por Yuri Vieira
Nem meus colaboradores conheciam, ao menos até o momento em que ora escrevo, a origem do nome deste blog. Bem, Garganta de Fogo – em quechua, Tungurahua – é o nome do vulcão de 5060m que escalei no Equador em 1990, onde, aliás, quase bati as botas. O cume onde estive – a borda mais proeminente da cratera – deixou de existir em 1999, quando houve uma grande explosão seguida de um erupção que, com maior ou menor violência, se mantém até a atualidade. Vale lembrar que, em termos geológicos, nove anos é quase nada. Ou seja: foi por um triz que não virei churrasco…
Uma vez no cume do Garganta de Fogo, sentei-me e enterrei na neve um papel que trazia no bolso do anorak. Nele estava escrito:
“Vós outros olhais para cima quando aspirais elevar-vos. Eu, como estou alto, olho para baixo. Qual de vós podeis estar alto e rir-vos ao mesmo tempo? O que escala elevados montes ri-se de todas as tragédias da cena e da vida.”
(Assim falava Zaratustra, F. Nietzsche)
A montanha era um símbolo freqüente nos textos nietzscheanos. Ele sempre comparava a clareza de visão – a clarividência do Übermensch – com o campo visual que um alpinista tem do alto dos cumes. O problema é que Nietzsche certamente nunca escalara um vulcão com mais de cinco mil metros, um vulcão andino. (O pico mais alto da Europa, o Mont Blanc tem 4808m.) O microclima das alturas costuma cobrir a cratera com nuvens espessas, ainda que nas planícies ao redor brilhe o sol. Quando cheguei à cratera do Tungurahua, não enxergava a dois palmos do nariz, a profundidade de campo era próxima de zero. Fiquei p da vida. Queria berrar feito um vulcão, mas não podia, perigo de avalanches e tal… Mais tarde, já no cume – que era uma beirada da cratera – nada mudou. Nuvens, vento fortíssimo – cujo rugido tornava as conversas impossíveis – tudo conspirava contra a extroversão. Ao menos contra a minha. Por que a bela visão da paisagem, apreciada durante quase toda a escalada, fora substituída por tal obnubilação dos sentidos? Na encosta duma montanha, vê-se tudo dentro dos 180 graus disponíveis de paisagem. Mas os 360 graus pertencem apenas ao cume. Que eu não pude ver. Tal frustração, aliada ao riscos que corri – nos “perdemos” na ascensão ao refúgio, fiquei colgado ao cair numa fenda no gelo, sem falar do cansaço, das discussões, da possibilidade de uma explosão piroclástica, etc. -, me deixaram indignado com… Nietzsche! Há uma foto minha, feita pelo Fernando Espinosa, na qual apareço exausto, sentado como que vencido, o olhar para baixo e para dentro. Eu sentia que vencera a montanha, mas, ao mesmo tempo, que perdera para mim mesmo. Enterrei, pois, os versos de Zaratustra. E prometi que um dia voltaria ali para desenterrá-los e finalmente apreciar a vista. Porém, em 1999, o vulcão explodiu…
Pois então. Às vezes me sinto sentado no cume de certas visões, valores e ideais, mas obnubilado pelas exigências do dia a dia e pelos perigos da falsidade e da desconfiança humana. Como você também há de se sentir vezenquando. Ou sempre. É a vida neste mundo. Mas, ao chamar o blog de Garganta de Fogo, decidi que ao menos já não ficaria de bico fechado. Que venha a avalanche!, pensei. Antes, porém, consultei a Google para saber se já existia um site com este nome. Qual não foi minha surpresa ao verificar que o primeiro resultado era um trecho do Qadós, da escritora Hilda Hilst, que eu mesmo selecionara ao confeccionar seu site oficial:
Como queres que eu me proponha ser alguma coisa se a Tua voracidade Tua garganta de fogo já engoliu o melhor de mim e cuspiu as escórias, um amontoado de vazios, um nada vidrilhado, um broche de rameira diante de Ti, dentro de mim? E as gentes, Máscara do Nojo, como pensas que é possível viver entre as gentes e Te esquecer?
E me lembrei do dia em que, na Casa do Sol, disse à Hilda que só ficaria satisfeito comigo mesmo, enquanto escritor, no dia em que conseguisse descrever satisfatoriamente minha escalada ao Tungurahua – coisa que ainda não consegui fazer. Na ocasião, conversamos também sobre o papel de divindade que os vulcões sempre desempenharam diante dos povos primitivos. O próprio Yavé, a princípio, não era senão um vulcão adorado pelas primeiras tribos semitas, cujo conceito, com o passar das eras, elevou-se continuamente até atingir o patamar em que hoje se encontra, o do Deus único, o Espírito bom e justo. (Os salmos testemunham essa evolução da consciência que temos do Criador.) O abstrato cume dos vulcões, portanto, unia sociedades inteiras. O que talvez explique o porquê de a língua castelhana usar o termo cumbre (cume) para designar reuniões importantes. (Pesquise a expressão “cumbre mundial“.) No cume os homens e mulheres se sentam e, mesmo que não possam ver o resto do mundo, olham uns para os outros. E trocam palavras.