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Sobre ciência e religião III

Eu deveria gerenciar os temas vinculados à discussão em seus respectivos posts originais e não pentelhar a área principal do blog com comentários sobre comentários dos comentários. Mas fiquei com pregüiça e resolvi colocar tudo num último post – que é último apenas porque não vou mais postar sobre isso, não porque resolvi a questão. Deveria também continuar o post anterior (o nº 2), mas como houve desdobramentos bastante interessantes, optei por comentá-los. Vamos lá.

Yuri:

Além da já costumera defesa do Yuri em ser Yuri – algo do qual não discordo e até incentivo, afinal ninguém consegue ser o Yuri melhor do que ele mesmo -, o mais relevante da resposta concentra-se na citação de Newton.

Newton é, de fato, uma figura importante na questão. Extremamente religioso – e, ao que tudo indica, sem senso de humor -, o genial Newton provavelmente passou mais tempo interpretanto a Bíblia do que escrevendo e experimentando sobre ciência. Entretanto, seus escritos religiosos não foram adotados por nenhuma corrente teológica católica ou protestante (não sei quanto a religião do Yuri, mas esta não posso comentar por pura falta de bibliografia original disponível). Sua ciência, por outro lado, tornou-se hegemônica por mais de 300 anos e consolidou os princípios do método científico como o entendemos hoje (e o fez até mesmo contra Descartes). Vale a pena perguntar porque a ciência de Newton vingou e sua “teologia” não.

Newton parecia decifrado até o fim da segunda guerra. A maioria dos estudiosos da sua obra focava interesse nos Principia e na Óptica. O restante do seu espólio (recusado por Cambridge, Yale, pelo Estado de Israel e adquirido, pelo menos em parte, por Keynes – isso mesmo, o economista) estava esquecido. O editor das obras completas de Newton, Samuel Horsley, deu uma espiadela nos manuscritos não publicados e “fechou escandalizado a tampa do baú que os continha”, devolvendo-os à família. O que havia lá? Pornografia infantil? Não, eram os textos de Newton sobre alquimia, magia e a bíblia. Talvez mais do que o dobro do que foi dedicado à ciência.

Para Newton não havia “metabasis”. Se Deus havia criado o mundo, então este mundo deveria mostrar toda Sua perfeição e engenho. A velha metáfora do relogoeiro era um imperativo intelectual. Porém o mais interessante é que, em Newton, os prinicípios religiosos e científicos colidem frotalmente, a ponto de Leibniz – um famoso desafeto – afirmar o seguinte:

Sir Isaac Newton e os seus seguidores têm uma opinião bem estranha da obra de Deus. Conforme a doutrina deles, Deus todo-poderoso precisa carregar novamente seu relógio de vez em quando, porque, caso contrário, ele deixaria de caminhar. Ao que parece, Ele não teria sido suficientemente previdente para imprimir ao seu relógio um movimento perpétuo”.

Em outras palavras: ao tentar acomodar a idéia teológica da criação ao funcionamento mecânico do universo, Newton produziu, nas palavras de Leibniz, “uma estranha doutrina”. Mas Newton não parou na cosmogonia, avançou cheio de vontande em direção a um terreno ainda mais complexo e delicado, a cronologia. Em poucas palavras, o tema da cronologia procura resolver as falhas temporais entre a história sagrada dos Hebreus e a história profana dos gentios. Ele chegou mesmo a redigir um texto entitulado “Chronology of Ancient Kingdoms Amended”, cujo objetivo era resolver estas falhas.

A correção de que Newton fala no título visava, conforme uma tendência que era própria de todas as ortodoxias religiosas no final do século XVII e no início do século XVIII, a encurtar a história dos antigos a fim de evitar a solução irreligiosa prospectada por muitos seguidores da tradição hermética e pelos libertinos.

Porque este era um problema de implicações teológicas graves?

A civilização, a moral, a religião, nesta perspectiva, não nasceram do diálogo de Deus com Moisés e com a entrega a Moisés, por parte de Deus, das Tábuas da Lei. Se existem povo e civilizações mais antigos do que o povo e a civilização dos Hebreus (os seguidores do hermetismo pensavam sobretudo nos Egípcios, os libertinos pensavam não só nos Egípcios mas também nos Mexicanos e nos Chineses) então a bíblia não narra mais a história das origens do mundo e do gênero humano, mas apenas a história de um povo particular, e então o dilúvio não foi realmente universal, mas somente uma inundação que atingiu um dos povos que habitavam a Terra. (citação)

Perdoem a citação enorme, mas ela deixa bem claro meu ponto. Embora Newton fosse um cientista genial, sua teologia, por tentar explicar fenômenos físicos e históricos a partir de sua “relação com Deus”, não consegue manter-se sobre as próprias pernas. Talvez porque ele ainda precisava de mediadores para essa relação – ela não se dava privadamente, solipsisticamente – e, portanto, confiava pesadamente na tradição hebraica na qual fora criado.

Entretanto, e eis aí, novamente, meu argumento originial, que religião, durante sua história, não pretendeu ou ainda pretende legislar sobre o mundo? Os escritos “teológicos” de Newton ainda estão sendo estudados e suas conseqüência para a interpretação de seus textos não foram esgotadas. Mas não está aqui em Newton, de maneira óbvia, esta “oposição vinculante” de que falei?

Eu disse:

Eu defendo que religião e ciência se igualam na medida em que constróem asserções sobre o sentido da realidade, e o sentido do que dizem sobre a realidade as separa.

E você disse:

Se seus respectivos sentidos os separam, então é porque se opõem. É o que vc quis dizer? Então, não necessariamente, eu responderia. A ciência e a religião devem sempre discordar? Por quê? Newton era profundamente religioso e logo no início do Optics, que li lá na casa da Hilda (li apenas o início e alguns trechos), ele deixa muito claro que seu objetivo é compreender a Criação divina.

A ciência e a religião não devem, necessariamente, discordar; mas quando o fazem é a religião quem recua de sua interpretação sobre o mundo e não a ciência. Este é o meu ponto. Ou você ainda considera, como Newton, relevante a discussão cosmogônica ou cronológica da Bíblia? Por fim, Popper costumava dizer que o argumento da metabasis é, em essência, um argumento defensivo. A separação de gêneros serve mais à religião do que à ciência. Por outro lado, você conhece alguma religião – além da sua – disposta a abrir mão de fazer assertivas sobre a realidade e sobre o mundo? Creio que nossa próxima discussão, se houver, será sobre os diferentes significados de mundo, a fim de sabermos exatamente sobre o que pode falar a religião sem correr o risco de ser contestada pela ciência.

Ah! Não estou advogando que a ciência saia por aí numa curzada contra os dogmas religiosos, só estou dizendo que a separação radical entre ela e a religião não é tão clara e real como se acredita e não porque a ciência – essa vadia – avança sobre o terreno da religião, mas o contrário. E afimirmo também que estas relações pertencem à natureza mesma dos discursos científico e religioso. E que, neste aspecto, a ciência tem se mostrado mais coerente e sólida.

Ronaldo Brito Roque

Se bem entendi seu ponto de vista, a diferença entre ciência e religião é seu assunto. A ciência fala sobre o que acontece antes da morte e a religião sobre o acontece depois da morte. Mas há um problema aqui. Como podemos falar antes da morte sobre o que acontece depois dela? Se nossa linguagem está totalmente estruturada sobre nossa experiência de vida, como pode ela significar algo que escapa a esta experiência? Mesmo que pudéssemos falar sobre o que há depois da morte, mesmo que uma mensagem escapasse à impossibilidade metafísica, teríamos condições de compreendê-la? A não ser, é claro, que fosse mera especulação. Mas qual religião você conhece que admite ser mera especulação suas proposições sobre o divino?

Além disso, como nós, homens, experimentamos a morte? Na minha opinião experimentamos a morte temporalmente. Certa tradição filosófica dá a isso o nome de finitude. A morte é para nós o fim de todas as nossas possibilidades. Neste sentido o Yuri está certo, qualquer coisa que se diga sobre o que está para além da morte será experimentado por nós como possibilidade. Mostre-me uma religião do meramente possível e eu concordo com você.

Resta a questão moral, mas isso fica pra depois…

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22 Comments

  1. Daniel (a propósito, vc é o Daniel do antigo Fórum da PriLei, que vivia discutindo com o Tostes e cia?),

    essa distinção entre ciência e religião me parece superficial. Ela faz sentido se por “religião” vc entender idéias como a de que o mundo foi criado em 6 dias de 24 horas há uns 6 mil anos.

    No entanto, se a religião pode ser compreendida pelo estudo dos livros sagrados, como a Bíblia, também é verdade que estes textos frequentemente têm caráter simbólico, ou seja, não podem ser interpretados literalmente. A ciência pode nos indicar que o mundo tem muito mais que 6 mil anos, mas quem disse que é isso mesmo o que a bíblia quer dizer?

    Por outro lado, a ciência só foi possível graças à religião. A primeira tentativa de compreender a realidade, a idéia de infinito, a idéia de causalidade, entre outras, não tiveram todas origens na religião?

    Vc pode perguntar pelo motivo da linguagem simbólica, mas para mim está claro. A bíblia nunca teve a pretensão de descrever cientificamente o mundo em que vivemos. O que vc queria? Que no Gênesis estivesse escrito que “no primeiro dia Deus criou a lei da gravidade e determinou que todo objeto solto neste mundo cairia em direção ao seu centro com aceleração de 9,8m/s2”? Isso não só sairia do escopo bíblico, mas também seria incompreensível para a vasta maioria dos fiéis.

    As afirmações da bíblia sobre o mundo são importantes apenas pela cosmovisão que ensinam. Por exemplo, a idéia de que o mundo teve um início, que isto ocorreu em diversas fases etc, de que a história tem um sentido, assim como, nela, têm as nossas vidas.

    Por fim, alguns motivos racionais para não ser ateu.

    1) O universo teve um início e portanto exige uma causa. Assim, é necessário que exista um Deus criador. Muitos chamam este Deus de natureza, energia etc, porque esta necessidade de um criador não é, por si só, suficiente para admitir-se a existência do Deus bíblico.

    2) Além de ter tido um início e obedecer a certas leis, estas leis podem ser compreendidas pelo homem (ao menos em parte). Esta compreensão, como qualquer outra, aliás como a própria idéia de verdade, só é possível graças à Razão. A Razão transcende o homem, ela não é conseqüência do homem, mas independente dele. Dois e dois seriam quatro mesmo que não houvesse homem algum e algo não pode ser e não ser ao mesmo tempo sob o mesmo aspecto, independentemente de todos os homens que percebam isto. É preciso admitir portanto que existe uma Razão transcendente ao qual o homem tem acesso. Muitos dirão que esta razão não é o Deus bíblico, o que até aí ainda é uma hipótese plausível.

    3) A origem da Moral não pode ser mero acidente evolutivo. Somos capazes de distinguir o certo do errado porque temos esta faculdade inata. OK, concordo que se vc for mantido entre macacos desde bebê talvez não tenha desenvolvido esta faculdade, mas ela está presente em nós ao menos potencialmente desde o início.

    4) A universalidade da lei sacrificial. Em todas as sociedades humanas existe o que René Girard chama de mecanismo do bode expiatório, desde tribos indígenas, passando pelas tragédias gregas até Shakeaspeare. O cristianismo surge pela vinda de Jesus Cristo ao mundo como vítima sacrificial única e definitiva. Não me parece razoável supor que isto fosse apenas o resultado acidental da evolução humana.

    5) A necessidade de sentido da vida. Por quê os seres humanos buscariam pelo sentido de suas vidas a ponto de precisarem dele para viver, como nos ensina Viktor Frankl, se a vida não tivesse sentido nenhum? E poderia haver sentido na vida se tudo aquilo de que trata a religião não existisse?

    Enfim, não domino muito o assunto, mas num primeiro momento, estas razões me parecem suficientes para acreditar não só em Deus, mas na compatibilidade e talvez até unidade (na Razão) entre ciência e religião. A diferença talvez seja a de que a ciência está para a religião assim como a parte está para o todo. Ou seja, a ciência é uma forma específica de entender a realidade e de se transmitir este entendimento.

    PS: acho que ficou muito grande o comentário, peço desculpas.

  2. Os escritos de Newton sobre religiao foram esquecidos porque ele era um cientista genial, mas um “teologo” mediocre, simples assim (assim como varias aventuras “teologicas” de cientistas).

    Ainda sobre o caso de Galileu, eh importante ressaltar que, em sua epoca, o conhecimento tambem provinha da igreja, e aih sim, havia um, digamos, conflito de interesses e, por isso, ateh hoje o caso eh lembrado como a religiao se curvando aa ciencia (duvido que a igreja discordasse de Galileu, mas nao podia admitir isso em “publico” pois perderia poder ).

    Uma coisa que voce nao mencionou, e que eh a base da religiao (qualquer religiao), eh a feh (desculpe, estou sem acentos) . E isso diferencia completamente uma coisa de outra. Em ciencia, por mais intuicao que se possa ter (e intuicao eh fundamental), se nao se provar nada toda a teoria nao passa de especulacao.

    Em religiao, a “prova” eh nao apenas desnecessaria quanto “demeritoria” (“felizes os que creem sem ter visto”). Qual seria o metodo cientifico para sugerir aos homens amar a Deus sobre todas as coisas e ao proximo como a ti mesmo?

    Novamente, nao existe errata nem addendum em nenhum dos livros sagrados, portanto, em sua essencia, nenhuma religiao “se curvou” a descoberta cientifica alguma.

  3. Paulo, creio que vc se engana sobre a igreja não discordar de Galileu. Ela não só discordava, como tinha razão em discordar, porque Galileu defendia a idéia de que o sol era o centro do universo, o que é absurdo. A Terra ao menos pode ser considerada o centro do universo relativamente, já que nós estamos nela e dela o observamos.

  4. Sim Felipe, eu sou o Daniel do fórum de Prilei que discutia com o Tostes, o Boca, o Motumbo, a Lady, o Magon e todo aquele povo que nunca mais vi ou tive notícias. Você, portanto, deve ser o Felipe, sempre articulado, cordial e disposto ao diálogo. É um prazer “relê-lo”.

    Quando uso o termo Religião me refiro ao que historicamente ficou conhecido como religião para nós, ocidentais: o cristianismo. E o cristianismo tem uma história. Não estou falando especificamente sobre Deus (ou seus diversos modos). Por isso, Felipe, não prego o ateísmo. Estou afirmando algo bastante específico e que pode ser historicamente confirmado. Como eu já disse, religiões privadas não me interessam, geralmente nascem e morrem com seus fundadores.

    Paulo: a fé eu entendo, já rezei muito na minha vida, já conversei com Deus várias vezes e não há como discutir fé. Ela escapa às nossas capacidades discursivas. Logo, não discuto fé assim como não discuto a existência de Deus. Porém certa vez li um texto do Heidegger sobre ciência e fiquei com a pulga atrás da orelha, segundo ele quando uma determinada cultura resolve discutir a divindade a partir da experiência absolutamente subjetiva da fé, é porque, nesta cultura, os deuses já abandonaram o mundo e vivem apenas na consciência das pessoas. Um Deus de fato presente não deveria precisar justificar-se como experiência subjetiva intransferível. E Heidegger não advoga nenhuma vantagem para a ciência, muito pelo contrário.

    O pensamento teológico católico – leigo e não leigo – concordava com Galileu se, e somente se, ele considerasse seu modelo heliocêntrico uma hipótese matemática sem implicações reais. Esta posição era defendida por Berkeley e outros. Mas o diabo era que Galileu insistia em afimar o movimento da Terra como uma realidade física. Por isso chamaram ele na regulagem.

    O conhecimento enclausurado nos mosteiros nunca gerou ciência nenhuma, Paulo. As mais desconcertantes descobertas “científicas” aconteciam nas oficinas e nos burgos. A ciência só existe porque foi carregada no colo pelo capitalismo. Como faço uma abóboda maior? Como calculo a velocidade e a trajetória de um projétil para construir uma muralha mais resistente e mais alta, com menor custo ou gasto? Como consigo ver os astros (Galileu inventou o telescópio na sua oficina, longe dos debates escolásticos)? Ou dentro de uma gota, como conseguiu fazer Leeuwenhoeck. Só depois o conhecimento foi integrado e ganhou a sofisticação de uma teoria, mas sua fagúlha inicial eram os problemas prosaicos dos burgos e nada tinha a ver com o conhecimento monástico.

    Por fim, o cristianismo é muito mais do que simplesmente a bíblia, Paulo. A Bíblia é uma evidência e – se acreditarmos no Yuri – nem de inspiração divina é. Mas não vamos tão longe, certo? A verdadeira argamassa da religião, seu tour de force racional, é a teologia e esta, meu amigo, já mudou muito e ainda mudará. Agostinho, por exemplo, deu corpo ao mistério da trindade. Boa parte da sua argumentação teológica envolvia o antigo testamento e as indicações que ele julgava claras do Deus uno e trino. Atualmente você não consegue encontrar nenhum teólogo católico – arrisco mesmo a dizer, cristão – que defenda Agostinho neste particular. Mas se Agostinho foi inspirado pelo espírito santo – uma questão de fé – como poderia ter errado??? Ah, sim, sendo humano é falho. E porque, então, não há falha em outro lugar?? E sabe porque houve tal recuo?? Porque o método hermenêutico mudou, graças, principalmente, a Espinosa (e, antes dele, Jerônimo). Deixou-se de confiar apenas na inspiração divina e os padrecos hermenêutas foram obrigados a aprender hebraico, aramaico e grego. Mas estes são exemplos de flexibilidade anteriores ao nascimento da ciência como a conhecemos.

    Enfim, não estou falando de Deus ou da fé. Não estou dizendo para ninguém acreditar nisso ou desacreditar daquilo. Estou apenas dizendo que, ao longo da história documentada, nas relações entre religião e ciência, quando concernentes ao sentido da realidade e opostas em seu conteúdo, a ciência acaba mantendo seus pontos de vistas enquanto a religião é obrigada a recuar e rever suas proposições. Como a religião, em virtude de sua natureza, é obrigada a proferir tais proposições, sempre haverá conflito. Por outro lado, minha posição implica assumir que a única forma de religiosidade verdadeira é a monástica de inspiração mística. Mas seria o abandono do mundo uma opção realmente possível?

  5. Filipe, ouvi uma argumentacao parecida no podcast do Olavo de Carvalho.
    E discordo dela em dois pontos:

    1) Se a Terra pode ser considerada o centro do universo “relativamente”, qualquer ponto tambem pode. Portanto, nao vejo “absurdo” nenhum (mas esta nao eh a razao principal e sim a proxima(2))

    2) Galileu observou (observou, veja bem) que as orbitas de todos os planetas (os que ele pode observar entao e, por isso, o seu “universo”) tinham como “centro” o sol (na verdade, o centro de massa do Sol eh um dos focos da orbita elipsoide (Primeira lei de Kepler)), e, portanto, este ultimo, e nao a terra, era o centro do universo, como entao entendido (a proposito, a teoria era copernicana)

    Daniel, concordo absolutamente com o fato de que o conhecimento produzido pela igreja nao gerou ciencia nenhuma. No entanto, a unica forma de obter algum conhecimento entao estava associada aa igreja, jah que esta detinha todo o poder. E tambem concordo que a consequente aplicacao tecnologica das descobertas cientificas (principalmente associadas aa energia/calor), gerou condicoes para que as forcas do mercado conduzissem aa revolucao nos meios de producao etc.. (um processo que ve-se ainda hoje) . Acho que uma condicao fundamentao para isso foi a separacao de igreja (ou, de modo mais geral, da religiao) e estado. Essa, talvez, seja uma das razoes pelas quais o Oriente Medio seja uma regiao tao atrasada, mesmo tendo uma historia riquissima e recursos disponiveis (pelo menos enquanto durar) . But I digress…

    Os exemplos de flexibilidade citados, como voce mesmo diz, nao tem nada a ver com descobertas cientificas e sim, penso eu (nao sou teologo nem filosofo), um debate sobre diferentes interpretacoes filosoficas, que sempre estarao sujeitos a mudancas (assim como teorias cientificas)

    Procurarei alguma referencia sobre Heidegger, mas achei interessante:

    1) “discutir a divindade a partir da experiência absolutamente subjetiva da fé” – existe algum modo de se discutir a divindade a partir de alguma experiencia “objetiva”? O que quer dizer uma experiencia subjetiva intransferivel? E como ela se difere da experiencia subjetiva individual da feh?

    2) “os deuses já abandonaram o mundo e vivem apenas na consciência das pessoas”

    Provavelmente estou fazendo a interpretacao errada, mas se deus vivesse na consciencia das pessoas, nao teriamos um mundo melhor, onde amariamos ao proximo como a nos mesmos, por exemplo? Nao eh exatamente isso – que deus viva na consciencia das pessoas – o que queremos?

    PS- A proposito, os meus comentarios visam apenas a discussao do assunto. Perdoe-me se em algum momento o ofendi ou possa ter dado a impressao de estar sendo agressivo. Essa nao eh, absolutamente, a minha intencao.

  6. Daniel, vc já leu ou ouviu falar do livro “How the catholic church built western civilization”, do Thomas E. Woods Jr? Eu estou pensando em comprá-lo.. A ciência moderna não deve sua existência, ao menos em parte, ao surgimento das universidades, graças à igreja e ao cristianismo? E não é necessário para que exista a ciência o pressuposto de que existe uma Verdade a ser conhecida? E neste caso, não estaria correto dizer que a ciência é filha da religião?

    Paulo, não entendi muito bem os seus dois argumentos:

    Se qualquer ponto do universo pode ser tomado como centro relativo, então não faz sentido nenhum afirmar que o sol é o centro absoluto. Dizer que a terra é o centro absoluto também estaria errado, mas é um erro menor, já que se algum ponto devesse ser considerado como centro, este ponto seria justamente a Terra, que é onde estamos a observar o restante do universo.

    Sobre as forças de mercado terem motivado o surgimento da ciência eu discordo. Esta interpretação me parece incorrer no mesmo erro dos marxistas, o economicismo.

    “A ciência só existe porque foi carregada no colo pelo capitalismo. Como faço uma abóboda maior? Como calculo a velocidade e a trajetória de um projétil para construir uma muralha mais resistente e mais alta, com menor custo ou gasto?”

    Vc não está sugerindo que a ciência seja um efeito da técnica? Ora, construir muralhas, desenvolver armas de guerra etc sempre foram necessidades técnicas presentes na história da humanidade. A ciência surge como um desdobramento da filosofia e a técnica passa a se aproveitar dos conhecimentos científicos, não é?

    Enfim, aceito indicações de leituras que mostrem por que eu estou errado…

  7. Eis uma bela polêmica, Felipe. Minhas observações estão baseadas, principalmente, em Paolo Rossi, veja referência nas citações do post. De fato, técnica e ciência são muito próximas e, como eu afirmei acima, a ciência só se desenvolveu completamente quando a técnica foi “adotada” pelo pensamento das universidades. Mas o debate universitário por si mesmo (conf. Cassirer sobre Nicolau de Cusa) estava confinado à escolástica e à paidéia humanística herdada dos romanos (trívio e quatrívio – conf. o próprio Paolo Rossi, mas também Pico della Mirandola, Ficino, Petrarca). Contudo, a Física – modelo para a ciência no período – preocupava-se com a força, potência, termodinâmica, gravidade, etc.; e isto não estava na pauta da universidade como a concebia o medievo e o renascimento. Foi o iluminismo que construiu o modelo de universidade atual, essencial Humboldt e, também, a distinção entre ciências humanas e físicas (cf. Verdade e Método de Hans George Gadamer). Mas concedo que o debate não está resolvido e outras interpretações são possíveis.

  8. Paulo, sobre Heidegger, eu penso numa experiência de religião muito diferente da nossa. Veja, para os gregos, ao que tudo indica, os Deuses habitavam o mundo. Dionísio era uma presença tengível, ele interferia na vida das pessoas e ver um sátiro ou um anjo era algo que poderia acontecer a qualquer um, não apenas ao Paulo Coelho. Weber tem um texto muito legal sobre isso falando do desencantamento do mundo. É disso que falo. E, não, você não me agridou e nem pensei isso. Você me perdoe se em meu texto pareci ofendido.

  9. Ronaldo Brito Roque

    Vc quer saber como fazer um aborto? Pergunte a um cientista.

    Vc quer saber se deve fazer um aborto? Pergunte a um sacerdote.

    A ciência nos diz como funcionam as coisas, e como obter certos resultados práticos da natureza. A religião nos diz o que é certo e o que é errado.

    Como matar alguém e fazer parecer que foi morte natural? Pergunte a um cientista.

    Vc deve matar alguém? Pergunte a um sacerdote.

    Abraço,
    Rbr

  10. A ideia de “centro absoluto”, se verdadeira (nao me lembro exatamente se Galileu se refere ao sol como o centro absoluto), deve ser entendida dado o contexto historico : a igreja afirmava que a terra era o centro do universo (o homem o “centro da terra” e deus o centro do homem, portanto, deus era o centro do universo- ou algo assim).

    Galileu observa que as orbitas de todos os planetas (obervados), inclusive a terra, tinham como centro aproximado um ponto, o Sol. Portanto, eh, objetivamente, muito mais razoavel supor que o centro eh o sol .

    Subjetivamente pode-se escolher qualquer ponto e nenhum eh absurdo. Objetivamente tambem pode-se escolher qualquer ponto, o problema eh derivar as equacoes… (se nao me engano o nome planeta vem de estrelas errantes, porque estes tinham uma orbita que nao batia com as “previsoes”) .

    Se voce quer estudar o sistema celeste, deve ter um centro de referencia a partir do qual as equacoes do movimento podem ser derivadas, e faz muito mais sentido (e hoje o sabemos) tomar o sol como o centro absoluto da nosso sistema solar (o “universo” de entao) do que a terra .

    Essa discussao toda nao faz muito sentido hoje, pois ha uma razao muito simples para que o sol seja esse centro (ou para que os planetas orbitem em torno dele): a sua massa eh MUITO maior do que a dos planetas. Olhando a partir da teoria da gravitacao de Newton, conclui-se que tanto o sol gira em torno da terra quanto a terra do sol, a diferenca eh que, por ter uma massa muito maior, o sol tenda a ser o “centro focal” das orbitas planetarias.

    Ateh hoje, os que se atreveram a tentar derivar o movimento dos planetas tendo a terra como centro nao chegaram a (nem sairam de) lugar nenhum…

  11. Você também continua muito você mesmo em suas respostas, Daniel, isto é, colocando palavras na minha boca. Eu nunca disse que a Bíblia não era um livro inspirado. Aliás, acho que foi exatamente o que disse que ela era, mas o fiz de forma elípitca. O que eu disse foi que ela não é – ou seja, o livro – uma revelação em si mesma, e sim um conjunto de relatos referentes a revelações individuais e localizadas. E isso é bem diferente do que você atribui às minhas palavras. O Corão, por exemplo, é considerado pelos islâmicos um livro transmitido sem qualquer ingerência de Maomé. Para eles, o Corão é um atributo de Deus, sua mensagem sem tirar nem pôr uma vírgula sequer. Daí eles nem considerarem as traduções do Corão O verdadeiro CORÃO. As traduções são sempre chamadas de “versões do livro”. A isso me referia: a Bíblia não é, tal como o Corão, uma mensagem pronta de Deus, sua revelação. É o relato – INSPIRADO – de humanos que tiveram acesso a certos fatos miraculosos. Sua linguagem é mais simbólica que literal e por isso continua válida.

    Quanto ao blablablá sobre ciência, eu deveria primeiro estudar uns 20 anos antes de te responder, já que não se trata do meu campo de estudos. Não estou afim de falar besteiras. Mas já que o assunto me interessa, vamos lá. Segundo minhas lembranças das aulas de filosofia que tive – no Equador e em Brasília – a ciência moderna só passou a ser o que é a partir do iluminismo. Segundo Xavier Zubiri – que eu fiquei conhecendo através do meu curso de filosofia no Equador, e não pelo Olavo -, a ciência moderna não busca as causas últimas das coisas, mas deseja conhecer mais as leis e relações dos fenômenos que sua essência, sendo por isso diferente do conceito clássico (aristotélico) de ciência. Diz o Zubiri: “não só não é a idéia de causa a que deu origem à ciência moderna, senão que esta teve sua origem no apurado cuidado com que eliminou aquela”. As causas ficaram pra filosofia, antes indiscernível da ciência. E, em certo sentido, para a teologia. Mas há Spengler…

    Spengler afirma que

    “não há nenhuma ciência natural sem uma religião precedente. Toda ciência crítica, como todo mito e toda fé religiosa, tem seu fundamento numa certeza íntima; suas criações apresentam estruturas e tonalidades diversas, sem, todavia, diferirem basicamente. Quaisquer objeções que a Física possa fazer à Religião recaem sobre a própria Física. Seria uma ilusão fatal crermo-nos capazes de substituir um dia as representações ‘antropomórficas’ pela ‘verdade'”.

    Se quiser entender onde ele quer chegar, leia A Decadência do Ocidente. Para mim, há apenas um erro em Spengler: a vida humana não é, como ele afirma, meramente cíclica – creio que há espirais, creio que há uma porta de saída do “eterno retorno” – porque, creio, há um Sentido além dos “sentidinhos” de cada cultura…

    Quanto às contribuições da ciência à religião serem maiores que as contribuições da religião à ciência (segundo vc, claro), talvez isto se deva a que, não direi os sacerdotes, mas os crentes sinceros hão de ser, no final das contas, mais abertos ao aperfeiçoamento que os cientistas desprovidos de fé, hehehe. 🙂

    Lembre-se que Kant ficou louquinho para falar sobre os limites do que pode ser conhecido quando tomou contato com os relatos de Swedenborg, que, segundo consta, visitou os vários céus e infernos. E Swedenborg era um cientista de renome, tendo, durante anos, torcido o nariz à religião. E é essa a contribuição que um cientista pode esperar, não direi da religião, mas da Revelação: chegar a conhecer fatos e dados que seus limites físicos, orgânicos e técnicos jamais permitiriam. Não exatamente fatos e dados científicos, mas provavelmente muito mais valiosos à vida humana, porque propõem um Sentido para a existência, um Sentido que, como bem sugeriu o Ronaldo, continua após a morte.

    Mas, caso queira falar de contribuições relativas à ciência natural, por parte da Revelação, posso citar algumas possíveis. Por exemplo: o Livro de Urântia, transcrito nos anos 1920-1930, já se referia à existência de planetas além de Plutão, assim como a diversas formações astronômicas ainda em estudo. Também fala da existência de uma imensa “singularidade”, no centro do Cosmos, que é o centro de gravidade física universal. É nela que nasce toda a Luz que percorre o Cosmos, a qual retorna à fonte tal qual o sangue retorna sempre ao coração. (E lembre-se que a matéria é luz captada gravitacionalmente, ou seja, nossos corpos vieram de lá.) O livro também se refere a um tipo de partícula – que na época ainda não teria sido detectada pelo homem – que aparentemente se movimenta no espaço de forma aleatória, mas que, na verdade, gira em torno dessa mesma singularidade presente no centro do Cosmos, isto é, a “Ilha Estacionária”, único ponto imóvel da Criação, ponto de contato da Divindade com o Espaço-tempo. Ela, a partícula, é tão sensível a esse centro quanto um elétron ao núcleo do átomo. Não poderia sair daí uma Teoria Unificada? Não seria essa um tipo de força que se encaixa tanto na descrição da forças fortes (quântica) quando das fracas(relatividade)? O livro se refere ainda a localizações de fósseis de animais, desconhecidos ou não, depositados em vários lugares da Terra. Seria fácil desmenti-lo, bastaria cavar em tais locais. Fala também da localização da, digamos, “primeira cidade universitária do mundo”, Dalamátia, cujos professores eram tidos como “deuses e semideuses” e que estaria afundada no Golfo Pérsico. Se eu fosse arqueólogo já estaria lá, mergulhando, grato por essa colaboração da Revelação…

    Há vários outros dados “urantianos” que poderiam ser confirmados ou desmentidos pela ciência. E eu agradeceria muito se o fizessem, ainda que os resultados fossem negativos. Mas não me prenderei a isso porque sei que o valor duma Revelação não se encontra aí, em questões de ordem material. Mesmo que o livro trouxesse um guia completo para a cura de todas as doenças, isto não provaria que é uma Revelação, mas apenas que seus autores entendem muito de saúde e medicina. (Sacou, Ronaldo?) Seu valor está, sim, no Sentido que ele revela existir para a alma humana individual. E, também, no novo impulso criador que ele pode dar à humanidade em conjunto, através da formação duma Cultura de alcance planetário. Mas isso só irá ocorrer dentro dos próximos 200 ou 600 anos. Todos ouviremos falar dela. Isto é, todos os que, derivando do que dizia a Hilda Hilst, pararem de coçar o saco mental e começarem a formar uma alma imortal identificada com Deus…
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  12. Certo, certo. Você realmente disse que a Bíblia não era uma revelação mas que era, sim, inspirada. Erro meu. Tá mais calminho?!!

    Bem, vamos lá:

    Segundo minhas lembranças das aulas de filosofia que tive – no Equador e em Brasília – a ciência moderna só passou a ser o que é a partir do iluminismo.

    Bem, você só passou a ser o que é depois que nasceu, não é Yuri. Ou depois que fez 10 anos. Colocar as coisas nestes termos não ajuda muito. Tanto o Iluminismo quanto a Ciência possuem uma história um tantico mais complexa. Para alguns autores, Da Vinci já era uma cientista, para outros não. O desenvolvimento do que nós, hoje, chamamos ciência está vinculado, também, à experiência de vida medieval tardia. Precisamente Newton já era cientista sem ser completamente iluminista. E no caso do Iluminismo cabe uma nota ideológica. Acho que só podemos chamar iluministas aos cientistas com clara consciência do que significou o iluminismo enquanto “visão de mundo”, algo mais próximo do cientificismo do que da ciência.

    Avante!

    Segundo Xavier Zubiri – que eu fiquei conhecendo através do meu curso de filosofia no Equador, e não pelo Olavo -, a ciência moderna não busca as causas últimas das coisas, mas deseja conhecer mais as leis e relações dos fenômenos que sua essência, sendo por isso diferente do conceito clássico (aristotélico) de ciência. Diz o Zubiri: “não só não é a idéia de causa a que deu origem à ciência moderna, senão que esta teve sua origem no apurado cuidado com que eliminou aquela”.

    Acho que o Zubiri está correto num sentido bastante preciso. A tal causa última de que ele fala, certamente, é o primeiro motor imóvel da Metafísica de Aristóteles. Aliás, são nestas notas esparsas recolhidas como volume que Aristóteles fala da Filosofia como uma forma de Teologia, uma vez que procura a causa última incausada. Portanto, é apenas lógico que a idéia metafísica de causa fosse abandonada pela ciência moderna. A idéia de causalidade, por outro lado, tornava-se cada vez mais forte enquanto explicação física. Não é por acaso que os sistemas cosmológicos dos séculos XVII e XVIII são mecanicistas, a idéia de causa lhes é essencial. Há, portanto, dois sentidos para o termo causa. Convém não confundí-los.

    Parece-me que você pretendia traçar uma linha de fronteira para a diferença entre ciência e religião ao introduzir a reflexão do Zubiri, ou queria apenas dizer que leu alguma coisa sobre o assunto? É uma pena que você não tenha terminado o racioncínio. O próprio Zubiri tinha uma curiosa teoria da inteligência (pareceu-me curiosa, já que não li nada sobre ela) que não sei bem o que é. A fenomenologia espanhola é muito interessante e também interligada. Basta ler Ortega y Gasset ou Julian Marias e ir puxando o fio da meada.

    Continuando:

    não há nenhuma ciência natural sem uma religião precedente. Toda ciência crítica, como todo mito e toda fé religiosa, tem seu fundamento numa certeza íntima; suas criações apresentam estruturas e tonalidades diversas, sem, todavia, diferirem basicamente. Quaisquer objeções que a Física possa fazer à Religião recaem sobre a própria Física. Seria uma ilusão fatal crermo-nos capazes de substituir um dia as representações ‘antropomórficas’ pela ‘verdade’.

    Há mais argumentos interessantes para se desembaraçar em uma citação de Spengler do que em todo o texto anterior do Yuri. Mas este trecho veio a calhar porque, a partir dele, podemos esclarecer um pouco as coisas. Spengler diz que não há “nenhuma ciência natural sem uma religião precedente”. É preciso entender bem isso. Ele pensava na origem histórico-cultural do discurso científico ou numa primazia ontológica da religião sobre a ciência? São coisas bem diferentes. Podemos dizer que, historicamente, o mito precedeu a filosofia grega, mas em momento algum podemos dizer que o mito é o fundamento ontológico da filosofia. Os dois discursos falavam sobre as mesmas coisas, mas não do mesmo ponto de vista e, por conta disso, colidiram em vários pontos. De qual dos dois sentidos estamos falando?

    Por outro lado, Spengler iguala na “experiência íntima do homem”, tanto a ciência, quanto a religião, quanto o mito. Mas há diferentes experiências íntimas ou, para sermos mais kantianos, faculdades do espírito. Não é com os mesmos olhos que vejo a rua, um teorema matemático ou Deus. Posso concordar com o fato de que as certezas científicas provenham de uma “experiência íntima”, mas nem por isso sou obrigado a supor que seja a mesma da religião ou do mito. E, assim, é realmente uma tolice SUBSTITUIR uma coisa pela outra. Mas de onde o Yuri tirou que estou tentando cometer este pecado???.

    Esclarecendo: quem coloca ciência e religião uma diante da outra em posições opostas é a própria religião, ao procurar discorrer sobre estados de coisas do mundo e sobre o sentido da realidade. Se a religião fosse assim como o mito (uma historinha para dar sentido à nossa vidinha besta) não teria problema nenhum com ela, nem a ciência. Mas a religião quer legislar sobre a consciência e, para tanto, não pode ser apenas uma histórinha. A Bíblia e Chapeuzinho Vermelho são diferentes tipos de produção simbólica. O que faz a diferença? O fato de que a religião se quer verdadeira (não sobre A ou B, mas sobre tudo, e não relativamente, mas absolutamente verdadeira) e a idéia de verdade de qualquer religião passa por sua ligação com a divindade. E a divindade existe, empiricamente. Não é um fruto da nossa imaginação, não é como um unicórnio ou um hobbit. Lembre-se de Anselmo, Yuri. “Deus é aquilo do qual não se pode pensar nada maior e, portanto, existe”. Esta existência – contra a qual Kant tinha birra – é real. Deus deve existir assim como este teclado existe, embora nossa percepção dele não seja da mesma natureza da nossa percepção sobre o teclado. É precisamente neste ponto que ciência e religião colidem. E a resposta da religião as este enfrentamento são as teorias da inteligência dos Zubiris da vida, o homem, os abismos de nós mesmo. A antropologia filosófica. Não estou tirando este problema do meu saco de maldades retóricas, é um problema real. Meu mestrado foi sobre isso Yuri.

    É disso que eu estou falando. Só. Mas conceder já é fraturar o diamante precioso de todo crente, pelo que vejo. E não se pode olhar o mundo com clareza através de um diamante lascado.

  13. Hã? Conceder o quê? (Leia numa entonação amigável, por favor. Vc parece andar sempre tão nervoso e embirrado que acaba projetando isso em meus textos. Como assim “mais calminho”? Não perdi a calma com vc em momento algum. Releia tudo o que escrevi nos últimos dias e vc verá.) Conceder que vc tem uma pergunta que ninguém aqui, inclusive vc, é maduro e sábio o suficiente para responder? Tá, concedo.

    E cá entre nós, a única religião institucionalizada a arbitrar sobre as pessoas, nos dias de hoje, é a islâmica. É a única dotada dos meios de vigiar e punir, porque associada ao Estado. Veja este exemplo – se é que preciso dar exemplos. Sempre que o catolicismo condena, sei lá…, a camisinha, isso não passa de uma posição assumida publicamente visando orientar seus fiéis segundo seus preceitos. (E eu não sou católico ou o que quer que seja, não estou “defendendo o meu diamante”.) A igreja católica não sai por aí queimando ninguém porque esse ou aquele usou camisinha. Se vc não se sente confortável com a posição dela, ignore-a. Ou deixe de ser católico. Deixar de ser católico não é deixar de ser cristão. A igreja não vai te perseguir por isso. Aliás, são os católicos que estão sendo perseguidos na China, nos países islâmicos e similares. Isso te deixa um pouquinho consternado? Acho que não, né, talvez vc não veja essa gente senão como tolos que acreditam em fábulas, né mesmo?

    Aliás, acho muito engraçado vc se preocupar com essa suposta intenção de “legislar sobre NOSSA consciência” por parte de todas as religiões, e não enxergar a mesma intenção no estatismo da ONU, da esquerda, das fundações milionárias, do Foro de São Paulo e assim por diante. Um peso, duas medidas, né, cara. (Por falar em Foro de São Paulo, olha só a Saudação das FARC tecendo elogios ao PT.)

    No mais:

    1) Sim, critico sobretudo o cientificismo e não a ciência. Já citei Krishnamurti: “J’adore la science”. São os cientistas cientificistas que ficam procurando chifre em cabeça de cavalo, são eles que deixam seus métodos tomarem conta de suas mentes, tentando em seguida legislar sobre as consciências religiosas do próximo. E esses caras iniciaram essa frescura durante o iluminismo.

    2) Sim, entendo a diferença entre as duas definições de “causalidade”. Sim, eu me esqueci de dizer que a causalidade abandonada pela ciência é a de caráter metafísico.

    3) Até onde entendo, Spengler pensava – em suas próprias palavras, Daniel – na “primazia ontológica da religião sobre a ciência”. Ele afirma que a visão de mundo ditada pela religião finca raízes tão profundas que o mais qualificado dos cientistas não percebe que usa conceitos extraídos dela. Faz certas relações – como entre “força” e “vontade”, por exemplo -, mostra como certos conceitos da física (como o de “conservação de energia”) carecem de significado real e demonstra como tudo o que é “exato” carece de sentido. Parece maluquice, mas não é. 🙂

    4) A propósito: um mito não é nenhuma “historinha”. É o mito que lança as bases da consciência. Se Sócrates andava sempre a desmontar crenças e burradas, também costumava, logo em seguida, sacar um mito para preencher o espaço vazio subsistente. Foi graças aos mitos que ele encontrou a tranquilidade necessária para enfrentar a morte. E, neste caso, o mito será sempre mais forte que qualquer filosofia. Vc verá.

    Fui.

  14. “Se a religião fosse assim como o mito (uma historinha para dar sentido à nossa vidinha besta) não teria problema nenhum com ela, nem a ciência. Mas a religião quer legislar sobre a consciência e, para tanto, não pode ser apenas uma histórinha. A Bíblia e Chapeuzinho Vermelho são diferentes tipos de produção simbólica.”

    Daniel, imagino que a sua explicação do que seja um mito (“uma historinha para dar sentido à nossa vidinha besta”) foi meramente retórica, ou vc acha que um mito é somente uma “historinha”?

    De qualquer forma, mesmo os contos de fada, como o da chapeuzinho vermelho, têm também a pretensão de “legislar sobre a consciência”, como nos explica em termos freudianos o Bruno Bettelheim em A psicanálise dos contos de fadas.

    A diferença entre o mito ou o conto de fadas e a religião é (não exclusivamente) que, como vc mesmo afirmou, “a religião se quer verdadeira”. Mas eu não entendi muito bem o que vc quis dizer com “absolutamente verdadeira”. Também não entendi muito bem o que vc quis dizer que “a idéia de verdade de qualquer religião passa por sua ligação com a divindade”. O que significa “passa por”?

    Se a religião é estudada por textos simbólicos, a sua verdade só pode ser conhecida pela interpretação simbólica, ou seja, por tentativas mais ou menos bem sucedidas de transformar a sua linguagem simbólica em uma doutrina logicamente e filosoficamente estruturada.

    Não vejo como a ciência poderia se opor a isto, da mesma forma como não poderia se opor à filosofia.

  15. Certíssimo, Felipe. Quando chamei o mito de historinha, quis apenas ressaltar sua natureza ficcional. Para a religião o mito é uma ficção, ainda não havia sida revelada (ou inspirada) aos homens a Verdade.

    Meu objetivo era separar ficção de religião. Mas também separar os aspectos meramente culturais ou simbólicos dos teológicos. Esta separação, obviamente, é artificial na medida em que não corresponde à complexidade in toto do fenômeno religião. A razão pensa aos pedaços o que é inteiro. Assim ela acredita encontrar o que é maior do que as partes: a unidade. Se a religião for somente uma liga moral e cultural da civilização, ela se torna tão material quanto qualquer discurso produzido pelo homem, tão material quanto, digamos, a ciência. Não haveria transcendência alguma no discurso religioso. Contudo, pregam os crentes, o fundamento da moralidade religiosa é a própria personalização desta transcendência: Deus.

    E Deus existe. “Eu sou aquele que é” disse Deus a Moisés. Acima de qualquer relativismo há a existência pura e simples da divindade. Esta pretensão, em qualquer religião, é absoluta. Conceda isso, e não haverá mais religião. Aliás, a própria idéia de uma verdade revelada/inspirada fundamenta-se nisso, no contato direto com Deus – escreva ele mesmo o texo ou dite. Por isso é absoluta. Do contrário, seremos relativistas.

    Se a religião é estudada por textos simbólicos, a sua verdade só pode ser conhecida pela interpretação simbólica, ou seja, por tentativas mais ou menos bem sucedidas de transformar a sua linguagem simbólica em uma doutrina logicamente e filosoficamente estruturada.

    Mas o que nós interpretamos neste jogo semântico? As mensagens de um ser transcendente – elaboradas por seu amor infinito -, ou um jogo de máscaras e espelhos de nós mesmos, como num conto de fadas? Esta é a questão fundamental para a qual não tenho resposta.

  16. O anti-spam tinha bloqueado meu próprio comentário, veja só. Taí acima do comentário do Filipe.

  17. Daniel, me pergunto se vc não está misturando a existência objetiva de Deus como fundamento da religião (ou pelo menos da cristã, para evitar maiores polêmicas), com uma suposta separação absoluta entre ela e o mito.

    Pelo que eu entendi, vc separa o mito, mera ficção e que, portanto, teria caráter apenas “imanente”, da religião, que tem fundamento transcendente.

    Eu concordo que é preciso este fundamento transcendente, mas embora eu não tome o mito como verdade na mesma medida em que tomo a religião como verdade, não acho que se possa daí supor que tudo no mito seja imanente. E talvez nem nos contos de fada.

    Se por um lado são criações humanas, por outro lado o próprio homem é criação divina, feito à sua imagem e semelhança. O homem tem em si mesmo algo de transcendente e pode explorar esta transcendência em suas própria criações ficcionais.

    Acho que é possível dizer que a religião tem a pretensão de “legislar sobre a consciência” não no sentido de que ela cria o certo e o errado, mas que orienta o homem por um caminho a ele acessível e dela independente. A religião dá uma “mãozinha” ao homem, ela não é a fonte do bem e do mal. Assim, o mito é uma forma de o homem caminhar por si só, que também tem algo de transcendente porque o transcendente é acessível ao homem. A religião, ao dar esta “mãozinha”, aprimora o conhecimento mítico (não sei se existe esta expressão). Neste sentido, por exemplo, considero o judaísmo superior às demais religiões de sua época e o cristianismo superior ao judaísmo. Mas não acho que as demais religiões, assim como o mito sejam totalmente desprovidas de verdade e de transcendência.

  18. PS: No famigerado discurso em Regensburg, o papa afirmou:

    “A fé é fruto da alma, não do corpo. Por conseguinte, quem desejar conduzir alguém à fé tem necessidade da capacidade de falar bem e de raciocinar correctamente, e não da violência nem da ameaça… Para convencer uma alma racional não é necessário dispor do próprio braço, nem de instrumentos para ferir ou de qualquer outro meio com que se possa ameaçar de morte uma pessoa…”

    Como seria possível convencer uma pessoa à fé se a fé só fosse acessível ao homem pela revelação ou pela aceitação desta revelação? Não se trata apenas de uma escolha, mas de um convencimento racional, não é mesmo? E com base em que se argumentaria se a religião fosse apenas o resultado da revelação? Por isso é preciso que haja um caminho acessível ao homem e independente da religião.

  19. Até onde sei, Filipe, toda tradição religiosa (não me refiro à fé pessoal) tem início com uma revelação. Além disso, vale lembrar que reside aí a diferença entre seita e religião: uma seita não precisa duma revelação para vir ao mundo, mas tão somente de um conjunto de idéias, símbolos, ritos e doutrina saídos da cabeça de um qualquer. Toda tradição legítima, ao contrário, tem origem a partir de um mito. Em grego, mythos não significa simplesmente “historinha” ou “fábula”. Mythos é, antes de tudo, a “coisa dita, contada ou reportada”, é o “fato”, a “mensagem”. Os relatos míticos podem sofrer mil e uma mudanças e distorções no correr do tempo – tal qual um telefone sem fio – mas a questão é que algo, algo que tem uma relação íntima com o que é reportado, realmente aconteceu. Esse algo, via de regra, é a revelação. Mas entendo onde você quer chegar. Seria de fato totalmente improfícuo, para não dizer impossível, a subsistência duma religião que dependesse duma revelação “pessoal e intransferível” dirigida a cada um de seus fiéis individualmente. A razão sempre vai empós da intuição, da nossa capacidade de apreender o mundo. A razão organiza, classifica, sopesa e julga os dados apreendidos. Caso não houvessem ocorrido as várias revelações neste planeta, ainda estaríamos adorando apenas imagens daquilo que vemos todos os dias – o sol, a lua, a floresta, o mar, as estrelas, os homens, os animais, etc. – e suas respectivas derivações imagéticas. E aí reside a grande dificuldade daqueles que têm acesso às revelações: transmitir a verdade que perceberam àqueles que não tiveram o mesmo contato. Mesmo Jesus, ele próprio uma revelação, sofreu mil e uma dificuldades para fazer seus apóstolos compreenderem o verdadeiro propósito de sua missão. Por mais perfeito que fosse seu raciocínio, o entendimento dos seus associados nunca esteve à altura, o que o fez recorrer vez que outra a parábolas e milagres. O próprio Saulo de Tarso, antes de se tornar Paulo, por mais inteligente que fosse, não era capaz de compreender o fato de que o Criador visitara a Terra. Para tanto, necessitou de uma “revelação pessoal e intransferível” ocorrida no caminho de Damasco. E isto, por mais que Paulo tenha incorporado à doutrina nascente sua própria interpretação do milagre, foi essencial para o desenvolvimento do que hoje conhecemos como cristianismo.

    Enfim, a razão, sozinha, pode elaborar mil e uma filosofias, mas não pode criar do nada uma religião. Agora, ser bom de lábia pode ser muito útil no que se refere a propagar a “boa notícia” revelada. Mas não é determinante. Maomé e Paulo, para citar apenas dois, foram apedrejados vezes sem conta por ouvintes cínicos e intolerantes. É preciso, sobretudo, que haja boa vontade e verdadeira sede espiritual do, digamos assim, “receptor da mensagem”. Não adianta, para o “transmissor da mensagem”, ser bom em lógica quando o ouvinte não o é. Pior ainda se o transmissor tampouco for exímio em lógica, ainda que razoável em retórica, tal como era a maioria dos apóstolos. Aliás, se o entendimento por si só fosse infalível na transmissão e recepção da revelação, o Daniel já teria lido O Livro de Urântia há muito tempo…
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  20. Hehehe. Por certo o Yuri não tem feito uma carreira brilhante como apóstolo do livro de Urântia. Esperemos, então, que algum novo Saulo caia do cavalo.

    Enquanto isso, vamos aos questionamentos do Felipe.

    De fato substimei bastante a complexidade do mito e foi um erro. Pretendia realçar o que separa mito e religião (a revelação, como disse o Yuri) e não o que os aproxima. Se percorrermos todas as veredas do caminho, jamais chegaremos ao nosso destino em tempo. Podemos discutir o mito num outro momento.

    Se não estou enganado, seu raciocínio é circular. Somos seres criados por Deus, por isso temos alguma fagulha congênita da transcendência. Sem revelação, podemos fazer apenas mito. Com revelação, temos a religião. Contudo, o que nos aponta, enquanto seres humanos, para esta transcendência é a própria religião ou o mito. Assim, através do discurso mitológico ou religioso nos compreendemos criaturas partícipes – ainda que de modo restrito – da divindade. Participação revelada apenas pelo próprio discurso mitológico ou religioso. Eu acho circular.

    Apesar disto entendo seu argumento. Principalmente pela citação do Papa. O trecho afirma que é possível chegar à idéia de transcendência sem abidicar da razão, como num processo racional cristalino cujo limite é a ponta de encaixe no pensamento religioso. Pareceu-me óbvio que o Papa aponte uma saída para o círculo em que você se meteu. Outra coisa dita no trecho é a vocação intelectual da evangelização. Por isso os padrecos precisavam das minhas aulas de metafísica e ontologia antes das aulas de teologia e cristologia. Para mostrar aos fiéis como fides et ratio se conectam. Este Papa representa o melhor – em termos intelectuais – da Igreja.

    Bem, razão e ciência não são uma conjunção exclusiva, ou seja, é possível racionalidade em discursos não científicos. Mas a razão não explica a revelação.

    O termo vem do latim revelare e implica não só uma ação positiva do sujeito, um desmascaramento, mas também uma ação do objeto que se revela, um dar-se a ver. A razão não desmascara Deus, ela abre um certo espaço – Heidegger diria clareira – no qual Deus se mostra. Nós preparamos os químicos, a temperatura, o tempo de exposição à luz e a foto aparece. Daí a pergunta que fiz mais acima:

    Por outro lado, minha posição implica assumir que a única forma de religiosidade verdadeira é a monástica de inspiração mística. Mas seria o abandono do mundo uma opção realmente possível?

    Toda a mística cristã da idade média acreditava num contato direto com Deus. Ignácio de Loyola escreveu seu itinerário com isso em mente. Toda a vida monástica que dominou a Europa durante os séculos X e XI partia deste princípio: entregar a vida a Deus e abandonar o mundo.

    O Papa, logicamente, não iria tão longe a ponto de propor um retorno ao cristianismo primitivo. Não apenas porque ele está teologicamente certo, mas porque é necessário encontrar um sentido para a própria Igreja. Ei-lo: guardiã e especialista na interpretação da palavra revelada. Não mais a única (a referência para o que é heresia e o que não é), a oficial.

  21. Conceder o quê? Ora,

    a. Que a relgião recua diante do discurso científico quando confrontada (não em seus dogmas, claro, mas nas assertivas sobre a ordem e o sentido do mundo).

    b. Que tal recuo implica um ponto de atrito historicamente verificável. Ciência e relgião não estão em “planos” distintos, nem falam exclusivamente sobre assuntos distintos.

    Só isso.

  22. “Seria de fato totalmente improfícuo, para não dizer impossível, a subsistência duma religião que dependesse duma revelação “pessoal e intransferível” dirigida a cada um de seus fiéis individualmente.”

    Yuri, sabemos que a revelação não é “intransferível”. E por quê? Por que pessoas que nunca viram os milagres de Jesus acreditariam neles? Por que os apóstolos conseguiram convencer tanta gente que não presenciou a vida de Jesus? Só por confiança? Se eu começar a espalhar por aí alguma estória extraordinária, as pessoas acreditarão em mim? Será que é meramente uma combinação entre a habilidade do “transmissor” e sua confiabilidade que leva as pessoas a acreditarem nele?

    “Somos seres criados por Deus, por isso temos alguma fagulha congênita da transcendência. Sem revelação, podemos fazer apenas mito. Com revelação, temos a religião. Contudo, o que nos aponta, enquanto seres humanos, para esta transcendência é a própria religião ou o mito. Assim, através do discurso mitológico ou religioso nos compreendemos criaturas partícipes – ainda que de modo restrito – da divindade. Participação revelada apenas pelo próprio discurso mitológico ou religioso. Eu acho circular.”

    Aí é que está. Não é o mito ou a religião em si que nos “revela” o transcendente, mas a capacidade inata que temos de compreendê-los. Padre Vieira escreveu que o problema dos pregadores era eles não pregarem a palavra de Deus. O problema não era especificamente deles nem dos ouvintes, ou seja nem do “transmissor” e nem do “receptor”, mas da mensagem. E por que é a mensagem que importa?

    Por que o Papa afirma que para se convencer alguém é preciso falar bem e raciocinar corretamente? O que ele quer dizer com “corretamente” e “bem”? Ora, só pode ser raciocinar e expressar a mensagem de forma verdadeira. Aquele apreende a verdade e é capaz de expressá-la é o bom pregador, porque só assim ele está de fato pregando a palavra de Deus. E a palavra de Deus é tão poderosa porque temos a capacidade inata de apreender a verdade nela contida.

    Vcs por favor me corrijam se eu estiver falando besteira, mas por que Platão afirma que aprender algo é como se lembrar de alguma coisa? É porque este algo que se aprende já estava presente, não é? O mito e a religião não criam a verdade e nem a nossa capacidade de percebê-la, estas já existiam independentemente deles. O que eles fazem é nos ajudar a nos “lembrarmos” da verdade.

    “Até onde sei, Filipe, toda tradição religiosa (não me refiro à fé pessoal) tem início com uma revelação”

    Aí vc pode me perguntar: por que então nunca aconteceu de uma religião surgir somente da intuição de algum gênio (sem revelação) e a partir daí se propagar?

    Eu respondo que isso não aconteceu com religião alguma, mas aconteceu na filosofia e surgiram muitas escolas a partir de um conhecimento adquirido por uma pessoa, sem revelação. Mas a forma do discurso filosófico não é compreensível para todos como o é o discurso mitológico ou religioso, porque só a linguagem simbólica é capaz de dar conta da complexidade da verdade sem se tornar incompreensível para as massas.

    No caso específico do cristianismo, existe algo além da “mensagem”. O cristianismo não é apenas fruto de uma revelação, mas também de um ato de Deus, que sacrifica o seu filho para cumprir a lei sacrificial toda de uma só vez, expiando os nossos pecados. Mas acho que aí estaríamos fugindo do assunto. Só quis expressar que a religião não se resume a passar uma mensagem verdadeira.

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