blog do escritor yuri vieira e convidados...

Autor: ronaldo brito roque Page 1 of 6

Ele não questionava

Eu pensei em tirar uma foto, depois voltei atrás. Ela era bonita, colorida, os olhos simples e estáticos me emocionaram um pouco. Não sorria; tinha um pirulito na mão, mas preferia não lamber. Talvez quisesse apenas mantê-lo ao alcance da boca, mostrar que ainda estava na idade de pensar que um pirulito era apenas um pirulito, sem maiores conotações freudianas. Mas havia qualquer coisa de triste no seu olhar, uma serenidade meio apática que delatava uma infância com muito açúcar e pouca alegria. Ela era sim, bonita, colorida, no entanto um pouco triste. Despertava certa veia maternal dentro de mim: uma força que me impelia a protegê-la e ampará-la, mesmo que eu não soubesse como ou por quê. Mas a câmera eu guardei. Alguma sombra dentro de mim negava aquela menina. Algo que invejava e temia aquele tipo de arte. Fiquei um tempo pensando no sujeito que a pintou. Provavelmente não era formado, pois sua obra era muito simples: uma criança com pirulito na mão e barriga de fora. Um pouco triste, um pouco perplexa e nada mais. E era justamente isso que me machucava. Um ignorante, com meia dúzia de esprêis, era capaz de despertar emoções sinceras – coisa que eu não conseguia fazer com meus escâner, computador, câmera e conceitos modernos. Pensei em tirar uma foto e colocar no meu blógue. Cogitei falar da força misteriosa da simplicidade, do impacto emocional que o figurativo ainda causa nas almas desprevenidas. Mas tudo isso seria apenas mais um argumento, não uma emoção. Eu, que tanto atacava o mundo da razão, ia usar a menina como desculpa para produzir mais uma reflexão? Saí de casa confusa, e o comentário da vizinha só fez piorar meu estado:

— Esses meninos são uns vândalos, vivem estragando a propriedade alheia. Mas temos que admitir que alguns deles têm sensibilidade…

— É… pois é… alguns deles…

Sensibilidade era uma palavra gasta. Eu aprendera a odiá-la na faculdade. Toda uma geração havia falado em sensibilidade e conseguira produzir apenas paisagens campestres e mulheres seminuas. Não estávamos mais na época da sensibilidade; uma bobagem dessas simplesmente não seria aceita pelos meus professores. Me refugiei na idéia de que a velha era apenas mais uma ignorante, e sua opinião jamais seria partilhada por alguém de cultura, tanto menos por um investidor.

Mas na esquina tive novo desconforto. Um gari tinha parado de varrer. Debruçado na própria vassoura, contemplava o silêncio da menina. Me perguntei se ele estaria tendo as mesmas emoções que eu; se o desenho lhe tinha despertado algum instinto paternal, se o fazia recordar o desamparo e a fragilidade da própria infância. Mais uma vez me abriguei na idéia de ignorância. Ele era um gari, o que podia saber sobre arte?

Entrevista com o Teólogo André Figueiredo sobre Swedenborg e a Nova Igreja

Introdução

Quando eu ainda morava em Belo Horizonte, o Yuri publicou no saite alguma coisa sobre Borges e Swedenborg. Na época eu já era fã de Borges e pesquisei mais sobre seu Guru na internet. Logo percebi que a despeito de ser teólogo e místico, Swedenborg tinha uma obra intelectual admirável e merecia no mínimo a atneção interessada que votamos aos grandes pensadores do ocidente, sejam eles filósofos sistemáticos ou não. Então fui estudando suas obras sem muito método, à medida que chegavam às minhas mãos, e tentando compreender minha própria realidade à luz do que ele dizia. Na época eu era um cético que começava a flertar com uma espécie de “Criastianismo Filosófico” – um cristianismo que convence mais pela explicação que pela força mística do ritual – e Swedenborg caiu como uma luva na minha cabeça cheia de contradições. Embora verse sobre assuntos de fé, ele com freqüência expõe seu pensamento numa estrutura filosófica com silogismos e premissas bastante claros. Além disso, sua Ciência das Correspondências é uma espécie de chave intelectual para a compreensão da linguagem poética, e um aspirante a ficcionista, como eu, não podia deixar de se deleitar com uma coisa dessas.

Alguns anos mais tarde me mudei para o Rio de Janeiro, e tive o privilégio de conhecer pessoalmente André Figueiredo, filósofo de formação e teólogo da Nova Igreja – Igreja fundada por Swedenborg, que tem uma sede aqui no Rio. André é uma espécie de enciclopédia viva sobre Swedenborg, pois se dedica não apenas a estudar sua Revelação, mas a colocá-la em prática como membro ativo da Igreja Nova Jerusalém. Sua inteligência rápida e apurada logo me impressionou, principalmente porque era a primeira vez que eu encontrava essa virtude junto a uma gentileza e uma paciência dignas de um monge. Nesta entrevista procurei explorar um pouco dessas qualidades, indagando a André sobre sexo, morte, casamento, religiões e outras questõezinhas que costumam atormentar as mentes em busca de respostas. Sempre quis fazer uma entrevista desse tipo, não só porque acho que Swedenborg e a Nova Igreja merecem ser divulgados num círculo mais amplo, mas também porque eu queria dividir com o pessoal do Karaloka – leitores e autores – um pouco das idéias que me ajudaram a compreender melhor o mundo da religião, das ciências, dos conflitos humanos e até da literatura de ficção. Nas linhas abaixo, acho que vocês poderão perceber que as obras de Swedenborg de fato se prestam a isso; e para no-las apresentar nada melhor que alguém que dedica a vida a compreendê-las. Então, chega de rasgação, e vamos às perguntas:

1. André, gostaria de começar esta entrevista com uma pergunta que deve ocorrer a qualquer pessoa comum, e acho que é uma questão que, de certa forma, ocupa o centro do interesse autêntico pela religião. Existe vida após a morte? E, caso exista, devemos nos preocupar com isso?

Existe sim vida após a morte. E qual a importância de se preocupar com isso? A morte é uma metamorfose, é um novo estágio do desenvolvimento humano. A morte antecede a ressurreição, e a ressurreição é uma regeneração, isto é, um novo nascimento. É algo semelhante ao que se processa com os insetos no processo da metaformose: a lagarta entra no casulo e se transforma, renasce como uma borboleta ou um inseto alado.

Da mesma forma, quando abandonamos este corpo, é como se o fizéssemos em relação a algum casulo que foi o útero de uma grande gestação e transformação, mas que é agora descartado. A metamosfose é uma imagem da regeneração e do novo nascimento. Mas há uma diferença entre a regeneração dos insetos em sua metamorfose, e a regeneração do homem para que ele de natural se torne espiritual. No caso dos insetos, este processo é espontâneo, isto é, simplesmente acontece quer o inseto queira, quer não. No caso do homem, isto não é uma fatalidade, mas depende de um esforço ativo e constante, uma decisão emanada do livre arbítrio.

São poucas as doutrinas hoje em dia que enfatizam a ciência da regeneração. Mas esta é a grande obra de todas as autênticas religiões: a regeneração do gênero humano. Assim se pronuncia Swedenborg sobre este ponto:

Que o homem deva ser regenerado, a razão o mostra claramente; com efeito, por seus país êle nasce nos males de todo gênero, e êstes amores residem em seu homem natural que, por si mesmo, é diametralmente oposto ao homem espiritual; e entretanto o homem nasceu para o Céu, e não vai para o Céu a não ser que se torne espiritual, o que se faz unicamente pela regeneração; daí segue-se necessariamente que o homem natural com suas cobiças deve ser domado, subjugado e revirado, e de outro modo êle não pode se aproximar de um único passo em direção ao Céu, mas se precipita cada vez mais no Inferno. Como não ver isso, quando se acredita que o homem nasceu nos males de todo gênero, e quando se reconhece que o bem e o mal existem, e que um é oposto ao outro; e quando se acredita que há uma vida depois da morte, que há um Inferno e um Céu, e que os maus vão para o Inferno, e os bons para o Céu? O homem natural considerado em si mesmo, quanto à sua natureza, não difere em nada da natureza das bêstas, é igualmente feroz; mas é tal quanto à vontade; entretanto difere das bêstas quanto ao entendimento; êste pode ser elevado acima das cobiças da vontade, e não somente as ver, mas também as moderar; daí vem que o homem pelo entendimento pode pensar, e pelo pensamento falar, o que não podem as bêstas. Qual é o homem de nascença, e qual será se não for regenerado, pode-se ver pelas bêstas de. todo gênero; será tigre, pantera, javali, escorpião, tarântula, víbora, crocodilo, etc.; se não fosse, pois, pela regeneração transformado em ovelha, que outra cousa seria senão um diabo entre os diabos do Inferno? Então se as leis do govêrno civil não detivessem tais homens nas ferocidades nascidas com êles, não se precipitariam um contra o outro, e não se degolariam, ou não se arrancariam até suas camisas? Quantos não há no gênero humano que sejam sátiros e príapos, ou réptis ou quadrúpedes? e qual dêstes ou daqueles não se torna macaco, a menos que seja regenerado? E’ a isso que conduz a moralidade externa, que aprendem a fim de esconder seus internos.

O Palco e eu

Papai dizia que o palco era uma fuga. Um jeito de eu me ausentar das obrigações, dos compromissos com a escola e os deveres de casa. No fundo ele achava que eu buscava o teatro porque não era boa o bastante para a matemática e a química. Queria que eu fosse engenheira, como ele. Acho que nunca superou o trauma de não ter um filho homem.

Mamãe dizia que o palco era vaidade. Era o meu jeito de ficar distante das pessoas, de olhá-las de cima, de provar que eu era melhor. Ela não faz idéia de como é difícil ser o centro das atenções, ser o tempo todo observada e julgada. Ela nem imagina o quanto o palco exige de precisão, de humildade e auto-domínio. Os orgulhosos e egocêntricos, esses são os primeiros a naufragarem no tablado; eles amam demais a própria vida, o próprio jeito de ser e falar; não conseguem se entregar com sinceridade à arte de ser outro. O palco – e isso mamãe nunca vai entender – é para quem se odeia. Quem tem orgulho de si não dura um segundo ali em cima.

E no entanto eu não posso dizer que eu ame o palco. Eu não o amo nem odeio. Eu não o escolhi. Foi ele quem me convocou, com sua escuridão, sua distância, seu espaço infinito. Quando o pisei pela primeira vez me senti em casa; me senti simplesmente como se eu estivesse encontrando meu lugar. E isso nem meus colegas entendem, eles que tanto falam em tensão e frio na barriga. Eu não sinto nem frio nem calor. Para mim, o palco é uma fatalidade: é o único lugar onde minha solidão faz sentido.

Por isso eu errei tanto em ouvi-los. Eles não queriam em orientar, não queriam de forma nenhuma que eu encontrasse o que era sagrado para mim. Mamãe falava em dinheiro, papai falava em abandonar fantasias tolas. E aos poucos foram me convencendo que o palco não era sagrado; conseguiram infestá-lo com a futilidade e a tolice que no fundo pertenciam apenas às suas próprias vidas. Eles, que já não sabiam mais o que amar, não podiam tolerar que alguém conservasse seu maior amor.

O Poder vermelho

Mamãe cortava, lixava, arrancava cutículas. Eu, no meu canto, só podia pensar que aquilo era bobagem. Por que não resolver tudo com um simples cortador de unha? Pele, água quente, esmalte, a dor, sim, era quase nenhuma, mas e o tempo? Porque não gastá-lo com um livro ou filme? Por que o trabalho inútil de criar mais uma superfície onde já havia uma casca bastante eficiente, ainda que dura e fria? E depois, a corrosão. A segunda casca se desfazia e era preciso gastar mais uma tarde para uma nova camada de tinta. Desde cedo eu sabia que seria muito diferente de mamãe. Minhas unhas ficariam expostas, não havia motivo para cobri-las. Os homens que se conformassem. E as mulheres, eu as olhava de cima, não desperdiçava meu tempo e meu dinheiro com cores inúteis. Eu tinha mais o que fazer com minhas tardes de domingo.

Mas, quando ele apareceu, eu vi nos seus olhos alguma coisa mais firme e convicta que minha petulância. Ele parecia satisfeito consigo mesmo, e isso me assustava, eu que tanto tentava me transformar. Eu queria descobrir que força era aquela que o sustentava, que chão ele tinha achado para pisar no meio de tanta onda imprevisível. Mas ele não se revelava, ele apenas me olhava daquele jeito limpo e sereno. E fui aos poucos percebendo que era preciso encontrar outro meio de indagá-lo, era preciso submetê-lo a algum inquérito definitivo e silencioso, e o problema é que eu não tinha nem idéia de como começar. Foi quando aquelas lembranças vieram à minha mente com a força imprevista de um pequeno impacto. Procurei mamãe, vi as suas mãos cruas e pálidas, e senti medo. Pensei em lhe perguntar por que não havia mais cor, mas logo percebi que a resposta não me saciaria. Eu estava inquieta, arisca, obscuramente revoltada. Eu precisava de um ritual, não de uma explicação. Desci as escadas correndo – nem sei por que fui pelas escadas – e confesso que me senti um pouco derrotada quando paguei pelos pequenos vidros vermelhos. Mas depois, trancada no quarto, fui aos poucos recuperando minha confiança e lucidez. O contorno tinha de ser nítido; a cor, uniforme e compacta. Aquela pequena superfície tinha o dever intransferível de atestar toda a minha solidez. Saí do quarto sentindo uma alegria estranha e completamente nova para mim. Acho que pela primeira vez na vida senti vontade de mostrar algo à mamãe. Ela pegou minhas mãos, reparou nelas, contemplou-as como quem contempla de longe o vôo de um pequeno pássaro. Senti que uma nova compreensão, profunda e silenciosa, se instalava entre nós. Quando ele me ligou, não fiquei surpresa. Eu também tinha achado um chão onde pisar. As ondas começavam a se tornar previsíveis, como a órbita da lua, que as gera e justifica. O ritual estava concluído.

A Cidade Encarnada

O quarto tem espelho até no teto. Espelho demais para quem a princípio não quer recordar esta noite. Mas, quando ela apaga a luz, os neons vão entrando pela janela e colorindo o escuro com uma cor esotérica, um espectro que permeia e transcende nossos reflexos. O momento ganha o caráter de um estranho ritual sagrado. Eu penso que ela vai fechar a janela, mas ela se despe também para os edifícios, mostrando que não quer que eu seja o único destinatário da sua nudez. Sua pele branca bem pode ser uma espécie de chama, o centro do ritual, que vai aos poucos se aproximando e ganhando um contorno nítido de corpo feminino. As sobrancelhas, eu as diviso antes que os olhos, porque são mais escuras e sobressaem na pele por contraste. Só depois os olhos me tomam e me absorvem no pequeno transe. Quando eu desligo o som, já ouço a canção verdadeira, aquela que vem do cheiro marinho e acanelado do seu corpo. É essa a música que não cessa, quando sinto seus cabelos cobrindo meu rosto e seu corpo se apoderando avidamente do meu. Abro os olhos levemente exasperado, porque algo dentro de mim ainda quer entender minimamente o que se passa. Então vejo as luzes que escorrem pelo seu corpo, as letras reluzentes da cidade, as promessas de futuro, de prazer e de limite. Compreendo vagamente que não é ela que me possui, é a cidade que escolhe um corpo de mulher para me absorver e consumir numa noite sagrada. Me entrego novamente ao escuro, a minha canção mais íntima flui pelo meu corpo com a delicadeza e a precisão de uma chuva. É a prova de que algo dentro de mim compreende e aceita o amor daquela cidade. Depois a garota está sentada na cama, já vestida, o pequeno capuz lhe cobre as sobrancelhas. Ela permanece em silêncio quando pago a conta, e decido guardar a pequena nota como um registro histórico da nossa noite. Em casa, revejo a nota e a foto que tiramos horas antes num bar – eu sorrio e olho para a câmera, ela está séria, fitando o nada, como se intuísse o que havia de inevitável no nosso encontro. Só então me dou conta do absurdo que tento fazer. Tento manter em papel algo que só cabe à minha pele, e talvez à mucosa fina dos meus lábios. Rasgo a nota, a foto, e o que mais havia de lembrança falsa daquela noite improvável. Decido não tomar banho, para que algo dela fique gravado nos lençóis. Mas, no dia seguinte, já nem os lençóis testemunham a canção sagrada que meu corpo entoou naquela noite. No bolso da jaqueta, encontro um número de telefone. Mas sei que do outro lado vou encontrar apenas uma mulher, não mais a maravilha irrepetível de uma cidade em carne e osso. Porém não há nada na TV, é um dia de chuva e não quero ficar sozinho. Disco os número, resignado.

— Quem é? — Ela me humilha com sua desconfiança.

— Sou eu — respondo, derrotado. — Eu mesmo… apenas eu.

O Roqueiro Burocrata

Baseado em argumento de Maurício Gouvêa

O Roqueiro Burocrata não começou como burocrata. Ele era muito jovem — treze anos — quando ganhou sua primeira guitarra. Mas já era audacioso. Não comprava revistas com as cifras das canções. Achava que era questão de honra tirá-las de ouvido. Depois já não comprava discos. Queria memorizar os acordes na primeira audição. Nem sempre conseguia, mas fazia progressos vertiginosos, isso era fato.

Quando começou a tocar nas festas de amigos, não aceitava dinheiro. Queria apenas o beijo da garota mais bonita, aquela que sabia interpretar seus olhares e esperar até o fim da festa para ficar com o geniozinho da guitarra. Ele ganhava os beijos, ela ganhava a inveja das amigas. Mas nessa época ele ainda não cantava. Seu coração se apertava quando ele tentava cantar o amor. Sentia que algo dentro dele ainda não era grande o bastante para querer transbordar. Foi só depois do primeiro grande fora — só depois que a mulher mais linda do mundo preferiu um advogado de terno e gravata e contracheque — que ele aceitou que o amor afinal não era assim tão nobre para exigir mais que sua humilde voz. E o curioso é que, depois disso, sua voz melhorou e se elevou à altura do amor. É o mistério da beleza: ela só se entrega a quem se descobre infinitamente menor que ela.

E foi assim que o Roqueiro Burocrata — naquela época ele ainda não era burocrata — se tornou o melhor roqueiro do mundo. Quando ele cantava, era o mundo que cantava a si mesmo pela sua voz. Quando ele tocava, era o que sobrava do mundo que encontrava lugar na sua guitarra. E nada passava indiferente à voz e às mãos do Roqueiro Burocrata, e ele era o melhor, embora só quatro pessoas soubessem disso: seu amigo Lucas, o Carlos, o Marcos Flávio, que era dono do estúdio onde eles gravavam, e a filhinha do Marcos Flávio, que ficava com o papai enquanto ele mixava as gravações. E mais umas cinco ou seis pessoas sabiam do fato quase secreto: eram as pessoas que compraram seu primeiro disco e jamais viram sua cara, nem tinham a menor vontade de conhecê-lo, mas simplesmente sabiam, como sabemos o que é um sorriso e o que é a chuva, que ele era o melhor do mundo no que fazia.

Mas algo obscuro se passou na alma do Roqueiro Burocrata — talvez a falta de dinheiro, talvez outro tipo de desesperança — e ele começou a pensar que o sucesso não era uma questão de ser o melhor. O sucesso tinha algo a ver com contratos, horários, camarins com banheiras e ar condicionado, gravadoras que investiam 30 por cento em publicidade, direitos autorais e turnês. E a música não era mais o único lugar onde ele reencontrava sua fé. A música era um dever de casa que ele fazia em troca do seu quinhão de mundo.

E todos passaram a ouvir o Roqueiro Burocrata. Todos, menos aqueles cinco que haviam comprado seu primeiro disco e sabiam que ele era o melhor do mundo. Agora ele era conhecido do mundo, mas era apenas mais um. E o curioso é que ele mesmo não notara a diferença, porque quando subia no palco, e cumpria seu dever profissional, as pessoas que estavam no show também queriam apenas cumprir algum protocolo. Estavam ali para agradar ao namorado, para esquecer os pais, para encontrar os amigos, para aproveitar a promoção de assinante de jornal, para usar os ingressos que haviam ganhando na campanha da empresa, enfim, tinham ido ali por qualquer motivo, menos pela música. E o Roqueiro Burocrata também não tinha ido lá para fazer música. E de fato sua música não encontrava os ouvidos de ninguém, e quando tudo acabava, ele ligava para a mulher e dizia: “Terminamos mais um amor; em breve poderei voltar para casa.”

E foi assim que o Roqueiro Burocrata deixou de ser músico e se tornou apenas um roqueiro burocrata. Mas até hoje ninguém notou a diferença. Nem mesmo ele.

Critérios

Declaração de Ronaldinho à imprensa:

“Posso curtir um traveco de vez em quando, mas nunca matei meu filho”.

Declaração do ex-prefeito de Nova Iorque:

“Pelo menos eu tenho bom gosto”.

Declaração de Ronaldinho ao ver o traveco sem roupa:

“Nossa, que clitóris grande”.

Enquanto isso, em Brasília…

Entreouvido no Congresso Nacional:

“Posso ter desviado 100 milhões, mas nunca matei um filho meu!”

O que é religião?

1ª resposta: olhando por fora:

O que é religião? Como responder essa pergunta sem orar a pedir a ajuda de Deus? Talvez possamos começar nos perguntando o que há de comum entre todas as religiões. Se fizermos essa investigação — e não é tão difícil —, descobriremos, talvez surpresos, que o que há de comum a todas elas curiosamente não é Deus. Ele está de fora de algumas e é plural em outras. Porém, existe uma coisa, um elemento comum que não está de fora de nenhuma religião conhecida, e é ele que nos fornece a chave para compreendermos todas as religiões, inclusive a nossa, caso tenhamos alguma. Trata-se do “depois-da-morte”. Os deuses das várias religiões, divergem infinitamente. Tente comparar, por exemplo, o deus do judaísmo com o deus do cristianismo e você ficará convencido de que jesus e moisés falavam de seres diferentes. No entanto, compare o inferno judaico com o inferno cristão e você verá muita semelhança. Curiosamente, o inferno cristão também se parece bastante com o hades. Mas, pouco importa se eles se parecem ou não, o que importa é o seguinte: o discurso sobre o que há depois da morte está presente em todas as religiões. Todas. Depois da morte há o céu e o inferno, depois da morte há a reencarnação, depois da morte há uma segunda vida, não importa, no momento, qual a sua opção, o que importa é que todas as religiões respondem à questão sobre o que há depois da morte. Assim chegamos a uma definição segura. Não corremos mais o risco de encontrar uma religião e não sabermos mais com o que estamos lidando: religião é um discurso sobre o que há depois da morte.

2ª resposta: olhando por dentro:

O mais interessante é notar que essa definição, não é coerente apenas quando olhamos as religiões de fora, mas também quando as olhamos de dentro. Note só: quem poderia saber o que há depois da morte? Ou alguém que esteve lá ou alguém que conversou com quem esteve lá. Ora, mas todas as religiões são fundadas em experiências nas quais o sujeito, ou vai para o “depois-da-morte”, ou conversa com alguém que está lá. Moisés conversou com Deus, e Deus estava no “depois-da-morte”, por isso mesmo ele podia dizer o que havia lá. Jesus era o próprio Deus e por isso sabia o que havia depois da morte, pois ele mesmo fez aquele lugar. Maomé falou com um anjo, e, sendo anjo, ele também habitava o “depois-da-morte”. Alan Kardec falou com espíritos e eles estavam no depois da morte. Swedenborg falou com anjos e eles estavam no depois da morte. Toda religião é fundada numa experiência sobre-natural na qual o sujeito fundador fala com algum ser que sabe o que há depois da morte, ou então esse sujeito fundador é ele mesmo transportado para o depois-da-morte e volta para nos contar o que há lá. O cristão não vai negar que sua religião lhe revela o que há depois da morte. O judeu também não, o budista também não, o muçulmano também não, etc. E o filósofo ateu também não vai negar que a religião diz o que há depois da morte, com a ressalva de que ele talvez não acredite nisso. Então, quando eu digo que “religião é um discurso sobre o que há depois da morte” não quero reduzir as religiões a isso, pois elas são, obviamente, mais do que isso; quero mostrar qual o traço distintivo da religião, aquilo que ela tem que outras áreas do conhecimento não têm e que a torna o que ela é. Essa definição, como já disse, funciona quando olhamos as religiões a partir de dentro, acreditando nas suas premissas, e funciona quando a olhamos de fora, quando não acreditamos. Você pode não crer em nenhuma religião ou crer simultaneamente em mais de uma, o que você não pode é negar que as religiões – inclusive a sua – dizem o que há depois da morte. E como a morte é um princípio auto-evidente – alguém aí duvida que vai morrer? – podemos dizer que essa definição é filosófica.

Religião e ciência

Agora que sabemos o que é religião fica fácil distingui-la da ciência.

Editando Bíblias

Um dia eu acordei e percebi que estava sem dinheiro. Fiquei chocado, pois isso nunca tinha me acontecido. Papai havia me sustentado na juventude, depois arrumei facilmente um emprego de funcionário público — por que as pessoas acham tão difícil passar em concurso?— e ainda fiz alguns trabalhos para editoras e jornais, como freelancer. Eu nunca tinha passado pela situação constrangedora de receber uma fatura de cartão e não ter como pagar.

Então olhei para o teto e pensei: preciso ter alguma idéia brilhante. Fiquei aguardando alguns minutos em meditação, até que a idéia apareceu, rápida e clara, luminosa e precisa como reflexo de prata.

Peguei o catálogo, procurei pelo número de uma conhecida igreja protestante da região, e marquei uma entrevista com o pastor.

Chegando lá, fui direto ao assunto:

— Olha, senhor pastor, não sei se eu deveria fazer isso, mas é que trabalho numa gráfica e esta semana recebemos um pedido de cinco mil exemplares de Bíblias Católicas. Como sou protestante, fiquei preocupado. Será que eles estão convertendo tanta gente assim? Por que será que precisam de tantas Bíblias?

O pastor agradeceu muito pela conversa e disse que em breve voltaria a falar comigo. Na mesma semana ele me ligou, encomendando duas mil bíblias protestantes. Repassei minha encomenda à gráfica, e adicionei minha comissão ao preço final.

Imediatamente liguei para a paróquia e marquei uma entrevista com o padre. Disse que as igrejas protestantes estavam tendo um crescimento vertiginoso. Mencionei o jornal da Igreja Universal, com tiragem cada vez maior, e a recente encomenda de duas mil bíblias protestantes na minha gráfica. O padre agradeceu meu alerta e disse que ia conversar com o bispo. Tive o cuidado de deixar o meu cartão, e dizer que, como eu era católico, faria de bom grado um desconto de vinte por cento, caso eles viessem a negociar comigo. Na semana seguinte – a administração da Igreja Católica é mais lenta – recebi um telefonema do bispo encomendando o trabalho. Tive o cuidado de exigir um depósito como sinal, pois já tinha ouvido falar que esse pessoal de batina é meio descuidado com finanças.

Assim meu negócio foi crescendo. Mas eu sentia que ainda não era hora de parar. Sentia que podia ir mais longe.

Meu amigo Marcel Bilucas dirigia uma pequena ONG a favor do aborto. Apesar de modesta, a ONG contava com mais de 20 funcionários, que realizavam tarefas de muita importância, como pegar os filhos de Marcel na escola, pagar suas contas, etc. Liguei para ele, e mencionei as encomendas católicas e protestantes, disse que estava havendo um revival do cristianismo, como mostrava o sucesso inesperado do filme do Mel Gibson.

— Se continuar desse jeito, eles logo vão chegar ao poder, e aí adeus ONG’s laicas.

Marcel era um homem inteligente. Percebeu rapidamente o tamanho do problema, e ficou desesperado. Felizmente eu tinha a solução. Minha proposta era lançar uma coletânea de artigos de renomados ateus, denunciando toda a falsidade e charlatanismo das religiões. Esses “renomados ateus”, graças a Deus, estavam todos mortos e não nos cobrariam os direitos autorais. Eu, como ateu militante, e sócio de uma nova gráfica, cobraria apenas os custos da edição. Alguns livros seriam vendidos, outros distribuídos em escolas públicas, trabalho mais do que justo, já que era necessário prevenir as crianças contra a ilusão entorpecente da justiça divina.

Marcel ficou comovido com minha atitude, e disse que não era justo eu lhe cobrar apenas os custos. Ele levantaria dinheiro público e pagaria a gráfica e meus honorários com o maior prazer.

O livro “Deus — Uma ameaça” foi um sucesso, e muitos artistas compareceram à festa de lançamento (também patrocinada com dinheiro do estado). Marcel ficou contente com minha atuação e combinamos que reuniríamos artigos de gente famosa da mídia para mais uma coletânea no ano seguinte. Disse que esse trabalho tinha de ser pelo menos anual, não podíamos deixar a idéia morrer no número um. Fiquei contente, apenas lamentei que os autores que ele mencionou – intelectuais e jornalistas – estavam vivos e teríamos de lhes pagar os direitos autorais. Mas Marcel tinha conexões na política e talvez conseguisse mais dinheiro do estado.

Tirei umas férias em Cabo Frio e foi lá que descobri Henrique Shuzman, um cabalista do maior calibre, ainda desconhecido do grande público por mera falta de oportunidade. Falei-lhe da importância de divulgar a religião judaica em nível mais abrangente. Se o cristianismo voltasse a crescer – mencionei o filme de Mel Gibson – quem poderia garantir que os judeus não perderiam direitos nos estados cristãos? Henrique era um homem inteligente, compreendia a importância da guerra cultural. Em pouco tempo me mandou seus manuscritos, os quais eu mesmo revisei e mandei editar. O faturamento da editora já me permitia pagar o bufê da festa de lançamento.

Nesse meio tempo larguei o emprego de funcionário público. Pode parecer loucura, mas minha presença na editora rendia mais dinheiro. Procurei me aproximar de diversas entidades religiosas, mostrando a importância da guerra cultural para expandir os horizontes da religião e atrair mais fiéis. O pessoal da comunidade muçulmana encomendou uma edição luxuosa do Corão. Fiquei tão emocionado que quase me converti, mas lembrei que isso me deixaria em dificuldades com meu amigo Belucas e aí, adeus dinheiro do estado. Também tive relações estreitas com o pessoal da Ubanda, e fiquei surpreso com sua consciência da importância de difundir os valores e símbolos da cultura negra.

E foi basicamente assim que consegui dinheiro para pagar várias faturas de cartão de crédito. Um dia notei uma coisa interessante. As mesquitas muçulmanas da minha cidade ficavam próximas a uma igreja protestante. Tive uma idéia um pouco macabra, e tentei evitá-la. Mas um dia as faturas voltaram a me incomodar e tive de colocar a maldita idéia em prática. Liguei para os protestantes e falei:

— Olha, isso pode parecer estranho, mas os muçulmanos estão se armando. Tenho uma importadora de armas, e eles encomendaram 60 peças de mão esta semana. Estou avisando porque sou protestante e detestaria ver a nossa igreja em dificuldades…

Na mesma semana eles me ligaram de volta.

Ah, Deus sabe o quanto eu amo a diversidade religiosa.

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