Lembram-se deste documentário do GNT? Ele foi realizado pelo cineasta Luiz Fernando de Carvalho durante uma viajem ao Líbano, juntamente com Raduan Nassar, cujo objetivo principal era pesquisar o ambiente social para o filme Lavoura Arcaica. Aliás, um belíssimo filme. Não era um documentário político, por isso apenas tangencialmente intrometia-se com Hamas e Hezbollah. Seu objetivo era mostar como viviam, diariamente, os libaneses. Há ali um Líbano que não aparece nas manchetes dos jornais, que não é filiado ao partido de Deus (nenhum deles todos que são um? Alguém entende?); um Líbano de existência milenar.
Ao assistir o documentário, a certa altura, me dei conta de que havia uma perspectiva de vida se formando no Líbano, algo que nunca foi claro para as gerações que nasceram durante os 20 anos de guerra civil aditivada pelo eterno conflito Israel-Palestina (1970 – 1990). Depois de passar a década de 90 inteira reconstruindo seu país, os libaneses – principalmente a juventude – podiam começar a conviver com uma coisa bastante trivial para nós: uma idéia de futuro.
Isto parece difícil para alguns entenderem, inclusive alguns libaneses. A troca de mísseis entre Israel e o Hezbollah destrói a idéia de futuro tão cara a qualquer povo ou nação. Na verdade é bem simples: acordamos e dormimos, estudamos e trabalhamos com o futuro em perspectiva, um futuro individual e coletivo, formado pelos nossos sonhos e pelos imperativos morais que brotam dos nossos semelhantes, principalmente aqueles com quem compartilhamos este futuro. Ora, faz algum sentido mandar seus filhos à escola se não haverá possibilidade de trabalho amanhã? Se nem mesmo água e comida estão garantidas? Faz sentido ter filhos ou netos, pensar em ser filósofo, jornalista, professor, engenheiro? A guerra contra o terror é de Israel. A guerra contra Israel é do Hezbollah.
Já vejo o levantar das sombrancelhas: “o governo libanês dá apoio ao Hezbollah, não consegue impedi-lo de atacar Israel”. Considerem o seguinte contexto: a Síria abandonou oficialmente o Líbano apenas em 2005, depois do assassinato de Rafik Hariri. Israel em 2000. Se era necessário compor com o Hezbollah para construir as bases de um regime democrático autônomo, que fosse feito. Assim aconteceu em outros lugares e a intromissão, durante décadas, de uma guerra alienígena pode muito bem justificar. Da mesma forma que Israel não poderia deixar criminosos atacarem seu país, os libaneses não merecem ter seu futuro sequestrado nem por Israel e nem pelo Hezbollah. Não há saída fácil, mas como estou me posicionando pelo viés libanês, é preciso assumir alguns riscos.
Do meu ponto de vista não há a mínima diferença entre Hezbollah e Israel. Ambos destróem a existência de um futuro para o Líbano. No sentido mais profundo de existência: uma possibilidade de ser no mundo.
Um amigo libanês disse-me que ninguém quer ou aceita um Líbano independente. É plausível. Se olharmos a geografia do conflito ele está no meio do imbrólio todo. Um Líbano independe significa, para ambos os lados, uma possibilidade de autonomia e de opção no conflito. Será que os palestinos e árabes estão dispostos a abandonar sua influência no país? Será que Israel permitiria um Líbano independente?
Por fim, há, claro, uma justificativa bem pessoal para este post. Não sei se já comentei por aqui, mas sou descendente de libaneses. Aliás, o Raduan Nassar é a cara da minha falecida avó Hilda (mas ela ficava linda “de” Raduan Nassar, mais até que o próprio). Há pouco tempo recebemos a notícia da existência de uma tia, chamada Jamila, fruto de um caso do meu avô em Beirute. Antes disso tudo começar, ela nos enviou uma carta em árabe. A fim de traduzi-la, meu tio fez uma peregrinação à rua 4, no Centro da cidade (omito as partes que dizem respeito diretamente à família). Na carta Jamila afirmava que o Líbano estava lindo. Beirute estava quase toda reconstruída e já era possível perceber, novamente, o charme cosmopolita que sempre a marcou. As pessoas estavam excitadas com o futuro, com os turistas, com a possibilidade de crescer. Convidou-nos a visitar o país e a mandar notícias. Através de seus olhos vi um Líbano de desertos e montanhas, cheio de esperanças, berço da minha genética mais arcaica.
O que posso dizer? Tia Jamila, que seus olhos sejam atendidos.