Foi durante um dia de folga, no terraço dum café da Montanha Azul, que a vi pela primeira vez. Parecia muito feliz e estava linda, aliás, mil vezes mais deslumbrante que em todos aqueles famosos filmes e fotografias. Isto é, famosos ao menos para nós, seus conterrâneos, uma vez que, entre as dezenas de circunstantes, ninguém ali dava mostras de conhecer o significado da presença daquela mulher. Bem, por outro lado, talvez ela estivesse entre eles exatamente porque sabiam tratá-la da forma correta, ou seja, como amiga e companheira, como uma mulher entre as mulheres, como uma humana entre humanos. Uma vez atingido certo grau de autoconsciência, a visão de si mesma num pedestal não lhe poderia causar senão dor e vazio. E o tempo do pedestal há muito ficara para trás. Daí ela estar ali, bela e com o sorriso a expressar não a antiga volúpia, mas um convite ao verdadeiro amor. Seria alguém receptáculo desse amor? Uma esperança absurda brilhou em meu coração. Contudo, neste primeiro contato, limitei-me a acompanhá-la com o olhar − tentando não ser por ela flagrado − e a me certificar de que de fato ela era quem parecia ser.

Sim, era.

Enquanto ia conhecendo novas pessoas e fazendo novos amigos, prosseguia com meu curso de Técnicas de Escrita, sendo, como sempre, um dos melhores alunos da turma. Assim, os dias iam se entregando ao passado calmamente. Eu sempre sonhara em tomar contato com uma instituição de ensino onde os ditos mestres fossem de fato Mestres, isto não apenas em suas áreas, mas sobretudo na Vida. E aquela Universidade era um desses lugares. Não havia um professor sequer que não conhecesse seus próprios limites e seu valor real. Eram verdadeiros guias, mas sabiam rir de si mesmos. Era muito comum vê-los, durante os intervalos, cercados de alunos e admiradores, num dos inúmeros pátios, a contar histórias, revelando experiências pessoais, ou simplesmente mergulhados em investigações informais e, muitas vezes, hilárias sobre a natureza das coisas. E foi justamente num desses pátios, entre uma aula e outra, que a vi pela segunda vez. Ela trajava uma espécie de vestido ou túnica, aparentemente formado por diversos véus de cor clara entrelaçados, que lhe cobriam do pescoço aos tornozelos. Formavam uma unidade opaca, mas, de perto, eram como uma conspiração de nuvens lilases contra sua nudez, apenas sugerida. Quando passou por mim, lancei um olhar diretamente sobre seus olhos, que não se desviaram: ela sorriu e eu também. Creio que notou meu reconhecimento.

Nos dias seguintes, não a vi. Cheguei a temer a perda duma grande e única oportunidade. Mas tal sentimento durou pouco. Eu também já era alguém que sabia cavalgar o próprio destino.

E veio, pois, o terceiro encontro. Foi durante uma festa, ali na Montanha, no mesmo terraço em que a vi pela primeira vez. Fiquei chocado quando a vi: usava aquele mítico vestido branco de frente única e saia plissada! Não trazia os cabelos ruivos tal como nos dias anteriores, mas os exibia muito loiros. Sorriu quando me viu e acho que também curtiu meu “tuxedo” à la Leonardo di Caprio, com gravata clássica preta no lugar da de borboleta.

“Olá”, disse, ao me aproximar.

“Oi”, tornou ela, sorrindo.

“Você é muito mais bonita pessoalmente do que jamais imaginei…”

“Obrigada.”

Perguntei se ela havia escolhido aquele vestido por minha causa e respondeu que o havia feito por nós dois, já que, ao pressentir ser eu um possível conterrâneo, decidira criar um pretexto para rompermos o gelo. Não que estivesse interessada propriamente em mim, a não ser talvez como amigo − afinal era uma mulher muito bem casada − mas principalmente porque adorava ouvir notícias de sua terra da boca dum paisano. Perguntou meu nome e arregalou os olhos ao ouvi-lo.

“Fui casada com um homem, também escritor, que passou um bom tempo obcecado por seus livros. Até hoje não sei dizer se ele amava ou odiava seu trabalho…”

Sorri. Realmente causara muito barulho e confusão com meus primeiros livros. Mas lhe garanti que havia retornado com outros não menos explosivos, mas muito mais verdadeiros. Ela sorriu, levando aquela luminosa taça aos lábios.

“Vamos dançar? Podemos continuar conversando durante a dança.”

Assentiu e nos dirigimos à pista, onde um DJ, a pedido dela, tocou algumas músicas em que pudemos exibir certo estilo rítmico da nossa Terra. Outros casais, empolgados pela “novidade” do que ouviam, passaram a nos imitar.

“Olha só aqueles dois”, dizia ela, rindo baixinho.

Enquanto a mantinha entre meus braços, íamos cotejando informações, colocando os assuntos em dia, alguns deles bizarros, outros engraçados e, claro, tratando por alto − estávamos numa festa − de certos problemas muito sérios que ainda assolavam nosso mundo. Finalmente, em meio a um silêncio ligeiramente mais longo, tomei coragem e indaguei o que ela estava estudando ali.

“Bem”, disse, “ainda não sou uma estudante oficial. Estou assistindo a algumas aulas como ouvinte. Eu e meu marido estamos pensando, quando estivermos ambos preparados, em nos apresentar como voluntários a integrar o séqüito de algum Príncipe…”

“Você está preparada para novamente ser tratada como uma deusa?”, tornei, irônico, sem dizer que eu mesmo pretendia ser um voluntário.

Ela riu: “Ah, isso ninguém nunca está.” E me falou de seu marido, um homem excelente e corajoso, atualmente servindo como embaixador numa região distante, que já tivera a experiência de ser tratado como um avatar em um mundo menos avançado. Seria alguém conhecido?, pensei comigo, sem no entanto me sentir confortável a ponto de lhe indagar a respeito.

“Você ainda trabalha como atriz? Canta?”

“Sim, acho que sempre serei atriz e cantora, mas, para conseguir o voluntariado, preciso de algo mais”, e me piscou um olho.

Neste instante, o DJ encerrou sua participação e um quinteto passou a tocar, com instrumentos dos mais extravagantes, algumas músicas realmente exóticas. Deixamos então a pista e decidimos ir nos sentar com vista ao vale. Ela caminhava à minha frente, as costas nuas, enquanto eu repetia a mim mesmo: “Como a Vida é fantástica! Se anos atrás eu tivesse imaginado um encontro como este, teriam me considerado um louco”. Escolhemos, pois, um grupo de almofadas e, já descalços, nos sentamos voltados em direção à onírica paisagem. Era uma daquelas noites claras, como se duas luas cheias a tudo iluminassem. A música reverberava por todo o vale, enquanto os ecos vinham participar à guisa de coadjuvantes, como que programados pelos músicos. Ela, com seu vestido branco fosforescente, sentou-se de joelhos sobre o tapete, uma pequena almofada no colo, a saia formando uma espécie de tenda sobre a parte inferior de seu corpo. Retomamos o diálogo e comentei que tal como dois estrangeiros de mesma origem em terra estranha, ali nos tornamos próximos, e que ela jamais teria me dedicado atenção semelhante se estivéssemos em nossa terra natal…

“Quem sabe? Pelo pouco que ouvi sobre você, talvez eu é que seria a desprezada…”

Ri: “Bom, nunca saberemos. Não fomos contemporâneos. Em nenhuma das ocasiões…”

“Verdade.”

Confessou-me então que, na manhã seguinte, iria viajar até outra Universidade, numa região próxima à da missão de seu marido, e que provavelmente não iríamos nos reencontrar tão cedo. Talvez nunca, pensei comigo, o olhar fixo.

“Só Deus sabe”, completou ela, como se adivinhasse meus pensamentos.

Depois rimos muito, falando sobre tudo o que nos vinha à mente. Claro, não me arriscarei a reproduzir todas as palavras, todos os assuntos, todas as histórias, porque a mágica do momento dificilmente poderia ser recuperada. Mas descobri o quanto ela era inteligente e bem humorada, sabendo ser, no correr da conversação, ora uma palhaça, ora uma mulher encantadora e profunda. Falou-me por alto do inferno que viveu durante algum tempo, dos amigos que a ajudaram, como Gable e mais tarde Strasberg, e de tudo o que aprendeu ao chafurdar no mais negro sofrimento. Tornou-se, enfim, uma mulher de fé inabalável.

“Bom, preciso me retirar agora”, disse por fim.

Trocamos endereços de correspondência e nos comprometemos a manter contato. Perguntei se seu companheiro era nosso paisano e me disse que não, que ele era dum local onde nem sequer havia cinema ainda. Encaramo-nos em silêncio por alguns instantes − e então rimos.

“Essas ironias são comuns”, comentei.

Calçamos os sapatos e fomos caminhando até o metrô de superfície, que a levaria até uma das vilas do centro do vale, que, por sua vez, serviam de alojamento aos estudantes ouvintes.

“É uma pena que a gente ainda não consiga voar aqui, né?”

No caminho, porém, lembrei de um detalhe: era meu aniversário. Ela me perguntou: “Qual deles? Como Jorge ou como Friedr…”

“Como Jorge”, respondi.

E então, para meu gládio e honra infinitos, ela começou a cantar para mim: “Happy birthday to you/ Happy birthday to you/ Happy birthday, dear Jorge/ Happy birthday to you…” E rimos juntos.

Eu a acompanhei então até o trem e a deixei ali. Despedimo-nos com um beijo no rosto e, enquanto a observava caminhar até o vagão, esperei que algum vento alçasse seu vestido. A certa altura, ela se voltou e, sorrindo, fez um gesto gaiato, levantando ligeiramente a ponta da saia. Voltamos a rir e eu lhe acenei adeus. Já se passaram setecentos e cinqüenta anos terrestres desde então, e eu ainda não voltei a rever Marilyn, minha conterrânea. Sei que ela se encontra muito ocupada no planeta que lhe tocou, junto a seu companheiro, conhecer como membro do séqüito dum príncipe planetário. Não temos conversado. Mas, segundo suas últimas mensagens − que ela insiste em assinar como Norma Jean −, ainda há de estar muito feliz. Graças ao Pai.