Trecho de mais um artigo imprescindível, Quando a alma é pequena:
“(…) Esse medo, por sua vez, revela-se da maneira mais inconfundível na literatura de ficção nacional. Repassando mentalmente as produções maiores da nossa criação romanesca – índice seguro da imaginação das classes letradas –, o que me chama a atenção em primeiro lugar é a falta absoluta de problemas, de enigmas, de perplexidades. O romancista brasileiro limita-se a retratar situações vistas segundo a ótica de uma filosofia ou ideologia preexistente, de modo que tudo no fim parece óbvio e explicado. Não estou falando de escritores ruins, mas justamente dos melhores. Tomem o excelente Graciliano Ramos no mais bem sucedido dos seu livros, São Bernardo , no mais popular, Vidas Secas , ou no mais ambicioso, Angústia . O que se vê nos dois primeiros são equações de sociologia desenvolvidas com a lógica de uma demonstração matemática, a condição de classe dos personagens determinando suas escolhas e produzindo inevitavelmente o destino correspondente: o senhor de terras age como um senhor de terras, a professorinha como uma professorinha, o camponês diante da autoridade como um camponês diante da autoridade. É tudo muito bem observado, muito bem construído, mas não suscita um único “por que?”. No terceiro romance a fórmula parece complicar-se um pouco mediante a introdução de elementos de psicopatologia, mas no cômputo final estes se somam aos dados sociológicos e explicam tudo. Ninguém nega que esses livros sejam obras-primas à sua maneira, mas, se eles nos ensinam algo sobre a vida brasileira e algo sobre como se escreve um romance, não abrem nossa inteligência para nenhuma questão que ali já não esteja de algum modo respondida. Não têm a força fecundante da grande arte literária. O mesmo pode-se dizer de quase toda a produção de Raul Pompéia, José Lins do Rego, Jorge Amado, Lima Barreto, Guimarães Rosa, José J. Veiga, Antônio Callado, Herberto Sales, Josué Montello e outros tantos.
“Você não pode ler o teatro grego, Shakespeare ou Dostoiévski sem perceber que ali se encontra algo de perfeitamente real e ao mesmo tempo inexplicável, lógico e ao mesmo tempo absurdo. Os ensaios de interpretação podem se multiplicar ao longo dos séculos sem jamais dar conta do mistério. A grande literatura de ficção mostra-nos como é a vida humana, mas não pode nos explicar o porquê. Para fazê-lo, teria de subir um grau na escala de abstração, tornando-se análise e teoria, abandonando portanto a contemplação da vida concreta, que é o seu terreno específico. Mesmo os romances mais complexos do século XX, que incorporam elementos de análise filosófica, como A Montanha Mágica de Thomas Mann, Os Sonâmbulos de Hermann Broch, O Homem Sem Qualidades de Robert Musil ou a trilogia de Jacob Wassermann ( O Processo Maurizius , Etzel Andesgast e A Terceira Existência de Joseph Kerkhoven ) não têm por resultado uma teoria explicativa mas a expressão formal concreta de um aglomerado de tensões sem solução. Daí o fascínio mágico que continuam exercendo sobre o leitor por mais que este, eventualmente filósofo ele próprio, se esmere em transformar o egnima em equação. A equação resolvida é sempre genérica, não esgota nunca a infinidade de sugestões embutidas na trama particular e concreta.
“Nada disso se observa em geral na ficção brasileira, uma literatura de segunda mão que nasce do recorte da experiência pelo molde de explicações previamente dadas. A análise das obras esgota rapidamente a problematicidade da sua cosmovisão, não sobrando outro enigma senão, é claro, o do talento individual que encontrou soluções tão boas para a transposição estética de uma vivência espiritual tão pobre.(…)”