Marcelo era ateu, mas de um ateísmo singular, que não vinha do seu professor de história, nem do seu psicanalista. Vinha de sua avó. A velha era católica demais, ia sempre à missa, falava dos santos e do Juízo Final. Por isso todos ficaram revoltados quando apareceu o tumor.
— Logo ela, que tem tanta fé! Por que Deus faz uma coisa dessas?!?
O rapaz estava entrando na adolescência, e queria compreender a contradição. Se Deus existia, por que deixava sofrer os que criam nele? Seu pai não soube responder:
— Essas coisas transcendem o entendimento, meu filho.
Mas o jovem estava angustiado. Queria se livrar logo da contradição. Resolveu dar a Deus um ultimato:
— Cure minha avó, e acreditarei em Você!
A velha morreu no dia seguinte, logo depois de deixar um bilhete aos netos:
Meus queridos, não esqueçam suas orações.
Todos se comoveram, menos Marcelo, que a essa altura já tinha cedido à descrença total.
— Pobre velha. Morreu com sua ilusão.
— Não diga isso, meu filho!
Por dentro, todos pensavam como ele, mas em público preferiam passar como crentes.
♣
Veio o vestibular, vieram o primeiro carro e a primeira namorada. Marcelo agora acreditava na ciência e nas leis impessoais que regiam o universo. Deus era a ilusão de que os desafortunados precisavam para levar a vida. Ele vivia por outros motivos: as mulheres, por exemplo. Eram gostosas de beijar, de tocar, e cediam facilmente quando estavam bêbadas. Era uma lei da ciência: mulher + álcool + carro = sexo = prazer. Ele só não entendia era por que elas eram tão pegajosas, por que faziam tanta questão da fidelidade. Era mais uma coisa que transcendia seu entendimento. Assim como a rápida ascensão do islamismo no seu país. Marcelo continuava achando que religião não passava de ignorância.
— Essa gente precisa de ilusões cada vez piores… Que tristeza!
Mas, quando soube que os muçulmanos eram polígamos, a idéia imediatamente lhe agradou.
— Até que enfim, uma religião mais realista.
Os primeiros candidatos muçulmanos começaram a aparecer. O plano deles era simples: chegar ao poder por vias democráticas, depois acabar com a democracia. Mas é claro que em público declaravam outra coisa. Queriam apenas dar uma opção política a quem já era convertido. Marcelo, que nada entendia de islamismo, via a coisa apenas pelo lado que lhe agradava. Seu pai é que não aprovava a idéia.
— Essa gente é muito autoritária, isso não me cheira bem.
Mas o rapaz estava entusiasmado.
— Que é isso, pai? Religião é tudo ilusão. Se é para escolher, que seja uma que pelo menos nos deixa ter quatro mulheres!
O velho deu uma risada gostosa.
— Esses jovens… Só pensam nisso!
Mas a idéia passou a persegui-lo. Sua mulher, mesmo com a plástica, não tinha mais aquele encanto. Quando ele via uma bela jovem no trabalho, era inevitável desejá-la.
“Meu Deus, ainda me sinto tão cheio de vida. Por que não?”
Os homens de sua idade tinham pensamentos semelhantes. Em público ridicularizavam o islamismo, mas, quando estavam sozinhos, pensavam:
“Ora, uma segunda mulher, mais jovem, não seria nada mal…”
Outros guardavam algum rancor antigo, e viam no islamismo a possibilidade de se vingar:
“As mulheres estão muito abusadas. Estão nos fazendo de palhaços! Essa religião vai colocá-las no seu lugar.”
Com as mulheres se passava coisa semelhante. Em público criticavam arduamente o islamismo, aquilo era um atraso, uma falta de vergonha! Mas em privado pensavam: “Os homens teriam de nos sustentar, seria ótimo! Estou cansada de trabalhar e ainda ter de arrumar tudo aqui em casa.”
Assim, contrariando todas as expectativas, os muçulmanos chegaram ao poder, provocando um misto de contentamento e medo.
As mulheres foram as primeiras a se arrepender. Os homens que tinham amantes mais jovens oficializaram sua poligamia. As garotas fúteis, que buscavam apenas uma vida luxuosa, consentiam facilmente em ser a segunda esposa de um homem rico. Quando se arrependiam já era tarde.
Mas Marcelo estava feliz. Era bonito, e tinha boa posição social. Conseguiu uma loira de sua classe, e uma morena pobre e bonita que aceitou ser sua segunda esposa, pensando no bom apartamento em que ia morar. Tudo ia muito bem. As duas faziam compras juntas, e a loira fingia suportar as gírias de pobre da morena.
As coisas só pioraram quando seu pai morreu. O velho tinha se casado novamente, e deixou três filhas pequenas. Ele agora era o mais velho, tinha a obrigação de sustentá-las. Mas já tinha seus próprios filhos para sustentar, o que não era nada fácil. Suas esposas exigiam curso de inglês, natação, TV a cabo.
— A televisão aberta está uma baixaria, não podemos deixar nossos filhos verem essas coisas!
Marcelo descobriu o que era hora-extra. Com muito custo conseguiu equilibrar as finanças. Mas chegava em casa muito cansado, e não conseguia desfrutar das suas beldades. Com isso elas foram ficando cada vez mais rancorosas. A enorme diferença cultural entre as duas passou a ser fonte de desentendimentos.
Um dia Marcelo se olhou no espelho e perguntou onde estavam os seus cabelos. Tinham ido pelo ralo, assim como sua alegria de viver. Sua vida era trabalhar para sustentar mulheres, de cujos corpos ele nem já nem conseguia desfrutar. A súbita consciência do seu estado lhe causou uma imensa fúria. Justamente nesse momento as mulheres começaram a discutir. O marido pediu que as duas entrassem no quarto. Houve certa expectativa:
— Será que ele vai fazer com as duas? Mas isso Alah não permite…
Sim, ele fez com as duas. Fez o que Alah permitia. Na semana seguinte ainda havia hematomas.
Vin
Ronaldo,
Excelente texto. Essa miscelânea de valores entrelaçados (religião, Estado, política, sexo, globalização etc.) têm causado estragos irreversíveis no cerébro humano.
Filtrar isso é tarefa quase impossível hoje em dia…
Marli
Adorei!
Vou usar em sala de aula!
Ronaldo Brito Roque
Marli,
vc dá aula de quê?
Valeu,
Rbr