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Tiranos e Internet

Eu já escrevi aqui um bom número de vezes a respeito dessa fobia petista – totalmente afinada com certas ditaduras – para com a livre comunicação via internet. (O artigo Totalitarismo digital ou Infernet é um bom exemplo.) Mas uma amiga me enviou um artigo, assinado pelo jornalista José Roitberg, dos mais preocupantes. Chama-se Primeiro as Armas, Agora os E-Mails. Vamos reagir!. (Encontrei uma cópia neste site.) Trata-se dum projeto de lei do famigerado senador Delcídio Amaral – que não nega sua raça petista – que pretende monitorar e arquivar, durante dez anos, todos os email enviados e recebidos pelos cidadãos brasileiros. (Sobre o assunto, há uma nota da Folha de SP aqui.) E a coisa continua tramitando! Aliás, há vários projetos de lei, referentes à Internet, rolando por aí sem que a imprensa se debruce sobre eles. Mas este projeto, do doido do Delcídio, quer implantar um verdadeiro Big Brother digital neste país. Nas palavras do Roitberg:

Vou colocar uma situação semelhante, para você ter certeza da absurda ilegalidade desse projeto de lei. Imagine se o governo tivesse autorização legal para tirar xerox e arquivar cada correspondência que trafega pelos correios, tabulando remetentes e destinatários? Precisa falar mais alguma coisa? Quem sabe, todos os telefonemas seriam gravados digitalmente? Por que não?

Vá lá na República de Platão (Livro VIII) e veja como se origina o tirano, o “protetor do povo”. Saído da democracia, ele agora quer saber o que pensam seus adversários. Não quer que conspirem contra ele. Não deseja senão provas da sublevação de seus inimigos. É um petista (ou chavista, ou fidelista, ou baathista, ou evista, ou hitlerista) purinho:

“E assim, é natural que a tirania não possa surgir de outra forma de governo senão da democracia, isto é, da extrema liberdade nasce, segundo penso, a maior e mais rude servidão.”

(…)

Começam então as denúncias, os processos e as lutas entre uns e outros?”

“Com efeito.”

“E o povo sempre tem algum campeão que coloca à sua frente e cujo engrandecimento favorece?”

“Sim, é o que costuma acontecer.”

“É dessa raiz e não de outra que brota o tirano, pois ele começa sempre como um protetor do povo.”

(…)

“Pois o protetor do povo é como esse homem. Dispondo de uma multidão inteiramente dócil, não se abstém de derramar o sangue de seus compatriotas; em geral recorre a acusações injustas para arrastá-los aos tribunais e destruir-lhes as vidas, saboreando com a boca e a língua impuras o sangue fraterno; a uns mata e a outros exila ao mesmo tempo que alude a abolições de dívidas e distribuições de terras. Qual poderá ser o destino de tal homem? Não tem ele por força de perecer às mãos de seus inimigos ou converter-se de homem em lobo, isto é, em tirano?”

“Inevitavelmente.”

“Não é esse – perguntei – o que se levanta em sedição contra os ricos?”

“Esse mesmo.”

“E quando, após ter sido desterrado, volta à pátria apesar de seus inimigos, não é como perfeito tirano que chega?”

(…)

“Vem, então, a famosa súplica dos tiranos, que é o recurso de todos os que chegaram a essa situação: pedem eles uma guarda pessoal ao povo, para que este não perca o seu protetor.”

(…)

“E ao ver isso, meu caro amigo, o homem que possui riquezas e é acusado de inimigo do povo por ser rico resolve seguir o conselho que o oráculo deu a Creso: Foge para as margens do pedregoso Hermon/ E não resistas nem te envergonhes de ser covarde.

(…)

“Não é verdade – prossegui – que nos primeiros tempos ele anda cheio de sorrisos, saudando a todos que encontra e negando que seja um tirano; que promete muitas coisas em público e em privado, perdoa dívidas, distribui terras entre o povo e os de sua comitiva, e se mostra benévolo e gentil para com todos?

(…)

“E não visa também empobrecer seus súditos com impostos onerosos, a fim de que se vejam obrigados a atender às suas necessidades cotidianas e lhes sobre pouco tempo para conspirar contra ele?”

“Evidentemente.”

“E, se desconfia que alguns tenham idéias de libertar-se e de resistir à sua autoridade, terá um bom pretexto para liquidá-los colocando-os à mercê do inimigo. Não será necessário, por todas essas razões, que o tirano promova guerras constantemente?”

“Necessário, com efeito.”

“Mas, ao proceder assim, não se expõe a cair cada vez mais no desagrado do povo?

“Como não?”

“Sucede, então, que alguns daqueles que contribuíram para colocá-lo no poder, e que também gozam de influência, se atrevem a dizer o que pensam, tanto uns aos outros como a ele próprio, e os mais corajosos lançam-lhe em rosto o que está acontencendo.

“Não se podia esperar outra coisa.”

“E assim o tirano, para poder governar, se vê obrigado a eliminá-los, e segue por esse caminho até não deixar com vida uma só pessoa de valor, quer entre os seus amigos, quer entre os inimigos.”

“Tem de ser assim.”

É preciso, pois, que esteja vigilante para descobrir quem é corajoso, altivo, inteligente ou rico. Homem ditoso! É inimigo de todos esses e, queira ou não queira, tem de buscar pretextos para se livrar deles, até que se complete a depuração da cidade.”

(…)

“Invejável alternativa – disse eu – viver apenas com a multidão de homens ruins, que ainda por cima o odeiam, ou deixar de viver!”

“Essa é a alternativa, com efeito.”

“E, quanto mais odioso se tornar aos olhos dos cidadãos com esse procedimento, maior e mais dedicada será a guarda de homens armados de que tem mister.”

(…)

“Então, por Zeus – exclamou ele – é que o povo verá que espécie de ser gerou e acalentou em seu peito; e quando quiser expulsá-lo descobrirá que é fraco e que seu filho se tornou forte!”

“Como? Queres dizer com isso que o tirano ousará fazer violência ao seu próprio pai [o povo], e mesmo espancá-lo se ele não se submete?”

Sim – respondeu Adimanto – depois de tê-lo desarmado.”

(…)

Esse papo de que a História segue uma trajetória retilínea em direção a uma sociedade perfeitamente planejada por mentes humanas não passa duma grande bobagem. É incrível a atualidade de Platão. Tiranos não são zeuses. Para aqueles que não ascendem nas espirais transcendentes da Vida, só resta o eterno retorno dos ciclos históricos, com tudo mudando para permanecer o mesmo. Seguir cegamente a um demiurgo terráqueo – seja ele um homem, um partido ou uma ideologia – é como ser uma mariposa que toma uma lâmpada da GE pelo sol. Gira, gira mas nunca sai do lugar.

Continuaremos nos comunicando e descrevendo vocês, tiranóides. Deixem a Internet em paz.

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1 Comment

  1. Daniel

    Salve irmão. Esta história de colocar peia na Internet é ranço autoritário do PT sim e dos Estados em geral. Porque nunca se pensou em xerocar e arquivar a correspondência da população? Porque não havia meios para isso. Com a Internet é fácil e barato vigiar. É uma tentativa cibernética do Estado manter controle sobre si mesmo, evitar qualquer potencial desagregador. Mas o que eu queria dizer é sobre Platão. Você não acha qua a argumentação platônica sobre a tirania tende a justificar seu próprio sistema de despotismo esclarecido, o rei filósofo? Acho que a argumentação dele vai no sentido de provar a insuficiência da democracia como regime de governo. Mas ele não deixa de estar correto sobre uma coisa: “o preço da democracia é a eterna vigilância” (se me permite um clichê político).

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