Papai dizia que o palco era uma fuga. Um jeito de eu me ausentar das obrigações, dos compromissos com a escola e os deveres de casa. No fundo ele achava que eu buscava o teatro porque não era boa o bastante para a matemática e a química. Queria que eu fosse engenheira, como ele. Acho que nunca superou o trauma de não ter um filho homem.
Mamãe dizia que o palco era vaidade. Era o meu jeito de ficar distante das pessoas, de olhá-las de cima, de provar que eu era melhor. Ela não faz idéia de como é difícil ser o centro das atenções, ser o tempo todo observada e julgada. Ela nem imagina o quanto o palco exige de precisão, de humildade e auto-domínio. Os orgulhosos e egocêntricos, esses são os primeiros a naufragarem no tablado; eles amam demais a própria vida, o próprio jeito de ser e falar; não conseguem se entregar com sinceridade à arte de ser outro. O palco – e isso mamãe nunca vai entender – é para quem se odeia. Quem tem orgulho de si não dura um segundo ali em cima.
E no entanto eu não posso dizer que eu ame o palco. Eu não o amo nem odeio. Eu não o escolhi. Foi ele quem me convocou, com sua escuridão, sua distância, seu espaço infinito. Quando o pisei pela primeira vez me senti em casa; me senti simplesmente como se eu estivesse encontrando meu lugar. E isso nem meus colegas entendem, eles que tanto falam em tensão e frio na barriga. Eu não sinto nem frio nem calor. Para mim, o palco é uma fatalidade: é o único lugar onde minha solidão faz sentido.
Por isso eu errei tanto em ouvi-los. Eles não queriam em orientar, não queriam de forma nenhuma que eu encontrasse o que era sagrado para mim. Mamãe falava em dinheiro, papai falava em abandonar fantasias tolas. E aos poucos foram me convencendo que o palco não era sagrado; conseguiram infestá-lo com a futilidade e a tolice que no fundo pertenciam apenas às suas próprias vidas. Eles, que já não sabiam mais o que amar, não podiam tolerar que alguém conservasse seu maior amor.
E foi assim que eu peguei meu diploma; foi assim que eu fui à entrevista de emprego e encarnei mais uma personagem. Falei em carreira, em garra, em produção. Representei o papel que eles escreveram, e não apenas por um dia, mas por dois, quatro, oito anos. Às vezes eu me orgulhava, pensando que era mesmo ótima atriz. Conseguia ser outra o tempo todo; quando eu me vestia para o trabalho,
não estava apenas entrando numa roupa, estava entrando de corpo e alma numa farsa da qual eu era simultaneamente autora e atriz.
Mas o palco continuava lá, com sua atração permanente e serena. Quando me falavam dele, eu sentia uma dor aguda e sem explicação. De alguma forma eu sabia que algo dentro de mim estaria sempre morto se eu não aceitasse e redimisse o palco; se eu não me entregasse inteiramente ao que ele me reservava de amor e sacrifício. Comecei a ter pesadelos. As cortinas se abriam, e as pessoas estavam de costas para mim, iludidas por outro palco, menos intenso e sagrado que o meu – menos nítido,
menos real. E me doía saber que a culpa por toda a fraude era minha. Não era apenas a mim mesma que eu enganava, era a todos que amavam o palco, era justamente àqueles que eu devia servir.
E quem passaria por esse sofrimento sem se tornar mau? Comecei a odiar o palco e tudo que me lembrava o sagrado. Evitava as pessoas que tinham se entregado a seu amor. Tentei acreditar que os sonhos eram fantasias sem valor, e que o sentido da vida se media pelos números de um contracheque. Curiosamente, comecei a me dar bem com meus pais. Também liguei a televisão, também comi sem ter fome e falei em aposentadoria. Mas no fundo eu desejava a morte deles. Talvez com a morte daqueles que me impediam de ser quem eu era, minha vida voltasse a me pertencer.
E o palco havia se tornado um conflito. O palco era um problema sem solução. E seria sempre assim, se eu não tivesse me lembrando do óbvio. O palco não podia existir do lado de fora. Era dentro de mim
que ele estava, latejando em minhas veias, fluindo com o ar dos meus pulmões. Por isso só eu podia ouvir seu chamado. Não era justo querer que meus pais, nem ninguém, compreendesse o que era dirigido somente a mim. No fundo não havia dor, não havia conflito. Se eu me encontrasse
no palco, eles se encontrariam na platéia, como cada quinhão de ar encontra sua gota de sangue.
Por isso hoje estou aqui. Tu me convocaste e é com humildade que atendo teu chamado. É com humildade que te trato por “tu”. Quando as cortinas se abrirem, eles verão uma princesa, uma tia velha, uma prostituta, uma esposa infiel. Eu verei apenas a ti. Eu confio em ti, e só tu me dirás o que ser. Derrotada pelo mundo, renasço naquele que me habita, com a serenidade das coisas que vão permanecer depois de mim.
Que se abram as cortinas, que se acendam as luzes. Eu estou pronta.