“and the historical sense involves a perception, not only of the pastness of the past, but of its presence.” (T. S. Eliot)
A parte simples:
O sexo gera filhos. Se você duvidar dessa afirmativa, não será difícil verificá-la. Pegue uma mulher. Durante dez anos, faça apenas sexo anal com ela, e não deixe que nenhum outro homem a penetre. Deixe que os outros a vejam, toquem-na, beijem-na no rosto, na boca, mas não deixe que ninguém faça sexo com ela, e você mesmo só fará sexo anal com a coitada. Você verá que ela não vai engravidar. Depois volte a fazer sexo normal com ela. Se você e ela forem saudáveis, e ela não tomar anticoncepcionais (não a deixe tomar anticoncepcionais!), você verificará que sexo engravida.
Pegue outra mulher. Tranque-a numa cela ou num palácio. Chame-a de “Virgem Divina” se você quiser, (mesmo que ela não seja virgem), mas não deixe que ninguém faça sexo com ela. Durante toda a vida da pobre mulher, faça com que ela permaneça trancada, com acesso apenas a outras mulheres. Você verificará que a pobre nunca vai engravidar. Então ficará provado. A geração de filhos depende do sexo. A mulher que não faz sexo não engravida, a mulher que faz sexo engravida. Depois você vai descobrir que é o sêmen que engravida e não propriamente o sexo, mas isso já é um aperfeiçoamento da experiência; por hora basta o sexo mesmo. O importante é notar que a ciência fala sobre essas coisas: as coisas que podem ser refeitas e verificadas por qualquer ser humano. Podem ser experiências complexas ou simples, mas mesmo quando se especula sobre a velocidade dos quarks ou a expansão permanente do universo, nenhum cientista espera que as experiências que verifiquem suas teorias possam ser feitas apenas por ele mesmo. Muito pelo contrário, em ciência, uma experiência só tem validade se puder ser refeita por outra pessoa e levar aos mesmos resultados que a experiência inicial. A característica da verdade científica é que ela pode e deve ser verificada enquanto estamos vivos. Mesmo que isso exija o manuseio de instrumentos complexos e uma inteligência fora do comum, o fato é que a ciência fala sobre as coisas que todos nós podemos conhecer, e, se conhecermos, conheceremos antes da morte.
Agora, já que falamos em sexo, vamos falar sobre o adultério. O adultério é pecado, quer gere ou não gere filhos. Quando traímos, entristecemos a pessoa amada, e isso é pecar contra a caridade, não apenas no cristianismo, mas também no judaísmo e no islamismo. Maomé disse que podemos ter quatro esposas, mas não que poderíamos trair essas esposas com uma mulher solteira ou com a mulher de outro. O adultério é um pecado relativamente grave (no islamismo é punido com a pena de morte) e, quando reiterado sem arrependimento leva ao inferno. Essa última parte é que é importante para este estudo. O adultério leva ao inferno. O sexo por amor, dentro do casamento, leva ao céu. E onde fica o inferno? Onde fica o céu? Não sabemos nem temos como saber, pois, só os conheceremos depois da morte.
Não sei se vocês estão entendendo onde quero chegar. A diferença radical entre religião e ciência não está no modo como elas dizem as coisas, está no assunto de que elas tratam. A ciência trata de coisas que podemos conhecer enquanto estamos vivos. A religião fala do que vai nos acontecer depois da morte. Não existe religião que não fale no que há depois da morte. Se existe, mostre-ma, por favor.
Então a ciência vai falar coisas como: o sexo gera filhos. A religião fala coisas como: o adultério leva ao inferno. As duas afirmativas falam sobre sexo. Só que a primeira fala sobre algo no sexo que pode ser verificado por qualquer ser humano enquanto ele está vivo. A segunda fala sobre algo no sexo que não pode ser verificado por um ser humano vivo. Não se pode ser adúltero, ir para o inferno, e depois voltar para dizer que os padres tinham razão.
(Atenção: não confunda as coisas. Não venha me dizer: “mas você está partindo do princípio de que o inferno existe, e isso, em si mesmo, não é um princípio verificável”. Não estou partindo do princípio de que o inferno ou o céu existam, estou partindo do princípio de que a morte existe. E isso sim, é verificável. Se você acha que não vai morrer, você é um boboca.)
Não é à toa que surgem conversões inesperadas quando um sujeito se aproxima da morte. Os idiotas só percebem o que é uma coisa quando chegam muito perto dela. Os ateus só percebem que a religião fala sobre o que há depois da morte, quando já estão pertinho do inferno.
Recapitulando:
A ciência fala sobre coisas que podemos experimentar e conhecer quando estamos vivos. A religião fala sobre coisas que vamos experimentar e conhecer depois que morrermos.
Essa é a diferença objetiva, óbvia, gritante e inegável que existe entre ciência e religião. Uma nunca vai tomar o lugar da outra. É como pretender que a água tome o lugar da comida ou vice-versa. Comida é comida, água é água, oxigênio é oxigênio, cada um tem sua função, e precisamos de todos eles.
Diante dessa diferença fica claro que é inútil discutir sobre esse ou aquele ritual desta ou daquela religião. O que há de essencial em qualquer religião é que ela é um discurso sobre o que há depois da morte. E que a veracidade desse discurso não pode ser verificada no presente.
A parte Complexa:
Agora vamos à parte complexa. Se você é cristão ou judeu, você acredita que o adultério é pecado, e que o sexo deve ser um ato de doação amorosa entre os esposos. Ora, se você acredita nisso, terá um certo comportamento em relação ao sexo, e isso lhe trará certos resultados práticos e emocionais, diferentes dos resultados que você obteria se acreditasse que sexo é apenas uma questão de prazer. Esses resultados também são objetivos, porém enxergá-los é muito mais difícil que enxergar a radical diferença que expus na “parte simples”. É por isso que comecei pela simples, e não termino pela complexa, porque não me considero capaz de expô-la em poucas linhas. É possível observar os resultados práticos e morais de se crer nesta ou naquela crença, neste ou naquele Deus, mas isso exige um esforço de percepção e análise muito maior e demorado. E esse esforço é tão pessoal e intransferível quanto as decisões morais e o destino que se tem após a morte. Eu estou fazendo o meu, e vocês devem estar fazendo o de vocês. E o pior é que talvez só cheguemos a conclusões definitivas depois da morte. Por mim tudo bem. Se nos encontrarmos no céu, teremos mais tempo para conversar.
Parte simples II
Tem uma parte simples II. A outra diferença gritante que existe entre religião e ciência é a mesma que existe entre depoimento e proposição. Mas outro dia falo sobre isso. Estou com sono.
paulo paiva
Ronaldo,
Eu já tinha tentado argumentar algo neste sentido com o Daniel, mas não consegui ser tão didático! Mas porém entretanto contudo todavia, tenho dúvidas imensas em relação à existência de Deus. Aliás, para mim, o mais provável é que ele não exista. Só que a percepção da “parte complexa” não me deixa ter certeza. abs.
Ronaldo Brito Roque
Cara,
tem uma frase – se não me engano é do Henry Miller – que eu adoro. É assim: “Deus pode até existir, mas ele não pode viver a sua vida por você.” Acho que é importante acreditar em Deus, mas também é importante lembrar que ele não vem ao mundo resolver nossos problemas. Nós é que temos de resolver. Ele cria a possibilidade do bem, mas nós é que temos de colocar o bem em prática.
Por exemplo, aqui no Rio agora está essa choradeira por causa do moleque que foi arrastado. Alguém logo fez uma lei para punir não sei quem. Mas uma lei é apenas uma frase escrita num pedaço de papel. A lei, por si mesma, não pune ninguém. A punição precisa vir por mãos humanas. Enquanto os justos não punirem os injustos, a injustiça vai continuar. Não adianta mandar cartinha, não adianta escrever croniquinha em jornal. Só quando o justo desce o cacete no injusto é que o mundo melhora.
Abraço,
Rbr