Eu pensei em tirar uma foto, depois voltei atrás. Ela era bonita, colorida, os olhos simples e estáticos me emocionaram um pouco. Não sorria; tinha um pirulito na mão, mas preferia não lamber. Talvez quisesse apenas mantê-lo ao alcance da boca, mostrar que ainda estava na idade de pensar que um pirulito era apenas um pirulito, sem maiores conotações freudianas. Mas havia qualquer coisa de triste no seu olhar, uma serenidade meio apática que delatava uma infância com muito açúcar e pouca alegria. Ela era sim, bonita, colorida, no entanto um pouco triste. Despertava certa veia maternal dentro de mim: uma força que me impelia a protegê-la e ampará-la, mesmo que eu não soubesse como ou por quê. Mas a câmera eu guardei. Alguma sombra dentro de mim negava aquela menina. Algo que invejava e temia aquele tipo de arte. Fiquei um tempo pensando no sujeito que a pintou. Provavelmente não era formado, pois sua obra era muito simples: uma criança com pirulito na mão e barriga de fora. Um pouco triste, um pouco perplexa e nada mais. E era justamente isso que me machucava. Um ignorante, com meia dúzia de esprêis, era capaz de despertar emoções sinceras – coisa que eu não conseguia fazer com meus escâner, computador, câmera e conceitos modernos. Pensei em tirar uma foto e colocar no meu blógue. Cogitei falar da força misteriosa da simplicidade, do impacto emocional que o figurativo ainda causa nas almas desprevenidas. Mas tudo isso seria apenas mais um argumento, não uma emoção. Eu, que tanto atacava o mundo da razão, ia usar a menina como desculpa para produzir mais uma reflexão? Saí de casa confusa, e o comentário da vizinha só fez piorar meu estado:
— Esses meninos são uns vândalos, vivem estragando a propriedade alheia. Mas temos que admitir que alguns deles têm sensibilidade…
— É… pois é… alguns deles…
Sensibilidade era uma palavra gasta. Eu aprendera a odiá-la na faculdade. Toda uma geração havia falado em sensibilidade e conseguira produzir apenas paisagens campestres e mulheres seminuas. Não estávamos mais na época da sensibilidade; uma bobagem dessas simplesmente não seria aceita pelos meus professores. Me refugiei na idéia de que a velha era apenas mais uma ignorante, e sua opinião jamais seria partilhada por alguém de cultura, tanto menos por um investidor.
Mas na esquina tive novo desconforto. Um gari tinha parado de varrer. Debruçado na própria vassoura, contemplava o silêncio da menina. Me perguntei se ele estaria tendo as mesmas emoções que eu; se o desenho lhe tinha despertado algum instinto paternal, se o fazia recordar o desamparo e a fragilidade da própria infância. Mais uma vez me abriguei na idéia de ignorância. Ele era um gari, o que podia saber sobre arte?
Contudo a pequena não me saiu da cabeça. No táxi para a editora, reparei em outros grafites, a maioria muito ruins. Mas alguns revelavam certo domínio das formas, sobretudo das feições humanas. Às vezes com poucos traços um grafiteiro conseguia transmitir claramente uma emoção. E eu tinha de admitir que aquilo me fascinava, embora minha cabeça estivesse tão saturada de novas mídias, novos conceitos, novas tendências. Comecei a odiar meus professores que pareciam valorizar antes um bom argumento em favor de uma coisa feia que uma simples coisa bonita. De repente esse gosto exagerado pela reflexão começou a me parecer estéril e falso. Felizmente o trabalho me fez esquecer tudo isso. Meu emprego de capista não exigia muita reflexão. Eu já me acostumara a fazer certas coisas no piloto automático: fotos, retoques, Photoshop, Corel. A maravilha da informática tornava tudo bastante simples.
A menina só voltou a me atormentar na volta para casa. Antes mesmo de vê-la, ainda no caminho, fiquei pensando novamente no sujeito que a pintou. Devia ter no máximo o segundo grau. Eu tinha lido um blógue de grafiteiro. Em geral eles são motobóis, frentistas, técnicos em informática. São pessoas simples que aprendem a desenhar copiando meninas de hentais. Me doía admitir que um sujeito desses conseguisse me emocionar. Foi então que lembrei de um desenho que eu tinha feito no início da faculdade. Era apenas uma menina blasê fumando seu cigarro. A fumaça fazia uma espécie de nuvem sobre a cabeça dela, e me parecia que aquele amontoado de cinza e azul escuro expressava muito bem a sua confusão mental. Mas meu professor achou que aquilo não era arte. Aquele desenho simples, contido, bem comportado, não questionava nada. Ele me explicou que a arte não podia ser tão passiva, tinha que incomodar. Não podíamos apenas fazer um desenho bonito e tocante, era preciso reinventar o conceito de arte a cada novo desenho. Aquela lembrança era um pouco dolorida, mas encontrei nela algum consolo. A menina do grafiteiro, aquela menina simples, com seu pirulito pobre, não questionava nada. Não era simples, era simplória. De repente ficou claro para mim o que eu devia fazer.
Passei na loja e comprei uma latinha preta. Quando vi a menina, saquei do esprêi e borrifei direto na sua cara. Pintei um grande ponto de interrogação, passando pelos seus olhos e terminando no seu umbigo. Era meu recado para aquele grafiteiro. A arte tem que questionar, tem que embaraçar, confundir. Não se pode simplesmente desenhar uma criança, por mais bonito que isso fique. Tem que haver questionamento, reflexão, crítica. Buscar a emoção é fácil demais, é a solução mais óbvia. O ponto de interrogação, negro e convicto no meio daquela pletora de cores, dava muito bem o meu recado. Comecei a me sentir melhor. Consegui até dormir naquela noite.
O problema é que não durou muito. Alguns dias depois o grafiteiro atacou de novo. Agora era um menino, com uma espada na mão e um tapa-olho no rosto. Esse já não estava triste, sorria, tinha aquele ar de moleque provocador que os meninos começam a ganhar com a puberdade. Eu entendi muito bem o recado. Ele era um pirata, um transgressor. Podia não fazer arte, mas se arriscava danificando a propriedade alheia. Senti que esse era seu maior orgulho. De certa forma me senti melhor, pois percebi que ele não competia comigo. Ele tinha que acordar e lutar por um espaço, tinha que ser rápido, fugir da polícia, fugir dos olhares alheios. Seu nome jamais estaria nas páginas do caderno cultural. Sua arte exigia o anonimato. A minha, em contrapartida, estaria em todo lugar. Eu estava nas galerias, nos museus, nos centros culturais. Ainda não tinha conquistado as graças de um investidor, mas pelo menos meus amigos podiam ler meu nome e saber quem eu era, ver que eu tinha chegado lá, enquanto o coitado do grafiteiro seria sempre um marginal, seu nome nunca ia brilhar. Pularia de sombra em sombra, deixando seus desenhos patéticos que durariam apenas até a próxima demolição. Tudo isso me dava um conforto surpreendente. Entrei no elevador renovada, pensando na próxima capa que eu ia fazer. De repente me ocorreu que para fazer uma capa eu não questionava nada. Em geral eu pegava alguma imagem pronta da internet e jogava o texto em cima. Mexia um pouquinho, desalinhava alguma coisa, mudava as maiúsculas em minúsculas e vice-versa – um jeito de fazer a coisa parecer contemporânea. Era um procedimento meio automático, eu nunca parava para questionar. Mas, graças a Deus, eu não precisava ficar pensando nisso. Não tinha mais professores chatos que me cobrassem reflexões. Eu podia simplesmente trabalhar, deixar as coisas prontas, cumprir prazos e ganhar meu dinheiro. A partir de certo momento da vida, manter as contas em dia ganha uma súbita importância. O grafiteiro certamente não podia usar seu trabalho para isso. Ele era um fracassado, e esse pensamento me confortava.
Mas o pequeno pirata ainda me incomodava, com sua espada em riste, seu riso malicioso, sua alegria irritante. Voltando para casa, notei que alguns meninos tinham parado em frente à pintura, e faziam comentários favoráveis. Depois pegaram pedaços de pau e saíram felizes, brandindo suas espadas, talvez imaginando que um dia enfrentariam a força perversa da autoridade. Busquei novamente refúgio na idéia de que o marginal não tinha salário, seu pagamento eram apenas sorrisos e comentários espontâneos. Mas isso já não me consolava. Eu começava a duvidar que meu contracheque valesse tanto. Talvez aquele desgraçado, com seus piratas e meninas tristes, estivesse muito mais perto do que eu sempre sonhara para mim. Entrei no apartamento agitada, fui correndo pegar a câmera. Antes que escurecesse eu queria fazer uma foto. Depois eu ia, sim, escrever sobre aquilo tudo. Queria encher o meu blógue com toda essa confusão que se acumulava na minha cabeça. Se eu não podia resover certos problemas, queria ao menos partilhá-los com os outros. Então peguei a câmera, medi a luz, foquei. Mas não deu para fotografar. Algum imbecil entrou na frente do pirata, e estava pixando logo ao lado dele. Não pude acreditar: era uma conspiração! Justamente quando eu decidia aceitar o pequeno pirata, alguém vinha me impedir de registrá-lo. Não preciso descrever minha irritação. A foto ficaria para o dia seguinte, não tinha outro jeito. Mas reparei que o sujeito não estava destruindo a pintura, e sim acrescentando algo. Aos poucos a figura foi se definindo. Era um baú de tesouro, típico das fábulas de piratas. Comcei a rir, pensando na mentalidade simplória do sujeito que fazia esse tipo de coisa. Sem originalidade, sem verve, sem nada de novo a acrescentar. Mas de repente me lembrei dos pensamentos que eu tivera poucas horas atrás. Recordei meu contracheque e meu orgulho pelas contas em dia. Seria possível que o sujeito tivesse lido meus pensamentos? Seu baú de tesouros, ao lado do pirata, seria mais uma provocação? Não, não era possível! Eu não havia comentado nada daquilo com ninguém. Não havia como saber, nem que o grafiteiro fosse algum conhecido meu. Esse mistério me despertou uma nova onda de raiva, dessa vez mais profunda e obscura. Alguém tinha que parar aquele sujeito. Sua simplicidade machucava. Então finalmente aconteceu. Peguei a câmera, foquei, tirei uma, quatro, dez fotos. No dia seguinte as revelei, e no mesmo dia fui à polícia. O rosto estava bem nítido, e mais ainda a mão segurando o esprêi. Não tiveram muita dificuldade para encontrá-lo. Morava num bairro vizinho, os esprêis todos num cantinho atrás do guarda-roupa (nem para isso conseguia ser original!). Alguns vizinhos souberam da história e comentaram. Falaram que era injustiça, que a polícia devia se ocupar com bandidos de verdade, etc. Mas eu sei que aquele sujeito merecia. Ele não questionava, não criticava. Sua arte não me fazia refletir, apenas me emocionava… Não fui educada para agüentar uma coisa dessas.