Vinícius de Oliveira, um leitor, me enviou o conto abaixo dentro do espírito da Tragicomédia Acadêmica. Eis como ele o apresenta: “Li sua tragicomédia acadêmica e devo confessar que nunca ri tanto lendo contos. Estudo também em uma Universidade Federal e sei muito bem o que você ironizava nos seus contos. Aproveito para te apresentar um conto meu também sobre a tragicomédia acadêmica, inspirado numa personagem real da minha instituição”.


Doutora Luciana Magalhães

Srta. Luciana Magalhães é a eminente professora de Filosofia do Direito de nossa Universidade Federal. Srta. não, é despeito. Doutora Luciana Magalhães. Doutora pela Universidade de Paris, apesar dos 28 aninhos. Mais um dos nossos prodígios acadêmicos.

Doutora muito precoce, é verdade, mas para isto fora preparada pelos pais, que a matricularam em uma escolinha já aos 3 anos de idade. Filha única, sempre recebeu os extremados cuidados do casal de burocratas. Pai e mãe pertenciam ao funcionalismo público – a mais bela das carreiras, aquela devotada ao público, ao social, ao bem-comum, ao contrário das carreiras privadas, inspiradas unicamente no lucro e na satisfação pessoal. O pai trabalhava na previdência social e era professor de Geografia em colégio do estado, a mãe era psicóloga forense e professora de uma universidade estadual. Eles suaram a camisa a vida toda para dar a ela a melhor educação possível, espremendo o exíguo ordenado. Luciana estudou nos melhores colégios – privados, vá lá, afinal o ensino público não é bem cuidado pelo estado nestes negros tempos de neo-liberalismo. Estudou no Colégio Equipe, fez aulas de natação, piano, inglês – afinal é preciso conhecer as aramas do inimigo – e teatro – tendo ela mesmo, aos 14 anos, montado e dirigido uma peça de Brecht no ginásio.

“Tem vocação intelectual a menina”, comunicou o pai à mãe quando a garotinha ganhou um concurso de redação escolar sobre o meio ambiente, aos 10 anos, com o título A Ganância Capitalista e a Destruição da Mãe Natureza. Surpreendeu a todos citando J. J. Rousseau, e sua crítica à civilização, exceto ao pai que já tinha falado do grande genebrino para a pequerrucha. Durante todo o período escolar fora sempre a CDF chatinha, a primeira da fila, as notas mais altas da escola, sempre a primeira a responder às perguntas dos professores. Do professor de Geografia angariou o ímpeto de se indignar contra as injustiças sociais e de clamar pelos deserdados da terra, mormente pelos aflitos homens do campo sem-terra, pelos posseiros da Amazônia, pelos índios, nossos irmãos da selva, terrivelmente aculturados pelo grande estuprador europeu. Aos 12 anos, num trabalho sobre os autóctones, na data comemorativa de 19 de abriu, tendo subido na mesa do professor, leu para a turma, entre lágrimas, uma letra de música da Legião Urbana: “Nos deram espelhos / E vimos um mundo doente…” A professora de História também se emocionou, e a de Português exultou de alegria, congratulando a menina por ter escolhido um “poema” tão pertinente, deste poeta do nosso tempo que é Renato Russo.

Na sua formatura de segundo grau, quando já havia ganhado a alcunha de Castro Alves de saias, foi, claro, a oradora da turma. Naquele 1992 não pôde deixar de exaltar a altivez, a bravura e o senso histórico e sociológico dos caras-pintadas, novos paladinos da cidadania, da ética pública e da justiça social, em sua luta contra as carcomidas elites patrimonialistas. Fato inusitado na era de uma juventude tão apática e alienada, a geração “a gente somos inútil”, que nem de longe lembrava o brilho, o entusiasmo, e o senso revolucionário da juventude anos-rebeldes de seus pais. No auditório da cerimônia de formatura, a velha derramava uma lágrima pela recordação dos sagrados anos 60, e o velho mal se agüentava sentado na cadeira, após a recordação pela filha da turma heróica dos Che Guevara, John Lenon, Caetano Veloso, dos estudantes franceses de maio de 68, de Luther King, de Jane Fonda, de Abbie Hoffman, de Marighela, de Bob Marley, do Woodstock, do Vietnã, do flower power e de Erasmo Carlos.

Depois, Luciana foi para a USP, graduou-se e pós-graduou-se, tornando-se, nesta fase, uma notável militante do movimento estudantil e ocupando, inclusive, importantes postos na UNE. Posteriormente, foi aprovada para o Ministério Público, entre os 10 primeiros colocados, mas abdicou da carreira para dedicar-se exclusivamente ao magistério, ao acúmulo de títulos, de papers, de opúsculos, de orientações de iniciação científica, de pontos no CNPq, CAPES e outros órgãos de fomento.

Hoje, Luciana é doutora, é membro de destaque na elite intelectual do país. Quem sou eu para discutir as suas aulas, sequer as compreendo. Em nosso departamento é a doutora mais respeitada, a intelectual cujo espírito paira acima de todos os demais, arbitrando os conflitos e fiscalizando. O resto do corpo docente é composto da casta dos tecnocratas jurídicos, dos que só entendem da superfície das leis, da epiderme da sociedade. Ela é filósofa, eles são jus-cientistas, e ciência, como dizia a sua suprema mestra Marilena Chauí, é o verdadeiro ópio do povo. Daí a posição superior da jus-filósofa. E por falar de Chauí, ela é só mais uma estrela de sua plêiade de mestras. Feminista feroz, decora seu gabinete só com fotografias de mulheres da pesada: além da filósofa da USP, estão lá Rosa Luxemburgo, Betty Friedan, Margareth Mead, Indira Gandhi, Simone de Boavoir, Elis Regina, Cássia Eller e Madona! Certa vez, eu sugeri a ela, ingenuamente, que acrescentasse ao seu panteão o retrato de mais uma mulher famosa: Margareth Tatcher. Jamais eu poderia esperar que ela reagisse com tamanha indignação a uma sugestão tão bobinha, só faltou me escorraçar da sala. Terminou dizendo que a dama de ferro só pode ser homem para ser assim tão execrável! Então pedi desculpas e tentei um nome menos polêmico: Luíza Erundina. “Esta vai, mas não tem muita relevância histórica”, retrucou. Alguém me disse que Luciana era lésbica, que tinha uma affaire com uma professora do Departamento de Letras, companheira de luta feminista, uma tal que negava a necessariedade de feminilidade nos seres portadores de vagina. Mas não creio, pois já vi a Magalhães com alguns homens e a ouvi elogiar a beleza feminil de David Beckham.

Sua cátedra é a de Filosofia do Direito, todas as suas investigações giram em torno dos temas da Democratização e Concretização de Participação Popular na Administração Pública e da Teoria da Linguagem Jurídica. Este último é o setor do conhecimento jus-filosófico a que se dedica com maior entusiasmo e desvelo. Sua empreitada é a de demonstrar o que oculta o discurso jurídico, o que subjaz aos grandes princípios de direito e às pretensas apologias de justiça, desmascarando à guisa de Freud, à guisa de Marx, mas, sobretudo, através da metodologia de Foucault, a pretensa objetividade da ciência jurídica. Seu trabalho, em suma, é o de descerrar as cortinas de ideologia humanista para revelar relações de poder e submissão insuspeitas. Sua bíblia é “Vigiar e Punir”, do grande filósofo das saunas gays de Los Angeles. Faz tudo isto em prol da Humanidade. Da Humanidade que aprendeu a amar nos livros de Organização Social e Política do Brasil de Frei Betto, no Leonardo Boff, no Eduardo Galeano e, posteriormente, em Lukács, em Gramsci, em Altusser, em Adorno, em Merleau-Ponty, em Marcuse, em Derrida, em Erich Fromm, em Habermas, em Lacan, em Deleuze, em Barthes, em Chomsky, em Chesnais, em Heidegger e em Engish; nos filmes de Milos Forman, Scorcese, Leon Hirshman, Glauber Rocha e Zé do Caixão. Nas artes, me parece, só odiava mesmo o porco machista e conservador do Nelson Rodrigues. No mundo jurídico, só nutria aversão pelo Miguel Reale, segundo ela um paquerador de regimes totalitários, fascistóide e eminência parda do AI-5.

Sempre me impressionou a maneira imponente, o andar empertigado de Luciana ao entrar na sala de aula, portando olimpicamente a grande sinagoga do conhecimento – crítico, registre-se, para não confundir com o mero escolasticismo careta – que é a sua cabeça. Vem sempre vestida com um saião de senhora de respeito, e um salto que a eleva bem além das cabeças incultas e alienadas destes estudantes sem verve nem consciência social, tecnicistas jurídicos que só almejam fins mesquinhos na vida: o poder, o dinheiro e a estabilidade, ainda que em detrimento da justiça. Vem muito bem arrumada, sisuda, senhora de ciência, senhora de altas preocupações, de high seriously. Mal larga a elegante pasta adquirida nos seus anos de Paris sobre a mesa, começa a proferir o seu discurso-aula, sem começo, nem meio, nem fim. Sua fala é pontuada de termos como zetética e dogmática jurídica, o ideekleid, a weltanschauung, a auteridade, o ente e o ser, a sociedade civil, o ego, o id e o superego, o homem unidimensional, a hermenêutica, a maiêutica, o positivismo e o jusnaturalismo, a infraestrutura e a superestrutura, os aparelhos ideológicos do estado, a heurística, os arquétipos junguianos, o desconstrucionismo, a fusão sujeito-objeto, a morte do sujeito, a dialética e a lógica pura, a interdisciplinaridade, o Espírito, o apriorismo gnosiológico, a fenomenologia, a crítica da razão pura, a vontade geral da nação, as contradições intrínsecas do sistema de produção, a mais valia pós moderna, as idiossincrasias neo-liberais, os juízos a priori e a posteriori, os mitos fundadores, o coeficiente de tecnicismo na filosofia, o turbo-capitalismo, o escambau.

Por fim, ela termina tecendo uma ardorosa crítica aos Estados Unidos da América, a nova Roma com seu neo-imperialismo e seus satélites GPS com que pretende controlar nossas mentes. Eu, que não possuo uma forma mentis filosófica, não tenho fôlego para acompanhar este mergulho da Srta. Magalhães nas profundezas da reflexão crítica, atravessando as tortuosas vias da conceptualística filosófica, para enfim emergir com a crítica humanitária do global-despotismo ianque. Talvez seja este o fim da evolução dialética do espírito, talvez o fim daquela história toda que ela conta seja a crítica do fascismo bushista.
Não, tudo isso é demais para mim. Admiro e respeito o árduo labor dos intelectuais em busca do conhecimento e da transformação social, as suas dialéticas, as suas zetéticas e dogmáticas, mas não consigo aspirar ao mesmo bem a que eles aspiram. Talvez por isto eu não os compreenda. Meu destino é a mesquinharia, a mesquinharia dos rábulas tecnocratas. Só cobiço coisas mesquinhas.Da professora, por exemplo, me perdoem a franqueza, só cobiço – ah, quando ela se vira para rabiscar a lousa… – só cobiço as ancas, aquelas ancas cheinhas na medida certa, duras, empinadinhas, que aquelas saias fazem ressaltar.