blog do escritor yuri vieira e convidados...

Uma crônica da Hilda Hilst

Tenho até hoje, em meu HD, diversos arquivos com os livros de poesia, crônicas e teatro da Hilda Hilst, afinal, fiz as vezes de secretário dela por dois anos lá na Casa do Sol. Se nunca falo sobre eles é porque há os tais direitos autorais, cujo herdeiro, Daniel Mora Fuentes, é filho dum amigo. (Em geral, eu respeito direitos autorais.) Aliás, tenho alguns livros do Bruno Tolentino também, cujos originais eu mesmo enviei ao editor dele, via email, lá da Casa do Sol. Infelizmente o Bruno é o cara mais escorregadio que eu já conheci – nunca fica muito tempo no mesmo lugar – e, por isso, não voltei a encontrá-lo para solicitar autorização de divulgar o que quer que seja. (Na verdade, eu queria mesmo é participar, com ele, de mais um preparo de feijoada, daqueles em que, enquanto cortávamos a couve, falávamos de C.S.Lewis e T.S.Eliot. Mas isso é outra história…)

Bom, encontrei a crônica abaixo – Bizarra, não?, da Hilda – num desses arquivos. Fala da relação da escritora com seus leitores e amigos. Salvo engano, faz parte do segundo volume da coletânea de crônicas Cascos e Carícias, originalmente publicadas no Correio Popular de Campinas-SP.


BIZARRA, NÃO?

Aí é assim: você resolve escrever, de verdade, faz toda uma opção de vida de caráter definitivo, rejeita frivolidades, vai morar no mato, sim porque antes era mata, gado, pastagem, há pouco é que virou “zona de expansão urbana” e com aquele IPTU que te aniquila, bem, mas continuando, você se entrega totalmente a essa absurda tarefa de escrever num país com milhões e milhões de analfabetos (sim, a opção foi sua, coda-se), os vietnamitas por exemplo tinham a maior paixão pela literatura, e segundo a biografia de Marguerite Duras eram cultos, refinados e ficavam escravos dos franceses (isso lá pelos idos de 1930), os brancos eram os reis do Vietnã, eram os patrões, a elite, e os vietnamitas eram os párias, esfarrapados, miseráveis, sim, mas já estou tentada a enveredar pelos caminhos daquela cólera sagrada, silêncio, calma Hilda! Então continuando, aí, depois de trinta anos você consegue lá algum renome, aí as pessoas praticamente suplicam para te conhecer, você fica a princípio acanhada, receosa, depois fica encantada, nossa! não é mesmo que me querem bem? Aí eles vêm, os supostos amantes do teu trabalho, e você se delicia, conta aos poucos teus medos, que você também é de carne e osso, que muitas vezes chora muito, horrorizada com toda a crueldade da Terra, aí você alguns dias se descabela, fica bêbada, sim queridos, porque um escritor se é muito bom escritor, tem mesmo que beber, porque (é bom ser didática) se ele é muito bom, ele sente muito diferente do açougueiro da esquina, do príncipe boboca também, ele, esse bom escritor, sente fundo e dilatado, sofre de compaixão e impotência, vê todos os canalhas do Planeta cometendo atrocidades, conhece todos os métodos do Poder para aniquilar esperanças, métodos os mais ignóbeis (agora me lembrei de um cara que tinha um irmão que se chamava Nobel, eu disse: foi em homenagem ao Nobel do prêmio Nobel? ele respondeu: não, mamãe achou a palavra “ignóbil” e o apelido dele ficou Nobel quando a mãe soube o significado da palavra). Continuando: aí o escritor que se pensava amado, fica íntimo daqueles que amavam o texto dele, e então só faltam cuspir nele quando ele se descabela, bebe, chora, arrota, quando ele se mostra derrotado diante das grandes perguntas, perplexo diante do mistério da vida e da morte, diante da maldade, do simiesco fútil da maior parte da humanidade. Então, os amiguelhos que te amavam, a essa altura já te acham um lixo e dizem pros outros que ainda te amam: é, vai conviver com o gênio e aí você vai ver como ele é. “Bizarro?” “Põe bizarro nisso, bicho!” E como é que vocês queriam que fosse, esse que escreve coisas geniais? Certinho, arrumadinho, abstêmio, fino, dissimulado, pactuando com elegância com todos os ignóbeis donos da miséria e do Poder?

P.S. Consta que Shakespeare era “normal”(!!!).

(domingo, 2 de abril de 1995)

Anteriores

Na Itália…

Próximo

Brincando com fogo

1 Comment

  1. Vinicius

    Maldita acatalepsia que nos acompanha da infância à velhice.

    Que sindrome!!!

Desenvolvido em WordPress & Tema por Anders Norén