blog do escritor yuri vieira e convidados...

Kieslowski

fraternidade.jpgRever A Fraternidade é Vermelha numa destas madrugadas foi uma bela meia surpresa — por sorte do acaso, passei pelo Telecine Cult bem na hora em que aparecia o nome do filme. Digo meia surpresa porque a última parte da trilogia das cores do polonês Krzysztof Kieslowski é tão bela quanto eu me lembrava. Sempre tenho o temor de que os filmes de que mais gosto possam não ser tão bons assim depois de uma releitura. Muitas vezes não são mesmo. A memória se afeiçoa aos bons momentos.

Assiti ao filme pela primeira vez no cinema, na época do lançamento — tive de pesquisar na internet (ô, memória); foi em 1994. Dos três, foi aquele de que mais gostei. Talvez porque a incomum amizade entre uma jovem e um velho (a esperança e a desilusão) seja mais explícita do que a busca da mulher de A Liberdade é Azul (1993) pela superação de uma tragédia pessoal (a libertação) ou a do homem de A Igualdade é Branca (1994) por equiparação (ou vingança?) após o divórcio.

(Abri o parêntese porque devo fazer uma ressalva. Vi os dois primeiros filmes também no cinema, na época em que foram apresentados. Portanto, não posso estar tão seguro assim quanto à comparação com o terceiro, uma vez que, reitero, falo por memória afetiva).

Também adoro a forma como Kieslowski nos conta a história do velho, por meio do jovem juiz, antes de o próprio personagem fazê-lo. Havia algo assim nos outros dois filmes? Não me lembro.

Sem falar na brincadeira do acaso, presente nos três filmes. Sempre fica legal no cinema, quando bem feita

Dias atrás, revi Não Amarás (1988), do decálogo do diretor sobre os mandamentos — destes, só assiti ainda a Não Matarás (1988), mas dele já não me lembro nada. Como é triste ouvir a mulher dizer ao garoto que “o amor não existe”! Há algo semelhante, não bem em palavras, no velho juiz de A Fraternidade. Não Amarás é tão simples como bonito.

Depois de Não Amarás e, mais ainda, de A Fraternidade, me deu uma vontade louca de rever A Liberdade e A Igualdade. E também A Dupla Vida de Veronique (1991), com a mesma bela Irène Jacob de A Fraternidade e que, confesso, lembro apenas de ter ficado meio perdido na história ao deixar o cinema — provavelmente o Cine Cultura, em Goiània (ainda existe?), o único na minha época de faculdade que exibia estes filmes na cidade. Quem sabe agora, uns 15 anos depois, Veronique também surpreenda a minha memória.

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3 Comments

  1. Eu também preciso rever esses filmes, não porque tenha gostado quando os vi, mas porque, na época, não conseguia entender o que viam de tão interessante e profundo nesse Kieslowski. O polonês, então, me pareceu de uma profundidade francesa à la Maio de 1968, aquela coisa fake cheia de retórica e hormônio tardio. Lembro que a única cena interessante, que me tocou, foi aquela em, salvo engano, A Igualdade é Branca, onde o cara, a pedido da própria “vítima”, finge matá-la apenas para que ela perceba a falta de sentido de sua intenção suicida. O problema é que essa cena originalíssima, que poderia ter redimido, aos meus convencidos olhos, o Kieslowski, não é senão uma cena chupada do Rei Lear, de Shakespeare, o maior roteirista que esse mundo já viu.

    Sim, preciso rever esses filmes. Mas isso de “rever” já me lembra a Hilda Hilst, que reviu comigo vários dos filmes que admirou na juventude. Assistimos juntos, por exemplo, a Hiroshima mon amour (Alain Resnais) e ela achou o filme tão ruim que não parou de soltar palavrões. (risos) E ainda disse: “Nossa, como a gente é idiota quando jovem…” (Ela tinha 29 anos quando o viu pela primeira vez.) O engraçado é que ela adorou Forrest Gump, um filme visto pela crítica brasileira otária como uma “apologia ao idiota norte-americano”. Nada como envelher com o senso crítico funcionando a todo vapor…
    []’s

  2. fiume

    Bem, eu não me lembro desta cena sobre o suicídio, mas será q vc não está sendo muito rigoroso qd a considera “chupada” de Shakespeare? Por que não inspirada ou adaptada à história? Afinal, Shakespeare está no topo da literatura, assim como os Beatles estão no topo do pop e por aí vai. Tudo o que veio depois poderia ser considerado influenciado.

    Minha memória anda péssima, preciso até ir ao médico. Lembro de muito pouco de A Igualdade. Tb lembro pouco dos filmes do Kieslowski que ainda não revi, apenas que gostei dos da trilogia. Gosto da ligação entre os três com pequenas cenas como a da velhinha que quer pôr uma garrafa para reciclar (apenas na Fraternidade ela consegue ajuda, talvez pelo temperamento fraterno da personagem de Irène).

    Como disse, gosto da forma como Kieslowski nos antecipa o passado do velho juiz por meio do jovem juiz, mas realmente não me lembro se havia algo semelhante nos dois filmes anteriores.

    Em A Liberdade, lembro que considerei muito evoluído ou civilizado o fato de a mulher que perdeu o marido e o filho se preocupar com a amante grávida do marido (quem sabe o que eu, brasileiro e latino, faria em seu lugar?). Quem sabe ao moça grávida seja uma metáfora para a obra musical inconclusa de seu marido morto, que ela decide terminar? Quem sabe ela tenha decidido abrigar a moça e concluir a obra como forma de deixar para trás seu passado interrompido bruscamente por acidente de carro? Como disse, preciso rever o filme.

    Sobre Não Amarás, que revi há pouco, ele é tão simples que pode até aborrecê-lo. Mulher desiludida reapreende sobre o amor por meio de adolescente imaturo. Mas coisas simples podem ser bonitas.

    Vou tentar rever os outros dois filmes da trilogia, além do Veronique. Depois falo mais. Abs. R.

  3. Bom, Shakespeare é de fato o cara mais chupado da história da literatura. É a tal “força do varão” citada por Spengler. (Neste caso, entenda “varão” e o uso do verbo “chupar” como quiser.) Tanto que o Harold Bloom o coloca no centro do Cânone ocidental, dado que ele teria sido o inventor, na narrativa, do personagem autoconsciente, do tipo que se entreouve, se analisa, choca-se consigo próprio, decide e muitas vezes age de modo contrário às suas próprias decisões, modificando-se. Para o Bloom, ninguém, depois de Shakespeare, conseguiu escapar dele. Mas a questão a que me referi é outra.

    Quando eu sugeria um filme à Hilda Hilst – morei com ela dois anos e assistíamos a um filme por noite – ela me perguntava: “Vale a pena?” Eu dizia que sim, ela queria saber por quê. Se eu começasse a racionalizar a coisa, a descrever cenas bonitas, profundas, dramas e enredos mirabolantes, ela dizia: “Não não não. Eu quero saber se o filme te deixou alguma cicatriz.” Logo, tudo bem se você se aproveita de cenas ou idéias de outros autores. O próprio Bloom afirma que “literatura de imaginação” e plágio tem tudo a ver. A questão é, caso vc se aproveitar de uma idéia alheia, que vc o faça melhorando-a, porque é essa forma que irá perdurar. Agora, o Kieslowski não me marcou em nada naquela época, não sei se por um problema meu ou dele. Já disse, preciso revisitá-lo, embora não tenha vontade de me esforçar nesse sentido. Sempre achei que a grande obra é já uma grande obra desde a primeira vez em que a vemos. (Shakespeare pode ser apreciado por qualquer um, desde um zé mané até um James Joyce, que tentou emulá-lo.) Uma releitura, na verdade, só faz confirmar e aprofundar a percepção de significados. O problema, neste caso, é que a única cena a me deixar uma cicatriz não era dele, mas do Shakespeare. (O resto se apagou.) Se o cara não consegue ir além, melhor faria dando uma de Kurosawa, que na minha opinião rodou as melhores adaptações do Rei Lear e do Macbeth da história do cinema: Ran e Trono de Sangue, respectivamente. E olha que assisti à versão de Macbeth do Orson Welles semana passada. Prefiro o Kurosawa.
    []’s

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