Desde o início me impressionou muito a facilidade com que a opinião pública e especialmente a imprensa condenaram de imediato os pilotos Joe Lepore e Jan Paladino, que comandavam o Legacy que se chocou com o vôo 1907 da Gol. Circularam até mesmo versões, que rapidamente através do boca a boca e da Internet ganharam status de verdade, segundo as quais os dois estariam fazendo manobras arriscadas, brincando para testar o avião recém-saído da fábrica da Embraer. Li textos comovidos e indignados, perguntando qual não seria a postura da opinião pública e de autoridades americanas, se a situação fosse inversa: se pilotos brasileiros tivessem se envolvido em um acidente semelhante em espaço aéreo americano. E minha resposta é: provavelmente menos histérica, mais ponderada e não condenatória.
Agora começam a surgir os fatos apontando para uma conjunção de vários fatores como causa da tragédia, nenhum dos quais envolve negligência, imperícia, irresponsabilidade ou imprudência dos dois pilotos americanos.
Já viera a público a informação de que a manutenção do nível de cruzeiro de 37 mil pés até Manaus foi de fato ordenada pela torre de controle de São José dos Campos. Ainda que o plano de vôo previsse mudanças neste nível duas vezes após a passagem por Brasília, ao autorizar a decolagem do Legacy, o controlador expressamente instrui a manutenção do nível 370 em toda a rota.
Agora, com a divulgação do relatório preliminar da equipe de investigação, vem também a público que, tanto os pilotos, quanto o controle de vôo em Brasília, de fato tentaram contatos mútuos várias vezes sem sucesso (o Legacy tentou por 12 vezes chamar o Cindacta 1, que tentou comunicação no sentido inverso por sete vezes). A razão desta falha ainda está por ser esclarecida, se relacionada ao equipamento de rádio do Legacy ou se em função de porções do espaço aéreo amazônico não cobertas pelo controle ou onde a comunicação é precária – fato sempre negado peremptoriamente pela Aeronáutica e que realmente soa estranho, vez que com a implantação do SIVAM a vigilância do espaço aéreo amazônico, ao menos em tese, passou a ser muito boa.
Desta forma, repete-se, o acidente foi causado por uma conjunção de fatores humanos e técnicos:
1) O controle em São José dos Campos autoriza equivocadamente a manutenção do nível 370 em toda a rota, inclusive contrariando o plano de vôo original submetido pelos americanos. Trata-se de erro grave, pois a aerovia entre Brasília e Manaus não permite tráfego no sentido em que iria o Legacy nesta altitude, apenas nas altitudes de milhar par (34 mil pés, 36 mil pés, 38 mil pés, etc.). Não obstante, a ordem do controle evidentemente se sobrepõe ao plano de vôo original, conforme as regras da aviação.
2) Após passar por Brasília, sem conseguir contato com o controle de vôo, os pilotos, conforme o manual, pautam-se pela instrução original da Torre São José e mantêm o nível 370.
3) As comunicações entre o Legacy e o controle falham sucessivamente, assim como o transponder do Legacy, aparelho que emite um código de rádio que permite sua identificação precisa pelo radar – incluindo posição, deslocamento e altitude. Com o transponder fora de combate, o radar vê a aeronave, mas não tem sua posição e altitude com grande precisão.
4) É também o transponder que alimenta os TCAS (Traffic Collision Avoidance System) das aeronaves, o aparelho anti-colisão. Se o transponder do Legacy estivesse operando normalmente, o Boeing da Gol teria sido alertado sobre a iminência de colisão e orientado seus pilotos sobre a manobra mais adequada para evitá-la com bastante antecedência.
5) Após o choque, o Legacy continua sem conseguir contato com o controle. Consegue finalmente fazê-lo apenas através de uma outra aeronave que voava na mesma região. Os pilotos do Legacy acionam então o código de emergência no transponder, que volta a funcionar. Ainda não há conclusões sobre o que aconteceu com este aparelho, mas tudo indica um problema de design na fabricação. A Honeywell, sua fabricante, já havia feito um recall destes equipamentos. Aparentemente, dependendo da forma de uso,
seu desenho pode levar a que inadvertidamente o piloto o desligue sem se dar conta.
Restam evidentemente muitas questões a serem respondidas, mas já está clara a ausência de dolo ou culpa da parte dos pilotos americanos.
Espera-se que a justiça saiba diferenciar liberdade de imprensa e dano material e moral, quando tiver que avaliar, por exemplo, esta capa e a matéria da Istoé diante dos processos que evidentemente serão impetrados pelos pilotos e pela Excelaire, a empresa dona do Legacy.
Curiosamente, a grande imprensa não abordou esta apressada responsabilização dos pilotos de sua parte e pela opinião pública. As únicas explicações são um anti-americanismo estúpido e pura má fé. Caberia um mea culpa.
Aqui e aqui as matérias da Folha Online sobre o relatório preliminar recém-divulgado.