imponente e mítico farol; obra da designer Paula Astiz. Mas do que fala mesmo a poesia???

Difícil dizer. O José Guilherme Merquior, ainda jovem, procura uma resposta na análise formal (não à toa nomeou o livro “A razão do poema”). Mesmo concordando com a tese central do Merquior, i.e., poesia é craft e, como tal, tem sua tecnologia própria, desenvolvi um método razoavelmente irracional 🙂 de leitura de poemas. Inspirado na poética de Gaston Bachelard, procuro pelo impacto estético das imagens criadas pelo poeta. Leio pelo particular, procurando metáforas ou conjuntos de metáforas; leio poesia pelos miúdos e amiúde. Neste sentido, poesia é o apresentar-se instantâneo das imagens construídas pelo poeta à consciência do leitor. Comunicação radical. Espécie de explosão estética dentro da nossa cabeça, um putaquepariu interior. É isso: minha leitura poética consiste em garimpar putaqueparius. Eis um:

À medida que foge a luz crepuscular,
estendem-se e diluem-se nela um horizonte,
uma que outra silhueta e, vale ou monte,
as curvas, as arestas, as dobras de um lugar.
Mas as sobras do instante, quando desertam o olhar,
acercam o ouvido ao lábio que as reconheça e conte,
e é então que aquele cântaro ouve voltar à fonte
o arroio que escurece e não sabe calar.
É em nome dessa operação sempre obscura,
seus jogos de ampulheta semivazia, ou cheia
da inversão vagarosa de uma rosa de areia
que troca de lugar para fingir que dura,
é nesse encontro entre a paleta e a partitura
que uma cidade existe tal qual imaginei-a.

Foram os dois tercetos finais que produziram o putaquepariu, o que é normal em sonetos. Meu método, entretanto, como todo método amador, tem vários problemas. O maior deles é que me concentro na parte e perco o todo. No caso deste livro do Tolentino isso pode ser mais problemático ainda, pois ele se propõe a narrar um drama, tornando seus sonetos, na verdade, estrofes. Logo, a labuta do cara é para tecer um todo narrativo. Concentrar-se nos detalhes implica negligenciar a urdidura final. Contudo, poetas como Tolentino têm o dom de inspirar leituras mais aplicadas do que meu método preguiçoso é capaz; e já me vejo a contar alexandrinos.

Por fim, mais um putaquepariu. Putaquepariu-me 🙂 desta vez a caracterização simbólica do tempo, em um desenrolar-se de metáforas que vão da areia à água. Memória, desejo, beleza confluem para a missão impossível de representar o incomensurável. Nisso há uma estranha filiação entre ciência e poesia: ambas lidam com um real incomensurável. A ciência, a razão, é fria – o rosto da Ofélia suicida -, porém também a poesia, enquanto representação da luz e da cidade, não consegue “a explicação para a vida”, “a senha para o ser”. Poesia é a construção da memória, é a brincadeira da ampulheta, a transfiguração do real – “a rosa de areia”. A chave de ouro revela o limite (desde Kant??), a incomensurabilidade da vida e do real. Pelo menos a poesia constrói seu lar na consciência desta transfiguração. Alcançará a ciência, algum dia, a mesma clareza??

Que fazer de uma rosa de areia, fugitiva,
contínua como o arroio? Cerquei-a como pude
de uma figura ou duas, somei-a à infinitude
que vi brilhar em certas ruas, sem que viva
ao fim desses volteios mais que a sombra furtiva
de uma aquarela fria. Um dia, ante um açude
da minha meninez, comparei a altitude
e a placidez de um par de luas: uma viva,
altiva, e a outra o rosto da Ofélia suicida;
deduzi do desdobramento do universo
entre a imagem e o reflexo, a explicação da vida,
a senha para o ser, e enganava-me – o inverso
do que amei e perdi também não tem medida,
Alexandria e a luz não cabem no meu verso.