O Ronaldo Britto Roque, amigo e colaborador deste blog, tem um ponto de vista inflexível a respeito do uso do off no cinema. Considera ele que “filme não pode ter narração em off. A cena tem de sintetizar a narrativa dramaticamente. Narrativa em off é coisa para rádio.” Esta discussão evidentemente é antiga, mas nunca perde sua atualidade, pois remete à reflexão sobre a própria natureza do cinema, seus meios e seu propósito.
Embora eu concorde, de forma geral, com a observação do Ronaldo, existem muitas exceções a esta regra. Há grandes filmes que fazem uso do off, ou do voice over, para ser mais tecnicamente preciso.O “voice over” acontece quando um personagem ou narrador que não está em cena fala, enquanto o “off screen” – de onde vem o termo “off” – refere-se a um personagem em cena, mas fora da tela no momento – a mãe que grita lá do quarto ou o diálogo de um personagem, enquanto o editor opta por mostrar a cara do seu interlocutor, por exemplo. Portanto, a rigor, estamos discutindo o voice over, e não o off, embora seja corrente o uso deste termo para esta ou aquela situação.
Para citar casos de filmes memoráveis onde o voice over aparece e é usado de forma criativa certamente devemos começar com aquele que é considerado o maior de todos, o “Cidadão Kane”. Em tempos mais recentes, Charlie Kaufman, um dos roteiristas contemporâneos mais inovadores, também faz uso constante do voice over em filmes como “Adaptação” e “O Senhor das Armas”. Além deles, cabe ainda citar os geniais “Dogville” e “Manderlay”, de Lars Von Trier. Voltando a Hollywood, achei interessantes também os voice overs de “Pecados Íntimos”, oscarizado este ano. Neste filme, a narração, um pouco na linha das experiências de Lars Von Trier, assume um tom irônico e meio farsesco, compondo um contraponto com as imagens que faz o filme crescer.
Os documentários evidentemente são outro departamento. E neste terreno não há regras específicas. Felizmente, há uma onda recente de documentários em estilo clássico – com muita narração, entrevistas e imagens de cobertura – de alto quilate, no Brasil. E os festivais a estão reconhecendo. Prova disso é a premiação de “Condor”, de Roberto Mader, em Gramado e agora no Festival do Rio. O doc trata da operação clandestina conjunta entre os regimes militares sul americanos para troca de informações e captura de militantes de esquerda. Eu o assisti em Gramado e gostei muito.
A onda atual de experimentalismo em documentários, ainda que benvinda, carrega certo preconceito com o modelo clássico – e portanto contra a narração em voz over -, além de gerar muita porcaria. É preciso saber separar o joio do trigo.
Por outro lado, pode-se ser muito experimental também neste campo E fazer uso do voice over – que o diga Glauber, com seu revolucionário “Di”. Tentando concluir, está aí um exemplo maior das lições e regras que podemos tirar desta discussão. O voice over tem que servir para expandir o significado das imagens, e não para delimitá-lo, reduzi-lo ou reafirmá-lo. É o que acontece nos filmes de Lars Von Trier ou no documentário de Glauber. Em “Di”, imagens, narração e música se contrapõem, contradizem e se somam, sempre expandindo o significado do filme.
Num próximo post, quero comentar o filme espanhol “A Vida Secreta das Palavras”, a que assisti esta semana. Primeiro porque neste caso o Ronaldo tem razão. Há uns offzinhos muito irritantes que deviam ser extirpados, mas, mais importante, porque é um filme que, para sua veracidade, depende integralmente do local escolhido para ambientá-lo. Se não se passasse numa plataforma de petróleo, seria um filme muito ruim. Mas é bastante bom.
bruno costa
Texto muito interessante, Pedro. []s
alex castro
o voice over eh sempre ruim. o fato de ele nao destruir alguns dos filmes bons que vc citou nao quer dizer que deixe de ser ruim 🙂
filipe
pedro,
ce esqueceu de citar a trilogia qatsi do godfrey reggio (tom sarcastico)…