Reflexão do Kotscho sobre a profissão, tirada do NoMínimo:

A freguesa tem sempre razão

Ricardo Kotscho

O velho hábito de ler jornais logo cedo no café da manhã, que cultivo desde menino, está-se tornando cada vez mais penoso. No fim do ritual, ao dobrar os jornais, e dar início a mais um dia de labuta, dá um desânimo danado – a terrível impressão de que o país e o mundo não deram certo, não têm mais jeito.

Na quinta-feira, 20 de julho, dia em que escrevo a coluna, as imagens de primeira página dos três principais jornais brasileiros (Globo, Estadão e Folha) são de assustar. Mostram um cogumelo de fumaça dos aviões israelenses bombardeando Beirute, tanques tomando posição na fronteira com o Líbano, um menino chorando ao lado de dois irmãos feridos no hospital de Sídon.

Entre cenas do enterro do ator Raul Cortez e notícias sobre o julgamento de jovens que praticaram crimes bárbaros por aqui mesmo, há um ou outro registro sobre os resultados do futebol e as últimas sobre a quadrilha dos sanguessugas parlamentares.

Meus amigos editores de primeiras páginas poderiam me perguntar, com razão: e o que você queria? Que a gente ignorasse esses fatos para publicar só fotografias bonitas e notícias alentadoras sobre a feliz passagem do homem pela terra?

Não, não chegaria a tanto, mas responderia com outra pergunta: será que nada de bom aconteceu ontem neste país de 180 milhões de habitantes espalhados por 8,5 milhões de quilômetros quadrados? Será que o mundo não foi capaz de produzir nas últimas 24 horas uma única história que permitisse ao leitor abrir um sorriso em vez de dar um tiro na cabeça?

Não se trata de fugir da realidade, mas de tentar descobrir outras realidades, lugares e personagens, que também existem, e estão fora da nossa mídia.

Nos telejornais da véspera, entre uma novela e outra, as desgraças eram mais ou menos as mesmas, da mesma forma como o noticiário da internet que agora realimenta o circo mundial de horrores on-line emendando um dia no outro sem dar uma trégua.

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Deixo os jornais sobre a mesa, desligo o computador, ignoro a televisão, e vou à rua, que hoje é dia de feira no bairro, para ver se encontro algum outro tema para a coluna que não seja esta desgraceira geral e ilimitada.

Caminhando entre as barracas e tentando ouvir o que as pessoas falam em meio ao alarido dos feirantes oferecendo seus produtos mais baratos para a madame, descubro logo que um cardápio não bate com o outro _ o que está oferecido nos jornais não se encontra nas conversas. Fala-se de tudo, menos do novo conflito no Oriente Médio e dos seus mais de 300 mortos já contabilizados ou da última pesquisa eleitoral.

Na barraca da japonesa do pastel, moças e senhoras uniformizadas das lojas próximas aproveitam o intervalo do almoço para falar dos seus planos de fim de semana, da febre do filho, da filha que vai trabalhar em outra cidade, daquela freguesa chata que acabou com meu bom humor hoje de manhã, do carro novo do marido da vizinha, do capítulo de ontem da novela das oito.

Claro que nada disso dá manchete de jornal, mas talvez as pessoas tenham vontade de ler alguma coisa mais próxima da realidade das suas vidas e que, se possível, possa tornar essa vida um pouco melhor, com alguma esperança, ao menos.

Recolho os fragmentos de conversas e prossigo caminhando, tomando cuidado para não ser atropelado pelos carrinhos carregados de frutas e legumes, que agora passam mais acelerados na medida em que se aproxima o final da feira e os preços vão caindo. Vida que segue.

Como jornalista meio veterano, que já está indo para a prorrogação e detesta disputa por pênaltis, sinto-me um estranho no ninho nesta feira-livre de assuntos porque os temas que ocupam a minha cabeça e consomem boa parte do meu tempo não são os mesmos das pessoas que agora vão enchendo os restaurantes e os da freguesia que fica olhando as vitrines. Será que os pauteiros da nossa nobre imprensa estão se dando conta disso?

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Outro dia participei aqui em São Paulo de um seminário sobre “Mídia e Sociedade” em que discutimos o futuro da nossa atividade. O passeio pela feira me fez pensar numa coisa terrível. Se não cuidarmos urgentemente de mudar nossas velhas cabeças e receitas, se não atentarmos para os desejos, os interesses e humores da freguesia, oferecendo produtos mais palatáveis aos novos gostos, sintonizando nossas pautas, perderemos nosso tempo pensando um futuro que não haverá mais.

Antes, desconfio, teremos que nos ocupar do que podemos mudar no presente, agora mesmo. Temas como o sobe e desce das pesquisas eleitorais, por exemplo, causam grande furor entre políticos e jornalistas, mas não ouvi um único comentário na feira sobre esse palpitante assunto.

Dou-me conta de que faltam apenas 70 e poucos dias para as eleições gerais, mas parece que elas vão acontecer em outro país no ano que vem. Porque, por aqui, não se vê nem ouve sinais de campanha fora da mídia por mais que profissionais e veículos se empenhem em falar disso em suas mais nobres colunas.

Também não ouvi mais nenhum lamento ou palavrão sobre os responsáveis pelo fracasso do Brasil na Copa da Alemanha, tema ainda recorrente na imprensa, como se fosse possível mudar o resultado dos jogos que terminaram. Desconfio que estamos falando línguas diferentes, nós e nossos leitores/ouvintes/telespectadores. Se não nos agrada a paisagem, não adianta xingar a janela nem os transeuntes.

O melhor a fazer é tratar de encontrar logo outros cenários e assuntos, e fazer como os sábios feirantes, para quem a freguesa tem sempre razão.