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Os dois Estados Unidos de Truman Capote

Diferentemente de até bem pouco tempo, eu hoje tenho grande vontade de voltar aos Estados Unidos. Este desejo acaba de receber uma boa dose de reforço com a conclusão da leitura de “In Cold Blood”, a célebre “novela de não-ficção” do mestre Truman Capote.

Evito ao máximo ler traduções de livros publicados em línguas que domino. Como já exerci o ofício de tradutor, atento para e me irrito em excesso com os erros ou escolhas equivocadas de meus colegas. Além do fato óbvio de que o estilo de um mestre como Capote só pode ser integralmente apreciado no original.

Desta forma, comprei na Livraria Cultura uma edição paperback deste best-seller logo depois de assitir ao espectacular Capote, filme que rendeu o merecido Oscar de melhor ator a Philip Seymour Hoffman, e que conta a história do envolvimento do escritor com os fatos reais que inauguraram um novo gênero literário – o que se passou a designar como “non-fiction novel” – e geraram este livro que permanece como uma das grandes obras da literatura americana: o assassinato de uma próspera família numa comunidade rural do interior do estado do Kansas.

O livro ficara na fila, sempre me espreitando, e foi finalmente devorado nos últimos quatro dias.

Meu pouco interesse pelos Estados Unidos tinha duas origens. De um lado, a certeza de que o americano médio é um sujeito bastante tapado e, por isso, desinteressante, para não dizer chato, porque esse mesmo traço de caráter – ser tapado – é fonte de exacerbada arrogãncia e auto-centramento. Deve-se ressaltar aqui que o americano médio não é uma abstração conceitual, mas uma realidade, uma vez que o desvio padrão cultural naquela sociedade é bastante reduzido, em função da pronunciada homogeneidade cultural. O segundo motivo é o fato de ter residido naquele país durante um ano, convivendo com a classe média americana, o que torna o primeiro motivo apresentado não um preconceito repetido pela absorção cotidiana de certa visão comum entre nós subdesenvolvidos a respeito dos norte-americanos, mas um conceito de fato derivado de uma vivência real.

Não obstante, dizer que os americanos são tapados é uma visão parcial. É reconhecer somente uma das facetas daquela sociedade incrível, pois é evidente, antes de mais nada, que o estágio de desenvolvimento e progresso material atingido pelos Estados Unidos são resultado de uma aguda forma de inteligência social e cultural. Pode ser que esta boçalidade individual esteja na própria raiz do êxito do american way of life ou quiçá seja seu subproduto, uma consequência natural e inevitável do formidável cimento social que une aquela nação e a torna tão próspera.

Hannah Arendt, estudando a formação da França moderna, da Rússia Socialista e da sociedade americana em “Da Revolução”, se pergunta que tipo de fagulha originária se faz necessária para a formação e consolidação de uma Constituição, no sentido das regras e do ethos comum que, a partir de um dado momento, passam a ser tomados como naturalmente dados por uma sociedade, para que ela exista e progrida. O que faz com que gerações de membros de um amplo grupo humano respeitem certas regras ancestrais e mantenham certas idéias sobre si próprios e seus co-cidadãos sem questioná-las?

É evidente e desnecessário dizer que a fórmula do sucesso da sociedade americana jaz em uma espécie de magia política e social genial e ardilosamente engendrada pelos pais da independência e do processo revolucionário naquele país, Thomas Jefferson entre eles, que souberam, malandramente, armar um sistema que se protege e se sustenta sobre o delicado balanço de forças contraditórias que impedem a prevalência de uma sobre as outras, desta forma garantindo que a fábrica social permaneça coesa e não se rasgue.

In Cold Blood é um livro espetacular por desenvolver um duplo inquérito, permeando as linhas magistralmente desenhadas pelo estilo minuncioso, elegante e sutil de Truman Capote. É, de um lado, um grande mergulho, aterrorizante e aterrorizado, no problema e na natureza do mal. E, de outro, uma exploração, impressionada e comovente, das sutilezas e contradições da sociedade americana.

É preciso lembrar que nos encontrávamos em 1959, em pleno centro da Era de Ouro da economia americana que, estimulada pelo período pós-guerra, crescia ano após ano sustentadamente a elevadas taxas, aportando um nível de progresso e abundância material nunca antes visto. Este mesmo progresso e o fato de que suas consequências indesejadas ainda estavam por vir, somado ao orgulho e vaidade insuflados pela vitória na Segunda Guerra e pela própria afluência testemunhada à volta de cada indivíduo proporcionavam ao americano médio um forte senso de realização e fartura, de sentido para a vida e grande auto-confiança e orgulho da própria sociedade o que, por sua vez, contribuía para mais progresso. Foi um período ímpar do século XX naquele país. O passado romanceado era uma história de vitória sobre vitória: a conquista de um novo território selvagem, a vitória sobre a natureza e a construção de uma sociedade que dera certo e que orgulhava seus membros. O presente era o mais próximo que se poderia estar da felicidade, e, mesmo assim, o futuro seguia repleto de promessas de mais bem-estar e mais progresso. Eu gostaria de ter sido um americano nesta época. Pode-se argumentar que tudo não passava de ilusão, mas para quem viveu e morreu no american dream, ele deve ter tido pouco de sonho.

Desta forma, é 1959 em uma pequena comunidade rural do Kansas, no Meio Oeste agrícola americano. A vida dessa gente pacata, religiosa e conservadora é a realidade do modo de vida americano: um cotidiano calmo e sem surpresas, entre o trabalho, a família e a comunidade, distante do cosmopolitismo das metrópoles da Nova Inglaterra a leste ou das praias da Califórnia a oeste.

É assim que Capote, de forma magistral, nos submerge delicadamente nesta realidade tranquila e no brutal episódio que a chacoalha:

“The village of Holcomb stands on the high wheat plains of western Kansas, a lonesome area that other Kansans call ‘out there’. Some seventy miles East of the Colorado border, the countryside, with its hard blue skies and desert-clear air, has an atmospehere that is rather more Far West than Middle West. The local accent is barbed with a prairie twang, a ranch-hand nasalness, and the men, many of them, wear narrow frontier trousers, Stetsons, and high-heeled boots with pointed toes. The land is flat, and the views are awesomely extensive; horses, herds of cattle, a white cluster of grain elevators rising as gracefuly as Greek temples are visible long before a traveler reaches them.

Holcomb, too, can be seen from great distances. Not that there is much to see – simply an aimless congregation of buildings divided in the center by the mainline tracks of the Santa Fe Railroad (…)

(…) Until one morning in mid-November of 1959, few Americans – in fact, few Kansans – had ever heard of Holcomb. Like the waters of the river, like the motorists on the highway, and like the yellow trains streaking down the Santa Fe tracks, drama, in the shape of exceptional happenings, had never stopped there. The inhabitants of the village, numbering two hundred and seventy, were satisfied that this should be so, quite content to exist inside ordinary life – to work, to hunt, to watch television, to attend school socials, choir practice, meetings of the 4-H Club. But then, in the earliest hours of that morning in November, a Sunday morning, certain foreign sounds impinged on the normal nightly Holcomb noises – on the keening hysteria of coyotes, the dry scrape of scuttling tumbleweed, the racing, receding wail of locomotive whistles. At the time not a soul in sleeping Holcomb heard them – four shotgun blasts that, all told, ended six humans lives. But afterwards the townspeople, theretofore sufficiently unfearful of each other to seldom trouble to lock their doors, found fantasy re-creating them over and again – those somber explosions that stimulated fires of mistrust in the glare of which many old neighbors viewed each other strangely, and as strangers.”

Encerradas as duas páginas e meia desta introdução, construída sobre as contrastantes imagens do bucolismo e vagarosidade da planície do Meio Oeste cortada por nostálgicos apitos de trem e a chama azul e o barulho surdo de quatro explosões de pólvora, é impossível abandonar o livro.

Este contraponto rascunhado na introdução dá o tom de todo o texto e é o que o torna tão fascinante. De um lado, a vida em uma típica comunidade americana e seus membros, a um só tempo chocados, desconfiados e agarrados a seus firmes valores e convicções – o bem?; de outro, a vida e os atos errantes, contraditórios, sofridos e perpetradores de sofrimento, dos dois responsáveis pela tragédia de Holcomb, Perry Smith e Richard Hickock (o mal?) – a quinta e a sexta vida postas a termo pelas quatro balas da madrugada de 15 de novembro de 1959, uma vez que ambos seriam, quase seis anos depois, enforcados pelo Estado do Kansas, em função dos crimes brutais cometidos contra a família Clutter.

Não se trata evidentemente de uma obra maniqueísta como esta contraposição central pode fazer supor. Ao contrário, é justamente a profunda e sutil exploração das contradições inerentes a cada um dos lados da história que torna In Cold Blood uma novela tão forte: duas realidades americanas que convergem e que se chocam na noite de 15 de novembro de 1959, gerando ondas tão fortes que produziram, entre outras coisas, uma das grandes obras – ao mesmo tempo artística e jornalística – do século XX.

A comunidade de Holcomb não é apenas um agrupamento de pessoas pacatas e de bem que se aterroriza diante da crua brutalidade dos assassinatos. É também uma comunidade com um profundo sentido da cristandade que, diferentemente do que se poderia esperar, não recebe os assassinos, uma vez presos, com expressões de ódio e vingança. Apesar do temor, longe de se concretizar a ameaça de linchamento, as pessoas observam a chegada de Richard e Perry em estado semi-catatônico. A Sra. Meier, mulher do vice-xerife, se afeiçoa a Perry e com enorme carinho cuida de suas refeições e sua roupa com genuína compaixão. O debate sobre a compatibilidade entre os ensinamentos de Jesus Cristo e a pena capital passa a permear o cotidiano. A mistura deste sentido cristão da vida e do profundo arraigamento da idéia de direitos individuais presente em todo o processo de julgamento e nos atos das pessoas resulta em uma conduta, de modo geral, impressionante da comunidade em relação aos criminosos. Não obstante, julgados, os dois são condenados à morte. Por quê?

Do outro lado, Richard e Perry não são dois facínoras sem face humana. O primeiro tivera uma infância comum e feliz – fora um excelente aluno e uma criança alegre numa família pobre, mas muito estruturada, deixando sempre no ar outro “por quê?” Perry Smith, ao contrário, filho de um cowboy de Nevada e uma índia Cherokee, crescera em meio à violência, ao álcool e à desestruturação, mas era brilhantemente inteligente e talentoso, a um só tempo sensível e brutal. Entende-se de certa forma o porquê, mas mesmo assim se pergunta “por quê?”.

Como mostra o filme, o envolvimento com o assassinato da família Clutter, a comunidade de Holcomb e, neste processo, a construção de uma profunda relação com Perry Smith, foram uma parte importante da vida de Truman Capote, que desenvolveu enorme identificação com o assassino e procurou ajudá-los como pode: buscando advogados, ajudando-os nas apelações às várias instâncias da justiça, fazendo-se presente como amigo, mas ao mesmo tempo motivado pelo interesse, por vezes em contradição com a amizade, em obter material para seu livro.

Capote igualmente tivera uma infância conturbada e se identificou profundamente com Smith. Movia-o a seguinte pergunta: o que faz com que duas pessoas que passam por atribulações tão semelhantes na infância, construam trajetórias tão distintas na vida adulta – um escritor de sucesso ou um brutal assassino condenado à morte numa cela úmida e escura de uma penitenciária no interior do Kansas?

Antes um país meio afastado, os Estados Unidos, suas contradições humanas e paisagens grandiosas voltam a figurar com força em meus planos de viagem. Me imagino fazendo a travessia de costa a costa, entre Nova Iorque e Los Angeles, incluindo a lendária Rodovia 66 e, sobretudo, desvios para conhecer os monumentais cenários das Montanhas Rochosas e a gente maluca dos Estados Unidos profundos em meio aos trigais e milharais das vastas planícies do Meio Oeste.

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4 Comments

  1. Paulo Paiva

    Putz, me deu vontade de ler. Me empresta o livro? Ó, falei primeiro!

  2. daniel christino

    Lembrei de quando eu li As vinhas da Ira. Me deu a maior vontade de conhecer o meio-oeste americano, menos pelas pessoas do que pela paisagem. Culpa do Steinbeck.

  3. Nestor Carvalho

    Gostei do artigo, e concordo até com a crítica ao nível das traduções em geral, mas depois de criticar os colegas tradutores, castigar um “garantindo que a fábrica social permaneça coesa e não se rasgue” é dose.
    “Fábrica social”, meu? Deve ser o lugar onde o Lula “joga um papel” quando devia “play a role”, né?
    Assim não dá, amigo. Um pouco “menas ” prepotência cairia melhor….

  4. Nestor

    Gostei do artigo, incluindo as referências ao nível das traduções, mas depois de tal crítica aos coleguinhas, castigar um “garantindo que a fábrica social permaneça coesa e não se rasgue” é demais. “Fábrica social”? Fala sério! Seria, por acaso, o lugar onde o Lulla “jogou um papel”, quando deveria “play a role”. Porque tecido social se entende, mas “fábrica” social, depois de criticar os tradutores, só pode ser brincadeira…
    “Menas” arrogância é o que precisamos com urgência, “neste país”…

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