Eles chamam esse lugar de mirante, mas eu confesso que nunca vi nada daqui. A cidade e as estrelas estão sempre encobertas por nuvens, ou distantes demais pr’eu distinguir uma coisa da outra. Eu só vejo os carros parados ao meu lado e seus faróis cortando a neblina. Lígia me disse que já viu até estrela cadente, mas isso bem que pode ser coisa da cabeça dela. Mulher sempre tem uma necessidade de fantasiar, de enxergar alguma coisa mística e melosa onde existe apenas a mecânica previsível da vida na sua repetição morosa e cansativa. Ela, por exemplo, não tem mulher mais previsível. Eu sabia que ela só ia me dar depois que eu falasse em casamento, eu sabia que os boquetes e punhetas seriam só no início, para garantir o compromisso. Depois que ela se sentisse segura, a coisa ia virar um feijão-com-arroz tão maçante que eu só não terminaria porque o comodismo quase sempre acaba falando mais alto que a paixão. O comodismo é lento, mecânico, repetitivo, ele não liga de ficar dez anos fazendo a mesma coisa. Ele nos ganha pela paciência. Quando eu reclamo da Lígia, acho que no fundo estou reclamando é dessa mesmice em que ela acabou me trancando. Casa, faculdade, festa, casa da sogra, casa, faculdade. Todo mundo sempre falando as mesmas frases, rindo das mesmas piadas, reclamando das mesmas coisinhas que eles podiam mudar a qualquer momento, e não mudam porque não querem. Eu sinto que tudo isso veio dela. Se não fosse a sua enorme necessidade de fazer tudo sempre igual, sua ambição convicta por casamento, cachorro e casa de praia, talvez eu estivesse em outro mundo, mais brilhante e gostoso, mais excitante, mais ameaçador, talvez; mas um lugar onde eu certamente me sentiria mais vivo. Quando eu quero transar no estacionamento do shopping, quando eu quero gozar na boca ou nos peitos, quando eu insisto para ela me masturbar no banheiro de uma festa qualquer, acho que no fundo eu quero apenas protestar contra essa mesmice. Quero que ela entenda que não suporto essa rotina. Não quero passar a vida trabalhando para esperar as férias e comendo minha mulher para matar o desejo que eu sinto por outra.

Acho que era nisso que eu pensava naquela noite, quando vi o casal no carro ao lado. Eu buscava alguma coisa que nos libertasse, a mim e à Lígia, dessa vidinha rasa, desse feijão com arroz que além de tudo é sem tempero. Eu reparei que ela também estava olhando para eles e isso me excitou de uma forma inesperada e estranha. Eu fiquei me perguntando se Lígia teria vontade de transar com outro cara, de saber como é o sexo com outro corpo, outro cheiro, outro pau. Por um lado isso me excitava, porque, se fosse verdade, ela pelo menos não seria a garota tão certinha e maçante que eu pensava ser. Haveria na alma dela algum gosto pela transgressão, pelo diferente, pelo novo. Por mais estranho que isso possa parecer, acho que eu ia gostar mais dela se descobrisse isso. Mas por outro lado, não deixo de confessar que senti certo medo. E se ela gostasse de trair? E se começasse a fazer isso com freqüência, relegando nosso namoro a segundo ou terceiro plano? Isso me daria liberdade para trair também, mas eu gostava de transar com Lígia, gostava da sua pele lisa, do seu cheiro forte e acanelado de morena. Não queria perdê-la. Fiquei olhando de soslaio para ela, e vi que ela não tirava o olho do casal. Meu medo e minha excitação aumentavam. O cara já estava tirando a roupa da garota, notei que ela também olhava para mim, não dava para saber se era de vergonha, ou se queria mesmo que eu os visse — talvez isso a excitasse. Tirei também a roupa de Lígia. Ela, sem-graça como sempre, ficou reclamando que alguém poderia ver. Procurei fazer algum barulho para que o casal nos visse. Eles a princípio pareceram não notar, depois a garota falou alguma coisa no ouvido do cara, e ele olhou para o nosso lado. Quando viu Lígia semi-nua, seus olhos brilharam. Lígia é alta, bonita, tem os cabelos longos e lisos que essas meninas pagam muito para ter. Seu rosto afinado e seus olhos pequenos contrastam com uma boca carnuda e bem desenhada. Como se não bastasse, é naturalmente magra, não precisa comprar revistas sobre dieta e malhação. Enfim, uma mulher que meu dinheiro podia pagar (não é hora de falar da importadora de papai, mas sei o quanto isso me ajuda com as mulheres). Senti que o sujeito ficou fascinado ao olhar para ela, seus peitos redondos e brancos refletindo a luz alaranjada de vapor de sódio. Senti também a pontada de ciúme. Olhei para a namorada dele, e ela me encarou com um olhar agressivo, desafiador. O cara, por sua vez, fez um sinal com os punhos fechados, como se dissesse “Fode logo, rapaz. Fode essa menina que eu quero ver”. Olhei para Lígia, ela tinha cruzado as mãos sobre os peitos, estava assustada, mas pressenti certa excitação no jeito fixo com que ela olhava o rapaz. Ele também a olhava, e a namorada dele me encarava com aquele olhar desafiador. De repente percebi o que eu tinha que fazer. Eu sabia que Lígia ia me criticar até o fim, mesmo que ela gostasse, nunca iria admitir. Mas eu estava decidido, não dava para voltar atrás. Além disso no fundo eu sentia que Lígia e eu tínhamos de passar por aquilo de qualquer jeito. Se não fosse daquela vez seria outra. Então que viesse logo, que enfrentássemos o desconhecido que não encontramos na casa da sogra e nas festas de natal.

Abri a porta e fui andando até o carro do cara. Ouvi Lígia dizer: “O que é isso, amor?”, e ainda pensei “como ela é passiva, nem tenta me impedir!” Mas num segundo eu já estava batendo no vidro do carro dele. O sujeito abriu meio assustado, a namorada dele se cobriu desajeitadamente com a jaqueta.

— Gostou da minha namorada? — Perguntei.

Ele fez uma cara de interrogação.

— Também gostei da sua — respondi, agressivo.

O cara olhou para a menina, e os dois trocaram um breve sorriso. Depois ele perguntou:

— O que você quer, cara?

— Você sabe perfeitamente o que eu quero. Você gostou da minha namorada, eu gostei da sua. Aposto que elas também querem. Você entendeu.

Minhas pernas tremiam, no fundo eu estava com medo. Só nesse momento me ocorreu que de repente a namorada dele não ia topar, e eu ia passar pelo maior vexame: minha namorada no carro, praticamente esperando o rapaz, e a coisa não ia rolar porque a outra garota não me queria.

— Aposto que elas também querem — repeti, gaguejando um pouco.

O cara olhou para Lígia, senti que ele a desejava com intensidade. Eu não olhava para trás, não queria descobrir se Lígia também o encarava e sentia desejo. De repente ele abriu a porta:

— Entendi o que você está propondo. Por mim tudo bem.

Por alguns segundo fiquei estático em frente ao carro. A coisa ia mesmo acontecer, não havia como voltar atrás. Ouvi o cara abrir e fechar a porta do meu Audi, e só então tive a iniciativa de entrar no Palio dele. Eu sentia uma enorme vontade de olhar para trás e ver como Lígia estava reagindo, mas, com medo de parecer ridículo, procurei me concentrar na garota que estava na minha frente. Ela estava nua por baixo da jaqueta, me olhava de um jeito estranho, entre irônico e resignado.

— Você já fez isso antes? — perguntei, só para quebrar o silêncio.

Ela fez que não com a cabeça, depois ficou olhando para o meu carro. Estava silenciosa e indiferente, não dava o menor sinal de tensão. Eu pensei: “Meu Deus, não é tão fácil quanto eu pensava”, depois estendi a mão e a toquei. Ela sorriu levemente, mas era um riso resignado, e me ocorreu que talvez ela não quisesse fazer e estivesse aceitando tudo apenas para agradar ao namorado. Só então reparei melhor na garota e vi que, de perto, ela não era assim tão bonita. Os cabelos eram alisados e pintados, o rosto era um pouco rude, via-se que as sobrancelhas davam bastante trabalho à pinça. A pele morena era bonita, sem manchas, mas com um brilho oleoso que fazia lembrar algo plastificado. Percebi que eu estava fazendo um péssimo negócio. O cara, no meu carro, devia estar se deleitando com a pele maravilhosa de Lígia. Senti novamente a imensa vontade de olhar para trás, mas consegui me conter. Um pouco sem-graça, comecei a tocar as pernas nuas da garota. Por formalidade — e um pouco por não saber o que dizer — fiz um pequeno elogio.

— Suas pernas são muito lindas.

— Obrigada.

Ela não tirava os olhos do meu carro. Senti que sua curiosidade pelo que estava acontecendo com o namorado era muito maior que a vontade de ficar comigo — que, aliás, talvez fosse nula. Comecei a beijá-la no rosto e no pescoço. Ela desviava levemente a boca ou me beijava com os lábios fechados, evitando a intimidade. Percebi que seria algo mecânico, e lhe tirei subitamente a jaqueta, buscando desesperadamente a justificativa para aquela troca que já quase se revelava absurda. Me aliviou muito descobrir que o corpo era bonito. Os sinais evidentes do silicone — as veias ressaltadas, o formato de cúpula — não destoavam das curvas gerais, que eram generosas e delicadas. “Pelo menos isso”, pensei. Comecei a chupar os mamilos, que a princípio estavam frios, mas foram se aquecendo. Peguei a mão dela e coloquei no meu pau. Ela abriu minha calça com uma segurança que me impressionou. Quando começou a me masturbar, finalmente descobri que haveria alguma vantagem naquela troca. Ela tocava de forma firme e delicada, segurava com carinho, sem o menor sinal de nojo ou vergonha. O ritmo também era perfeito, nem lento demais que me deixasse ansioso, nem rápido a ponto de me fazer gozar na hora errada. Minha respiração foi serenando, meus pensamentos foram me abandonando e fui ficando mais presente no momento. Abracei-a com alguma ternura e nos beijamos. Ah, que gratidão se sente pela mulher que sabe tocar uma punheta! Lígia era muito mais bonita, mas não era tão habilidosa. Enquanto a garota pegava uma camisinha na bolsa, tentei fazer a minha parte, acariciando a bocetinha dela, tentando fazer tão bem quanto ela fez em mim. Senti que ela também relaxava, e isso me confortou. Não tinha me agradado perceber que ela havia entrado na troca apenas para não contrariar o namorado. Segundos depois ela me surpreendia com outra habilidade especial. Colocou a camisinha com a boca, e chupou por algum tempo. “É quase uma profissional”, pensei. “Seu namorado até que tem sorte.” Mas esse pensamento já não me perturbava, porque eu sabia exatamente o que queria daquele momento. Não pensava mais em Lígia, nem no outro cara, nem no prazer ou desprazer que eles estivessem sentindo. Eu estava imerso no momento, sabendo exatamente o que tinha de fazer e o que podia esperar em troca.

Passei para o banco do carona, e ela ficou por cima. Enquanto ela cavalgava, me vieram algumas lembranças de Lígia e da primeira vez que estivemos naquele lugar. Ela era inibida e desajeitada, não tinha metade da desenvoltura daquela garota. Mas não deixava de haver nisso certa ternura misteriosa, algo que eu não sabia definir, mas certamente não queria perder. Aos poucos foi ficando claro para mim que eu podia desejar, talvez até amar outra mulher, mas nunca abriria mão de Lígia. E eu ri, percebendo que descobria aquilo justamente enquanto transava com outra. A garota achou estranho, e perguntou se eu estava gozando. Eu disse que não, e procurei me concentrar. Mas, sem querer, acabei olhando furtivamente para o lado, e fiquei chocado com o que vi. O cara tinha recostado o banco e fodia Lígia como se ela fosse uma boneca. Aquilo contrastava bruscamente com as lembranças bonitas que tinham acabado de me ocorrer. Tentei ver como ela estava reagindo, mas seu rosto estava virado para o outro lado, e pude ver apenas a cara de satisfação com que o desgraçado se debruçava sobre ela. Então senti um tipo de raiva que eu certamente nunca tinha sentido. Uma revolta cega que, não tendo alvo definido, ia se transformando numa resignação amarga e opressiva, ia apertando meu peito, dificultando minha respiração. Tentei desesperadamente voltar ao prazer de antes, pedi à garota para trocarmos de posição. Enquanto eu reclinava o banco, olhei algumas vezes para o lado, e a cena já não me chocava tanto. Como não via o rosto de Lígia, eu tentava imaginar que ela estava gostando, e, paradoxalmente, isso me dava algum vigor. Comecei a foder com força, tentando não pensar em nada, sentindo apenas o prazer da penetração e os gemidos da menina. Mas fui percebendo que eu agora era tão indiferente quanto ela. Foder era apenas um jeito de tentar descarregar a raiva obscura e inútil que aquela cena tinha me causado. Mas o movimento foi me relaxando, fui recuperando a ereção que tinha começado a perder, e entrando de novo no prazer do momento. Quando senti que ia gozar, achei até estranho, como se tudo que eu tinha sentido antes fosse me tirar de alguma forma o direito ao gozo. Mas eu acelerei as batidas, e o gozo veio gostoso, convicto, quase redentor. Lembrei que algum dia eu ia esquecer aquilo tudo, ou pelo menos recordar as cenas sem nenhuma carga emotiva. Descansei alguns segundos em cima da garota, depois abaixei o vidro para jogar a camisinha fora. Olhando para o lado vi que os dois também tinham terminado, e sorri pensando que teria sido muita coincidência se os quatro tivessem gozado ao mesmo tempo. Mas eu sabia que a garota ao meu lado não tinha gozado — já tinha idade para reconhecer um gemido falso — só que eu estava me lixando para isso. A experiência tinha acabado e agora eu queria apenas o calor seguro e reconfortante do meu edredom. Pensei em Lígia e ficou claro para mim que ela estava pensando a mesma coisa. Eu estava certo de que ela queria simplesmente ir para casa e esquecer aquela noite. De repente tive a certeza tranqüila de que, mesmo que ela tivesse gozado intensamente, mesmo que tivesse tido a melhor foda da sua vida, ela nunca ia me deixar. O carinha podia até ser bonito, mas eu já conhecia a família e as amigas de Lígia, já freqüentava a casa dela, já tinha falado para todo mundo que a gente ia se casar. Sua necessidade de estabilidade social era infinitamente maior que seu desejo por prazer. Além disso, eu tinha um Audi, e o cara tinha apenas um Palio. Só alguém muito ingênuo pode achar que isso não faz diferença.

Quando saí do carro, o cara ainda estava se recompondo. Fiquei encostado no meu Audi, para ele desconfiar que eu queria destrocar. Se o cara quisesse uma segunda, que usasse sua loira falsa. Eu queria Lígia de volta, queria trocar algumas palavras com ela, ter certeza de que ela também queria voltar para a casa e para a rotina social que ela tanto amava.

O cara saiu do carro e eu entrei enquanto ela ainda se vestia. Ele tinha uma expressão de satisfação e escárnio. Senti não apenas que ele tinha se deliciado, mas também que me achava um imbecil, um completo idiota por ter dado a namorada para a satisfação de outro. Senti novamente alguma raiva de mim, mas ela veio branda, já controlada pela clareza nítida do arrependimento. Fiz apenas um aceno de cabeça para o cara, e entrei no carro, lacônico. Lígia colocava as sandálias de forma lenta e silenciosa. Senti que ela ainda não queria conversar, e ficou assim por algum tempo. Fiquei dirigindo a esmo pela cidade, antes de levá-la para casa. Não queria deixá-la sem ter certeza de que ela também estava arrependida. Mas aquilo estava me cansando e tomei o caminho da casa dela. Só quando parei o carro ela resolveu falar.

— Está satisfeito?!?

Pelo tom de voz eu percebi que ela estava profundamente aborrecida comigo — e fiquei aliviado. Ela ia me odiar por alguns dias, ia fazer alguma vingancinha boba, depois ia me perdoar. Em pouco tempo nossas vidas voltariam ao normal, com a diferença de que agora eu já gostava mais dessa normalidade, já enxergava na simplicidade e no pudor de Lígia uma beleza misteriosa que eu sabia que não queria perder.

— Sim, amor. Estou satisfeito.

Ela me olhou interrogativa. Senti que eu lhe devia mesmo alguma explicação.

— Olha, não sei explicar. De alguma forma a gente precisava disso.

Eu falava cabisbaixo, e quando olhei para ela, vi o brilho suave das lágrimas que começavam a escorrer.

— Não faz isso, amor. Não fica tão chateada… — Tentei abraçá-la. Ela me rejeitou.

— Meu Deus, não consigo nem imaginar o que minhas amigas diriam disso!

Então percebi claramente a natureza do problema. Pela primeira vez na vida, ela tinha vivido algo que não podia contar às amigas. E como tudo na vida dela só ganhava sentido quando se tornava público, aquela noite ia ficar vagando sem encontrar um espaço legítimo na sua memória, incomodando como um inseto insuspeitado que lhe passeasse por dentro do corpo. Mas eu sabia que aquilo estava longe de ser grave. Um dia uma amiga qualquer ia acabar lhe contando uma traição, e aquela lembrança viria à tona, ganhando finalmente o ensejo de ser confessada. Ela encararia a amiga de um jeito sério — “Você jura que não conta para ninguém” — e falaria da noite embaçada em que o próprio namorado a levara a sentir o cheiro e o corpo de outro homem. As duas se olhariam intrigadas, atribuiriam tudo à indecência dos homens — que são uns cachorros, uns pilantras! — e depois voltariam a falar sobre filhos e empregadas. Mas a confissão a livraria da lembrança incômoda, como uma pústula nos livra de uma inflamação, e tudo ficaria bem.

Me despedi dizendo para ela não se preocupar, que tudo ia ficar bem — que mais se diz a uma mulher?

Enquanto dirigia para casa, lembrei que eu nem sequer tinha perguntado o nome da falsa loira. Era melhor assim. Em pouco tempo eu esqueceria também o seu rosto, e o futuro que eu viveria com Lígia talvez nem me deixasse espaço para recordar aquela noite tumultuada em que não soube o que fazer com minha revolta.

Quando cheguei em casa, estava lá, previsível, estável, infalível, o meu maravilhoso edredom. Que delícia!

– Fim –