Para muitos e muitos, é considerado o maior repórter brasileiro. Da Caros Amigos:

Joel Silveira, o repórter dos presidentes, morreu no último 15 de agosto, aos 88 anos. “A víbora” , como era conhecido, viveu a história de perto, denunciava os medíocres e marcou o jornalismo. Releia entrevista concedida para a Caros Amigos em abril de 2000. Vale a a pena ler de novo!

por Geneton Moraes Neto.

Crianças: silêncio, por favor. Porque vai falar agora o repórter que conviveu com uma galeria completa de presidentes da República. Nome da fera: Joel Silveira. Nosso personagem é o exemplo acabado do que o lugar-comum batizaria de enciclopédia ambulante. Ou testemunha ocular da história, no melhor estilo do velho Repórter Esso. Fala porque viu. (Faça-se o teste. Cite-se um nome. Getúlio Vargas? Joel conheceu pessoalmente, é claro. Ficou impressionado com a maciez da mão do ditador. “Uma mão delicada, quase feminina, de unhas bem tratadas.” Jânio? Jango? JK? Todos eles cruzaram o caminho deste sergipano que pousou no Rio em 1937. De JK, chegou a roubar uma namorada.) Lá vem a “víbora” – era assim que o poderoso chefão dos Diários Associados, Assis Chateaubriand, chamava Joel Silveira, um dos últimos monumentos de uma época romântica do jornalismo brasileiro. (A propósito: quem nomeou Joel como correspondente na Europa em guerra foi Chateaubriand, em pessoa.) Quando gente como Joel povoava as redações, os jornais publicavam reportagens com grife autoral. Hoje, com raríssimas exceções, não há nem reportagem nem grife autoral nos nossos jornalões. Há pelo menos vinte anos Joel não é chamado para escrever nos jornais da grande imprensa, o que diz um bocado sobre a qualidade do texto hoje. Inflada por inumeráveis barris de uísque consumidos nas últimas décadas, a barriga da víbora só falta abrir um rombo na camisa apertada. Dizem as más línguas que, perto de Joel Silveira, um Galaxie – aquele carrão que bebia com a voracidade de um boêmio – seria catalogado como abstêmio. É mentira. A víbora parou de beber desde que se constatou vítima de um mal irremediável: a ausência de amigos com quem pudesse dividir os prazeres do copo. Um a um, todos se foram. Estão mortos. Joel teve de escolher: ou parava de beber ou virava um consumidor solitário de uísque, hipótese que o horroriza. Cravou um “x” na primeira opção. Num arroubo teatral, já se declarou “o homem mais solitário do Brasil’’. As garrafas de scotch, supremo sacrilégio na casa de um bebedor de meio século, viraram peça de decoração desde o já remoto ano de 1992. Hoje, a bebericagem é pra lá de eventual. Aos 81 anos de idade, resolveu deixar crescer uma barba grisalha que lhe dá a aparência de um Ernest Hemingway pousado às margens do Atlântico Sul. É uma fábrica de textos: acaba de lançar A Camisa do Senador (Editora Mauad), uma coletânea de veneno destilado. Dedica-se agora, em tempo integral, à confecção do segundo volume de memórias, previamente intitulado de A Hora Suja – um inventário do Estado Novo e da experiência como correspondente na Itália durante a Segunda Guerra Mundial. Caçadores de revelações indiscretas sobre as maiores celebridades desta República dificilmente sairão de mãos abanando do reduto da víbora – o apartamento 602 de um prédio da rua Francisco Sá, Copacabana, Rio de Janeiro, Brasil. Não há tema candente ou personalidade conhecida capaz de despertar, em Joel, o sentimento da indiferença. Sobre tudo e sobre todos, ele terá ou um depoimento pessoal ou, na pior das hipóteses, uma frase ferina a ofertar aos ouvintes. H.L. Mencken, o papa do jornalismo iconoclasta, chegou ao extremo de escrever artigos atacando instituições aparentemente inofensivas, como os jardins zoológicos (“Mostre-me um garoto que tenha aprendido alguma coisa valiosa ou importante observando um leão velho e sarnento roncando no fundo da jaula ou uma família de macacos disputando amendoins…”). Joel Silveira é titular absoluto de uma das cadeiras da imaginária Academia dos Discípulos de H.L. Mencken. Exemplos: torra tinta e papel há décadas para denunciar os medíocres e os injustos, mas não perde a chance de disparar contra alvos surpreendentes, como, por exemplo, os tocadores de cavaquinho (“são ridículos, quase grotescos”); os alpinistas (“para que servem, pelo amor de Deus?”) ou os turistas em geral. Quando trabalhava na Última Hora, JS viveu uma cena inesquecível. Depois de passar intermináveis minutos, num canto da redação, dedicado à tarefa de observar Joel preenchendo laudas e laudas, o gênio Nelson Rodrigues ergueu a voz para pronunciar uma só palavra, em tom exclamativo: “Patético!” Joel deu o troco. Postou-se diante da mesa de Nelson Rodrigues, encheu os pulmões, soltou um brado retumbante: “Dramático!” A víbora repete até hoje a exclamação. Feitas as contas, considera a humanidade, tudo, todas as coisas, nós todos patéticos. Deve ter razão.
Vai começar a expedição da víbora por sessenta anos de história do Brasil.

Crianças: silêncio, por favor. Porque vale a pena ouvir.

É verdade que o presidente Getúlio Vargas só recebeu você no Palácio do Catete porque pensava que você iria pedir um emprego?
Certamente, porque, como já estava no final do governo, ele não daria entrevista de maneira nenhuma. Getúlio não era de dar entrevista: mandava Lourival Fontes (chefe do Departamento de Imprensa e Propaganda) dar. Nunca deu entrevista, a não ser aquela ao Samuel Wainer. Aliás, Samuel praticamente escreveu aquela entrevista. A verdade é que Getúlio Vargas era intelectualmente preguiçoso. Gostava era de assinar papel, nomear, demitir. Mas me recebeu muito bem, no gabinete presidencial, no Palácio do Catete. Chamou-me de “doutor”. Eu disse: “Presidente, não sou doutor; só fiz o primeiro ano de Direito”. E ele: “Não! O senhor é doutor! Os padres de São Leopoldo, onde estudei, diziam que doutor é quem é douto em alguma coisa. O senhor é douto em jornalismo!” Já estava me corrompendo… Tinha uma conversa amena, agradável. Era limpo. Nunca vi um sujeito tão limpo em minha vida. A camisa, branca, era imaculada. Aliás, ele estava todo de branco, bem penteado, bem barbeado.

Por que é que você prestou atenção nas mãos do presidente?
Notei que as mãos do presidente eram macias, fofas. Getúlio só me cumprimentou na entrada. Terminou me dando as costas na saída. Simplesmente foi embora. Quando lhe passei um questionário – e ele viu que o que eu queria era uma entrevista –, Getúlio se transfigurou. Aquela cara risonha desapareceu. O homem virou uma fera. Jogou o papel assim, na mesa: “O senhor entrega isso ao doutor Lourival”. Em seguida, levantou-se daquela cadeirona pesada – e sumiu.

Você acompanhou do início ao fim os horrores da ditadura do Estado Novo. A imagem de Getúlio, pessoalmente, confirmou ou desmentiu tudo o que você esperava?
Confirmou. Vi que ele tinha empatia, era simpático. Ficava de vez em quando vesguinho quando fumava aquele charuto. Era um malandro, um filho da mãe de uma habilidade política terrível.

Você sentiu, nesse contato com Getúlio, que ele sabia ser envolvente?
Getúlio envolveu todo mundo. Não era corrupto: era corruptor! Era pessoalmente um homem honesto – tanto assim que morreu pobre, não deixou fortuna nenhuma, não deixou dinheiro, não deixou propriedade, não deixou nada. Mas corrompia. Era um craque na maneira de corromper. Também era muito cioso do dinheiro público. As pessoas tinham de prestar conta. Eu saí do palácio de mão abanando, sem a entrevista, mas pelo menos aquele encontro me rendeu uma matéria: conheci Getúlio Vargas.

Que imagem você guardou de Juscelino Kubitschek?
Era um sujeito extremamente simpático. Um mês antes de Juscelino morrer, fui fazer uma entrevista com ele em Luziânia, perto de Brasília, onde ele tinha uma fazendinha, um sítio que ele chamava de fazenda. Juscelino era muito vaidoso, cuidava da imagem, pintava o cabelo. Dona Sara Kubitschek me contou uma coisa tristíssima. Numa hora, durante minha permanência na fazenda, Juscelino teve de sair. Eu e dona Sara ficamos conversando, na varanda. Nesse momento, ela me disse que, logo depois do golpe militar, numa das prisões, os militares deixaram Juscelino vinte dias sem aquela tinta que ele usava para pintar os cabelos. Porque ele pintava diariamente. Fotografaram Juscelino com o cabelo com cores indistintas, marrom, um monstro. Fizeram de propósito – uma sordidez. Era uma revolução de pequenos.

É verdade que você roubou uma namorada de Juscelino?
(De repente, monossilábico) Foi.

Você pode contar como foi?
Ela era taquígrafa da Câmara. Ele queria levá-la para Minas…

Juscelino namorava com ela?
Namorava.

Você tomou a namorada de JK?
(Com voz sumida) Tomei.

Por quê?
Porque ela simpatizou comigo, essas coisas.

Juscelino soube disso?
Soube; ela foi a ele.

Isso teve alguma influência no tratamento que Juscelino dispensou a você quando chegou à presidência?
Não. Uma vez, numa conferência de chefes de Estado latino-americanos no Panamá, eu estava sentado, num hotel bonito. De repente, quem aparece? Juscelino. Veio em minha direção. Ficou falando da inutilidade da reunião. Lá pelas tantas, ele disse: “Como vai a nossa Fulana?” Eu disse: “Nossa, não, presidente”. Ele disse: “Não, a nossa amiga”. Foi só isso. Porque tinha sido muito recente.

Você viajou com Jânio Quadros de navio para a Europa, quando ele era apenas presidente eleito. A fama que ele tinha de ser um beberrão é justa?
Completamente injusta! Que ele bebia, bebia – e muito! –, mas nunca o vi bêbado. Jânio fazia aquela encenação do cabelo despenteado, caído no olho, caspa no paletó. Mas vi, na viagem à Europa com ele, que aquilo tudo era teatro, uma maneira de ele ganhar voto. Estive dez dias com ele no navio. Bebíamos toda noite. Jânio bebia três vezes mais do que eu, misturava uísque com uma cerveja – Guiness –, forte pra burro. Mas, na intimidade, ao contrário do que ocorria no palanque, estava sempre bem vestido, limpo, bem penteado, lúcido, bem articulado. Quando bebia, Jânio nem a fisionomia mudava. Era do ramo.

Há um descompasso entre a figura pública e a figura pessoal desses grandes nomes da história republicana brasileira. Partidários de João Goulart, como o escritor Antônio Callado, diziam que ele não tinha estatura para ser presidente: ele seria no máximo presidente do PTB. Que avaliação você faz sobre João Goulart, hoje, quatro décadas depois de 1964?
Jango era um pobre homem, um estancieiro de poucas, pouquíssimas letras. Não era um político, foi invenção do Getúlio. Nem gostava do Rio de Janeiro, mas soube se cercar de gente boa. O ministério que Jango formou tinha um Evandro Lins e Silva, um Hermes Lima, um Celso Furtado, um Santiago Dantas, Tancredo Neves, eram pessoas da maior qualidade. Mas Jango não tinha consistência, não tinha habilidade política, não era um Getúlio. Depois, criou a fama de comunista. Um encontro longo que tive com Jango ocorreu no apartamento que ele tinha na rua Rainha Elizabeth, no Rio. O que encontrei foi um sujeito extremamente simpático – simplório, até. O apartamento era modesto. Lá estava Jango bebendo uísque com aquela perna sempre estirada. Não conseguia dobrar a perna, tinha tido gonorréia óssea, ficou com um defeito. Nesse dia, Jango me contou que, no final do governo de Getúlio, em 1954, quando a crise engrossou de verdade mesmo, Getúlio o chamou para um canto e mandou que ele, Jango, fosse embora: “És o segundo visado. Então, vá embora”. Deu a ordem. Em seguida, deu a Jango um envelope fechado. “Só abras isso quando chegares lá.” Jango, então, foi embora. Um amigo o acordou na manhã seguinte: “Tenho uma péssima notícia para te dar. Getúlio se matou”. Somente aí é que Jango se lembrou do papel que Getúlio tinha lhe dado. Abriu o envelope. Lá estava uma cópia da carta-testamento. Getúlio esperava que Jango divulgasse a carta no Rio Grande.

Com quais dos presidentes militares você teve contato?
Tive com Castelo Branco, na FEB, durante a guerra, na Itália. Diariamente me encontrava com ele. Eu recebia jornais daqui do Rio que chegavam à Itália com atrasos de um mês, cinco semanas. Castelo me pediu jornal emprestado. Quando foi entronizado como ditador, em 1964, mandou, através de Rachel de Queiroz, um recado para mim e para Rubem Braga, que também esteve na guerra na Itália: gostaria muito de nos ver. Mas eu e Braga conversamos. Chegamos à conclusão de que não dava. Não tínhamos nada a fazer lá.

Você testemunhou um encontro secreto de Tancredo Neves – já presidente eleito – com um general de quatro estrelas, aqui na sua casa, mas não publicou nada sobre o assunto. Por quê?
O que aconteceu foi o seguinte: eu era, desde os tempos da FEB, na guerra, muito amigo do general Ernani Ayrosa – que chegou a ocupar o Ministério do Exército durante o regime militar. O general freqüentava a minha casa. Um dia, quando o Tancredo já tinha sido eleito presidente, o general veio à minha casa: “Preciso falar muito com o presidente! Você o conhece?” Eu disse: “Conheço de vista, mas não tenho intimidade. Mas tenho uma pessoa que o conhece bem”. Era José Aparecido de Oliveira, a quem avisei imediatamente. José Aparecido me ligou de volta, depois de falar com Tancredo: “Pode marcar o encontro”. Eu perguntei: “Mas em que lugar?” Ele disse: “Em sua casa”. Eu me assustei: “Mas não tenho condições de receber um presidente da República e um general de quatro estrelas!” E ele: “Mas tem que ser aí. Não fale com ninguém!” Aliás, foi um pedido que Ayrosa também fez. Arrumei, então, o quarto onde trabalho. Eu sabia que Tancredo bebia uísque, sabia que Ayrosa só bebia leite. Arrumei uma mesinha, botei salgadinhos – e os dois se trancaram lá, sozinhos. Tancredo só saiu do quarto para ir ao banheiro. De repente, quem irrompe no apartamento? Quem? Paulo Francis! Ninguém sabe até hoje como é que Paulo Francis soube. Logo, logo, Paulo Francis começou a ditar regras sobre o que é que Tancredo devia ou não devia fazer. Ficou aquele mal-estar. José Aparecido olhava para mim como se eu é que tivesse avisado ao Paulo Francis, a quem eu não via havia tempos. E eu pensando que José Aparecido é que tinha avisado. É um dos mistérios da minha vida essa história do Paulo Francis. Não tenho a menor idéia sobre o que é que Tancredo Neves conversou em sigilo com o general. Tenho a impressão de que nem Aparecido sabe.

Em algum momento, você, que sempre foi repórter, sentiu aquele impulso de publicar a notícia do encontro?
Não. Porque ali eu não os estava recebendo na qualidade de repórter, mas de anfitrião. Eu jamais faria isso! Um dia depois, me ligaram, não sei se foi do Jornal do Brasil. Perguntaram: “O que Tancredo foi fazer em sua casa?” E eu: “Quem me dera”.

Você gosta de citar uma tirada do poeta Murilo Mendes, católico, que dizia: “Deus existe, mas não funciona”. Você, que se declara ateu, teve a chance de conhecer pessoalmente pelo menos três papas. O que é que ficou desses encontros?
Conheci Pio XII quando ele já era papa, conheci João XXIII, quando ele era cardeal de Veneza, conheci Paulo VI, quando ele era cardeal em Milão. Com Pio XII tive uma decepção terrível. Fui levado ao Vaticano pelo marechal Mascarenhas de Moraes, durante a guerra. O comando da FEB pediu uma audiência ao papa. Mascarenhas me perguntou: “Você não quer ir?” E eu: “Quero conhecer um papa!” Eu nunca tinha visto um, pessoalmente. Aquela coisa austera, aristocrática… O papa – que era poliglota – diz assim: “Brasileiros? Língua muito rica! Sábia é a mulher do sábio. Sabia é tempo de verbo. Sabiá é passarinho – pi, pi, pi, pi, pi, pi”. E foi embora! Poliglota! É como esse Wojtyla – que decora aquelas coisas, diz que sabe oitocentos idiomas. Não sabe. Mal sabe o italiano. Fala um italiano horroroso, com sotaque polonês. Já o meu encontro com o cardeal Montini, que viria a ser o papa Paulo VI, ocorreu na Nunciatura de Milão. Fui entrevistá-lo não porque ele era cardeal de Milão, mas porque era candidato a papa, um papabile, como se diz. Fez, sobre o Brasil, aqueles comentários que todo mundo faz, “país grande e belo”. João XXIII era uma simpatia, largadão, barrigudão. Eu ouvia sobre ele, em Veneza, comentários interessantes. Quando foi para o conclave que escolheria o novo papa, só levou uma muda de roupa e a escova de dentes, porque pensava em voltar no dia seguinte. Mas terminou eleito – um sujeito fabuloso. Quando estive com ele, notei como era tranqüilo, bonachão, com orelhas enormes, deixa você logo à vontade. Queria saber de tudo. Perguntava mais do que ouvia. Queria conhecer a floresta amazônica. Ele é que me entrevistou.

O que é que ficou da convivência com Nelson Rodrigues?
Uma vez, na redação da Última Hora, eu estava escrevendo à máquina, depressa, porque, no fundo, o que sou mesmo é um bom datilógrafo. Lá estava eu escrevendo, com os dez dedos. Nelson chega, fica em pé diante de minha mesa, em silêncio. De repente, diz: “Patético!” E vai embora. Então fui até a mesa onde ele trabalhava, fiquei uns dois ou três minutos olhando em silêncio e disse: “Dramático!” Eu não tinha nada contra Nelson Rodrigues, mas não gosto daquela coisa escatológica que ele cultivava. Nelson Rodrigues, no fundo, era, na vida pessoal, um homem de um moralismo atroz. Não bebia, não fazia farra, não tinha amantes.

Você escreveu que “o cúmulo do ridículo, beirando o grotesco, é um marmanjo, gordo e barrigudo, tocando cavaquinho”…
É de um ridículo atroz, uma coisa horrorosa, meu Deus do céu…

Depois de conhecer tanta gente, inclusive famosa, que outros tipos você incluiria na antologia do ridículo?
Todo turista é ridículo, com aquelas bermudas, fotografando tudo. Turista japonês, então, é o cúmulo do ridículo, com cinco máquinas fotográficas. Há duas espécies humanas que acho de um ridículo atroz: primeiro, é o turista, universal, em qualquer lugar. Depois, é o torcedor fanático, aquele que chora e come o dedo: é de um ridículo absoluto.

Que tal um ônibus cheio de turistas, no exterior, cantando “ô-lê-lê, ô-lá-lá…”?
“Pega no ganzê, pega no ganzá.” Vi um dia duas velhas mineiras, senhoras de uns cinqüenta anos, conversando na loja da Varig, em Paris, Champs Elysées. Uma dizia à outra: “Fulana, tem tido notícias de Juiz de Fora?” A outra: “Não.” “E o que é que você tem achado de Paris?” “Ah, uma cidade bonita, mas não é a nossa Juiz de Fora.” Você ter de ouvir isso: “Não é a nossa Juiz de Fora!!!!”

Você também escreveu: “Pode haver algo mais idiota do que um alpinista?”
Não pode! Precisa ser um débil mental. Para que subir aquela montanha, se de avião você vê tudo aquilo? Por que não vai de helicóptero? O que é que o alpinista quer provar com aquilo? Você não viu aquela mulher que despencou lá de cima de uma montanha? Não tive pena nenhuma. Só lamento que ela tenha deixado um filho. Mas ela queria provar o quê? O alpinista se mata para chegar ao cume do Evereste, mas vai encontrar o quê? Chegou lá, o que é que tinha? “Ah, tinha o cume do Evereste”. Para ver, basta passar de avião, qualquer Boeing de carreira passa por cima, tranqüilamente. Aliás, os esportes – de um certo modo – têm o seu lado ridículo: querer disputar, jogar uma flecha mais longe, dar um pulo maior do que outro. Isso é coisa de bicho de floresta. É coisa de macaco.

Um dos seus amigos, que você cita, num livro que vai sair agora, como um “bom escritor”, disse que não conseguia de jeito nenhum passar da página 92 do romance O Vermelho e o Negro, porque a história “tinha gente demais e ninguém ficava parado”. Que amigo escritor era esse?
Rubem Braga – que escrevia muito bem, era um prosador nato. E todo prosador nato vai querer ler Stendhal. Eu não estava pedindo a ele que fosse ler Guerra e Paz em russo. Pedi que lesse Stendhal. Comprei uma edição bonita de O Vermelho e o Negro. Quinze dias depois, ele me disse: “Parei. É gente demais”. Não conseguiu terminar.

Qual foi o grande livro que você não conseguiu terminar?
Li muito Dostoievsk, mas nunca consigo chegar até o fim de Os Irmãos Karamazovi. Os outros eu li, Crime e Castigo, O Jogador é fantástico, maravilha de síntese. Mas Irmãos Karamazov não dá…

Quem é o grande escritor chato?
Um grande escritor chato é esse Günter Grass. Terminou ganhando o Prêmio Nobel. É chato de doer, complicado, tortuoso. Mas, quando lê com atenção, você vê que aquilo é literatura mesmo. Outro que é muito chato é Thomas Mann. Eu leio, mas é difícil.

João Gilberto, o cantor, disse que “vaia de bêbado não vale”. Você, que já bebeu mas hoje é um primor de sobriedade, vaiaria quem no Brasil de hoje, já que vaia de sóbrio vale?
Em primeiro lugar, quero dizer que acho João Gilberto uma das sete pragas do Egito – e do Brasil. Só diz besteira, porque é analfabeto. Nunca leu um livro. Disse: “Vaia de bêbado não vale”. Ora, só vale! In vino veritas. O provérbio romano diz que é no vinho que se encontra a verdade. Só vale! É um cretino. Quanto às vaias, as minhas vão para João Gilberto, o primeiro de todos, sempre. Depois, para Gilberto Gil, Caetano Veloso. Bote aí: Fafá de Belém, essa escória musical toda. Aliás, eu nem gostaria de vaiar. Gostaria de apupar. É o termo. Acho-os uma porcaria.

Você, que foi o fundador do Partido Socialista Brasileiro, permanece fiel ao partido depois do fim do socialismo?
Fui um dos 32 fundadores do partido. Para mim, o socialismo acabou. O que entendo como socialismo é a esquerda democrática, é não ser da direita, é querer uma divisão de renda justa e equânime, é ter todos os direitos que o Estado puder dar, em troca do dinheiro que você dá ao Estado, como existe na Suécia, nos países nórdicos. Para mim, o socialismo é isso.

O socialismo não animaria você nem como alternativa quixotesca?
O problema do socialismo é o problema de estrutura econômica. Aqui no Brasil, o regime é o capitalismo mesquinho, feroz, injusto. É impossível, então, estabelecer um socialismo democrático num país que caiu na mão de uma elite que só quer tudo pra ela, não divide, não cede, inclusive por burrice. O PT do Lula é o que mais se aproxima do programa do Partido Socialista.

Por que você foi o primeiro preso pelo ato institucional nº 5?
Porque eu estava com uma gripe violentíssima, em casa. Os agentes vieram aqui, me levaram. Quem foi prevenido conseguiu fugir. Cada um deu no pé. Eu, não. Se eu soubesse que ia ser preso, teria caído fora. Por que é que eu iria me deixar ser preso? Isso seria um quixotismo burro. Carlos Heitor Cony – que já não gosta que se fale nisso – foi meu companheiro de cela.

Circulou uma história – não sei se é folclórica – dizendo que você protestou porque um ladrão iria fazer companhia a vocês na sala. É verdade?
Eu disse: “Aqui não! Aqui é lugar de subversivo! Ladrão é lá”. Eu sabia que do outro lado do quartel tinha a ala de ladrão.

Qual foi, afinal, a grande entrevista que você teve a chance de fazer mas não fez, por timidez?
A grande entrevista que não fiz foi com Ernest Hemingway, em Paris. Samuel Wainer estava lá. Perguntou: “Você sabe quem está aí? Hemingway! Você não vai fazer a entrevista dele?” Um jornal trazia o nome do café que Hemingway freqüentava todo dia. Ficava lendo jornal de turfe; não queria ser chateado. De repente, chega o sujeito, muito maior do que eu pensava. Fiquei pensando: “O que é que um jornalista do Brasil, que não sabe falar inglês, vai perguntar a ele?” Fui para o banheiro, enchi a cara, disse a mim mesmo: “Agora, vou direto à mesa do Hemingway…”. Quando saí do banheiro, Hemingway já tinha ido embora. Que fracasso, esse meu!

Qual seria a primeira pergunta que você faria a ele?
Eu iria perguntar se ele não tinha vontade de caçar na Amazônia. Eu deveria ter abordado Hemingway quando o vi pela primeira vez. Eu deveria ter ido. O pior que poderia acontecer seria eu levar um soco. Nesse caso, o soco renderia uma matéria: “O dia em que levei um soco de Hemingway”. Qualquer coisa que ele fizesse renderia assunto. Mas não pedi a ele a entrevista. Um fracasso absoluto.

Se você fosse escrever uma “Enciclopédia Joel Silveira”, o que é que diria num verbete sobre, por exemplo, Graciliano Ramos?
Uma vez, levei um conto pra ele ler. Graciliano era muito seco, nos atos. Começou a ler o meu conto. De repente, rasgou o conto, rasgou tudo, virou confete. Não dava para emendar. Eu não tinha cópia. Depois de rasgar, ele botou na cesta. Não disse nada. Preferiu me convidar para ir ao Café Mourisco, para beber uma cachacinha e um café.

Você não perguntou nada a ele?
Não perguntei nada, ele já tinha dito, com um gesto. Quer resposta mais explícita do que aquela, rasgar o conto? Anos depois, eu disse: “Ô, Graça, mas aquele meu conto era muito ruim mesmo?” E ele: “Horroroso!”

E o verbete sobre Monteiro Lobato seria como?
Fiz com Monteiro Lobato uma entrevista fatídica, para Diretrizes. Fui ao chalezinho de Monteiro Lobato, no Pacaembu. Ficamos a manhã inteira conversando. Ele, pequenino, de pijama, falava violentamente contra a ditadura de Getúlio Vargas. Monteiro Lobato tinha horror ao Getúlio. Lá no meio da entrevista, ele soltou esta frase: “O governo deve sair do povo, como a fumaça da fogueira”. Isso em pleno Estado Novo! Samuel Wainer transformou essa frase de Monteiro Lobato em manchete. A revista foi imediatamente fechada pela polícia. Samuel se mandou para uma embaixada, acho que do Chile. Eu fui para Sergipe.

E Oswald de Andrade?
Para mim, Oswald de Andrade era um moleque. Eu tinha a maior antipatia por ele. Era um sujeito ruidoso, cheio de frases feitas, um vagabundo, nunca fez nada na vida. Torrou a fortuna da família toda. Gastava dinheiro na Europa, por conta da burguesia, num gesto antipático e hipócrita.

Sobre Mário de Andrade, o que é que você escreveria?
Era insuportável, um veadão, vivia cercado de garotos, todo pachola. Uma vez, escreveu uma crítica sobre um livro. Disse: “Este realmente é um bom contista, não é um Joel Silveira qualquer”. Devo ser a única pessoa do Brasil que nunca recebeu uma carta do Mário de Andrade. Todo mundo recebeu. Não me empolga. A poesia de Mário de Andrade é muito ruim, os contos são uma coisa tradicional, aquele negócio de folclore. Detesto folclore!

Há quanto tempo não chamam você para escrever num grande jornal brasileiro?
Há séculos, meu Deus do céu! Não há por que chamar.

Faz de conta que você é o chefe de reportagem. Se chegasse aqui um jovem repórter cheio de entusiasmo e pedisse a você uma grande pauta para fazer hoje no Brasil, que assuntos você indicaria?
Que tal o desaparecimento do ex-deputado Rubens Paiva durante o governo militar? Já se cavou uma cova. Vamos cavar outras, então! E a morte da figurinista Zuzu Angel num acidente que não entra na cabeça de ninguém? E a explosão da bomba no Riocentro? Qual foi a intenção verdadeira? Era causar um massacre? Ou dar um susto? A morte de Juscelino ficou mal contada. A mim, não convenceu. Não sou um juscelinista. Sou um leitor de jornal. E o atentado à OAB? Quem mandou? E a morte de Lamarca? E a de Marighela? Um sujeito astuto e conspirador, como ele era, ia sair idiotamente daquele jeito? E aquele operário que morreu no DOI-CODI em São Paulo? E a morte de Herzog, que não tinha motivo nenhum para se suicidar? Isso tudo daria uma série fantástica.

Você conseguiria descrever Joel Silveira em uma só palavra?
Teimoso. Não pedi para vir ao mundo. Agora, aos oitenta anos, não vou pedir para sair.

Geneton Moraes Neto é jornalista.