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Criaturas e caricaturas

Por um motivo ou por outro estou lendo A última tentação de Cristo do Nikos Kazantzakis. Livro indexado pelo Vaticano como herético e blasfêmico. Ainda não vi motivo. Mas o trecho que transcrevo a seguir pareceu-me relevante neste imbróglio sobre criaturas e caricaturas.

“My principal anguish and the source of all my joys and sorrows from my youth onward has been the incessant, merciless battle between the spirit and the flesh.

Within me are the dark immemorial forces of the Evil One, human and pre-human; within me too are the luminous forces, human and pre-human, of God – and my soul is the arena where these two armies have clashed and met”.

Por conta desse trecho decidi que vale a pena atravessar as mais de 570 páginas do volume em inglês que adquiri na Amazon. Sem querer estetizar (e porque não? Os místicos cristãos não afirmavam exatamente isso da comunhão com Deus?? Não é isso que está implicado na caricatura com a qual o Yuri presenteou o Fiume??) o fenômeno da fé, sem querer reduzir o divino ao belo, acredito que a idéia de experimentar o sagrado como um conflito sempre pareceu-me mais verdadeira, mais substancialmente humana do que a plácida tranqüilidade do monge tibetano, ou a alegria mansa e bocó do êxtase místico.

Por outro lado, a imagem da batalha não poderia ser mais dramática ou trágica. Implica a existência de uma instabilidade tectônica nas profundezas da alma, de um eqüilíbrio precário, quase esquizofrênico, entre Sade e Francisco; entre o riso e o escárnio.

Daí quando vejo textos cobrando coerências sociológicas ou morais fico com uma preguiça danada. O que pode ser mais inútil do que identificar no outro o pólo negativo de um conflito que explode dentro de nós mesmos?

Parafraseando o poeta: para o diabo com essa santidade comedida e pacífica, cujo mantra principal é a superação do conflito. O conflito é a essência da religião. Se ele toma uma forma civilizada em sua expressão (a arte, por exemplo) tanto melhor, mas nem sempre é assim. O Cristo de Kazantzakis assume o conflito numa imolação da carne em busca da transcendência, numa implosão. Ele abre mão do humano. É um caminho. Em Maomé este mesmo conflito explode no frenesi da luta, no sangue quente e amargo do inimigo, tomado de um só gole na comemoração da vitória (ela mesma cheia do furor do encontro com o divino).

E no entanto eles são o mesmo. Em sua quietude e em seu furor, a batalha entre espírito e carne, entre o humano e o divino, é rigorosamente a mesma. O mais pacífico monge e o mais sanguinário homem-bomba são tributários da mesma fonte religiosa:

“Struggle between the flesh and the spirit, rebellion and resistance, reconciliation and submission, and finally – the supreme purpose of the struggle – union with God: this was the ascent taken by Christ, the ascent which he invites us to take as well, following in his bloody tracks”.

Para os mulçumanos o sofrimento não tem o mesmo peso teológico. Não há Cristo para eles, esta é a chave e a razão maior do nosso estranhamento: morrer na cruz não é uma opção. O conflito entre o divino e o humano é experimentado com o punho fechado e não espalmado, à espera do prego, como nos foi frouxamente ensinado na catequese de domingo.

Portanto o que está em jogo não é a religião, este conflito interno e terrível, mas visões de mundo, desdobramentos políticos de soluções conflitantes para o mesmo problema. O Islã não baixará a cabeça e aceitará o sofrimento como nós o fazemos, seria preciso que aceitasse Cristo para tanto. Ele lutará contra o que considera uma ameaça e lutará acreditando que Deus está ao seu lado. Nós também o faremos, parece quase certo. Contudo, é bom lembrar: Deus sempre estará do lado vencedor.

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2 Comments

  1. Muito bom, Daniel. Kazantzakis foi o primeiro escritor que li na casa da Hilda Hilst, que o amava. (Leia aqui trechos de Ascese, que então copiei no meu diário.)

    No momento, estou terminando de ler as Confissões de Agostinho, que também entendia da coisa. Além de humano e filho de Deus, o cara era escorpiano, coitado. Viveu profundamente esse conflito carne/espírito, não era de ferro.

    Teve um filho com a amante. Aos 30, professor de retórica, tornou-se noivo duma menina de 10 anos de idade, de sorte que vivia na gandaia pois uma lei romana proibia o casamento com mulheres menores de 12 anos. Ele não agüentava esperar. (Isso tudo no século IV.) Sua conversão foi dolorosa – como todas – mas encontrou a paz do Sentido, da fé. (A fase seguinte é como navegar: você continua não podendo fugir das tempestades, das ondas gigantescas, dos tubarões, mas por ao menos saber em que direção fica o norte, tudo é mais suportável, tudo é menos assustador, tudo é mais vivo.) Agora, o louco é o seguinte: embora ele tenha abraçado a castidade, que antes via como algo irrealizável (descobriu que era um dom), mesmo nos dias em que escrevia as Confissões, continuava tendo sonhos eróticos… Freud (que segundo Facundo Cabral é filho do capeta) adoraria essa história. Ainda falarei sobre esse livro.

    Um “outro livro” – tchan tchan tchan tchaaaan – fala sobre como Jesus também passou por uma dessas situações com Rebeca, filha de Esdras, completamente apaixonada por ele e, portanto, também ele esteve

    frente a frente com mais um desses problemas com os quais todos os seres humanos comuns têm de confrontar-se e optar. De fato foi ele “testado, sob todos os aspectos, como vós o sois”. (Fonte.)

    Uma fé indestrutível não significa uma vida tranqüila. Do contrário Jesus não teria sido crucificado…
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  2. Yuri, meu velho, acho que a “tese” do Kazantzakis é a de que o conflito não é resolvido pela fé. As tempestades e os tsunamis não ameaçam o barquinho, como se ele fosse uma unidade compacta. É muito mais a idéia de que a fé é uma jangada mal arrumada, na qual os troncos estão insistentemente querendo soltar ou subir uns nos outros. A fé é um projeto instável. E eu acho que Agostinho confirma essa tese. Mas faz tempo que eu li o bispo de Hipona.

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