O Cássio, grande amigo antropólogo, já me havia recomendado, mas, apesar da convivência constante e dos muitos amigos índios, eu nunca tinha tido a oportunidade de fazer uma visita à sede da Funai em Brasília.

No começo desta semana, em função de negociações para um projeto de documenário que, em breve, espero poder divulgar aqui, finalmente pude conhecer o mundo surreal da burocracia indigenista brasileira.

A Funai deveria ser aberta ao turismo e incluída nos roteiros dos city tours pela capital federal. Poder-se-ia cobrar um ingresso e reverter a arrecadação em benefício dos próprios índios.

Andar pelos corredores desta instituição e espiar um pouco cada salinha delimitada por divisórias mofadas é testemunhar a improvável cruza entre a burocracia estatal e o avesso de si – o universo anárquico indígena, em seu mistério, loucura desafiadora de nossos paradigmas e tragédia.

Logo à aproximação, já salta aos olhos a precariedade estrutural do prédio, localizado no princípio da Asa Sul: tapumes revestem inteiramente uma das laterais do edifício, sinalizando a situação e a prioridade da questão indígena no país.

Na frente da Funai, disputa espaço quase uma dezena de ambulantes indígenas, forros estendidos no chão, expondo todo tipo de artesanato e implorando a atenção dos caraíbas que, sérios, pastas a tiracolo, mal disfarçam o constrangimento e sua culpa esquerdista pelo que, valor de face, tomam como exemplo da miséria dos índios. Um xavante me pede um cigarro; um caiapó, que identifico pelo batoque, na sutileza que caracteriza essa etnia, me exige um dinheiro (lembram-se da índia caiapó ameaçando um diretor da Eletronorte com um megafacão no pescoço em horário nobre?).

Passamos pelos funcionários sonolentos na portaria e subimos em busca de nosso interlocutor – o indigenista e ex-presidente da Funai, Cláudio Romero. No caminho, perscruto cada porta e abro algumas,como se estivesse me enganando. Numa, um solitário operador de rádio branco tenta inutilmente contactar o Posto Leonardo, no Parque do Xingu: “LEONARDO, AQUI SEDE CHAMANDO, RESPONDA!”. À sua volta, trajada à maneira tradicional indígena em Brasília – calção e sandália – acotovela-se uma dezena de xinguanos. N’outra, um índio, cuja etnia não reconheço, vocifera com um funcionário inclinando-se sobre sua mesinha. Ele não parece se afetar e permanece impassível.

Divisórias, mesas velhas, computadores pré-históricos, cartazes semi-rasgados nas paredes, funcionários com teias de aranha nos sovacos. Cocares, largos furos nas orelhas, batoques, calções de três listras, havaianas, bonés dos Boston Red Sox, camisas do Flamengo. Tédio e resignação de um lado, do outro, às vezes altivez, às vezes temor, às vezes orgulho, outras derrota. Uns aparentam fraqueza, outros são muito fortes. Os corredores são uma babel de línguas.

Por trás destas impressões um pouco caricatas, estão toda a diversidade dos índios do Brasil, em suas muitas culturas radicalmente diferentes e situações de vida – uns relativamente bem, outros muito fodidos -, a complexidade de suas questões e as contradições da burocracia estatal.

Sufocados pelo engessamento, pela escassez de recursos, pela ineficiência, trabalham muitos funcionários dedicados que continuam fazendo o que podem pela autonomia indígena, como o próprio Romero, com quem tivemos, mais que uma reunião, uma divertidíssima conversa de quase uma manhã inteira, ouvindo e contando “causos” e mais “causos indígenas”, alguns hilários, outros trágicos, outros assustadores.

Para não alongar e ver se evito comentários desnecessários sobre minha visão do tema, é na palavra autonomia que reside a chave da questão indígena (e de muitas outras que afetam nosso país). Nosso desafio, quase utópico, dadas as circunstâncias, é ajudá-los a conquistar autonomia (porque não é possível dar isso a alguém), no sentido de capacidade e possibilidade de escolhas. Não podemos nem tutelá-los, sonhando com um improvavél congelamento de suas culturas, nem desejar “civilizá-los”, como se tornar-se “branco” ou “brasileiro” fosse a melhor coisa que pudessem querer. São eles que têm que poder escolher o que querem. Hoje, em grande medida, apesar de avanços inegáveis, ainda não o podem – são inelutavelmente empurrados para nosso modo de ser, para nossos vícios consumistas e para certas expectativas que, para eles, revelam-se grandes armadilhas. Acabam numa espécie de limbo – quando se dão conta, já não são mais índios, mas, ao mesmo tempo, sua condição não os permite tornarem-se inteiramente membros de nossa cultura.