Aconteceu num domingo…
Vejo a escadaria à minha frente e não posso conter o leve sorriso. É sempre assim quando volto aqui. “Mas é essa a escadaria?” Foi a pergunta que fiz a meu pai na primeira vez que aqui estive, um garoto. Estou na Igreja do Senhor do Bonfim. O tom de surpresa daquela pergunta ainda me é presente. Ainda tenho a decepção infantil — em minha imaginação, a escadaria onde ocorria a famosa lavagem, à qual eu também não compreendia, era bem mais grandiosa do que sua dúzia de degraus. Cá estou novamente a senti-la.
Desvio-me dos guias, dos vendedores de fitas e dos pedintes e subo os degraus com a pequena câmera na mão. Lanço o olhar para cima, fujo os olhos do sol, mas estranho a tonalidade acinzentada de parte do céu. Haverá luz? Na grade que circunda a entrada, fitas sopram em várias cores.
Ouço a voz distante, seguida do coro. Amém. É hora de missa. Não há lugares na igreja. Caminho por entre as pessoas, procuro me alojar num canto. Nada encontro. Resolvo parcialmente o problema postando-me próximo da porta de acesso a uma das salas laterais — um vaivém entre os cômodos aborrece minha atenção à cerimônia.
Observo as pessoas, cabeças baixas, braços abertos, estendidos, proclamando a fé. Vejo mãos de pele dura, claras, morenas, outras de pulseiras de ouro. A força do Bonfim é para todos.
Começam os acordes trêmulos de um violão, seguidos da chata cantoria da liturgia. “Me desculpe.” Sigo então com os olhos a garota que se esbarrou em mim ao passar para a sala lateral. Vejo-a de costas, apenas os cabelos negros, pouco acima dos ombros. O coro de jovens pouco animados ajuda a espantar minha atenção para a outra sala.
Réplicas de cabeças, pés, mãos e braços, chapéus, bengalas, muletas, bonés, diplomas, medalhas, fotografias. Retratos. Homens, mulheres, velhos, crianças. Vêem-se claramente os sobreviventes, os moribundos, os falecidos. Palavra estranha, os ex-votos estão pelas paredes e pelo teto de uma pequena sala. No lado oposto, nas grades fechadas do pequeno altar, fitas coloridas, diversas.
Sento-me à luz da janela e, enquanto começo a sentir o vento fresco em meu rosto, continuo a observar o vaivém. Chinelos. Tênis. Sandálias. Saltos. Todos passam lentamente observando os objetos. Alguns oram, outros conversam baixo, uns agradecem. Noto a garota do esbarrão. Jeans de marca, camiseta, tênis Puma azul. É na verdade uma mulher. Trinta anos, talvez pouco mais. É bonita, embora sua expressão cansada lhe esconda o brilho. Sua tez esbranquiçada reforça minha impressão de que ela não é dali. Ou talvez não mais.
Uma a uma, perfeitamente, ela amarra fitas coloridas na grade do altar. Não sei quantas já foram. A cada uma delas, uma breve oração. Ainda seguro a câmera numa das mãos. Penso em roubar-lhe aquele instante. O vento bate mais forte em meu rosto, trazendo pingos, respingos. Ela nota a ventania e desvia o olhar para a porta externa. Não, não há apenas orações em seus olhos baixos. Ela pede. Claro, penso. São fitas.
Um zunzunzum invade a sala vindo de fora. Pessoas fogem da chuva. Grossos pingos batem em meu braço, vindos da janela, enquanto ouço lá fora o forte eco da luz. Volto o olhar em busca da mulher. Procuro pela sala. Só a vejo quando me volto para a janela, a água respingando em meu rosto enquanto ela corre em meio ao forte vento em direção a um Scénic. Chego à porta lateral e sinto o vento ainda mais intenso. A correria na sala continua, a ventania também, sem interromperem a devoção. Uma gorda senhora idosa se abaixa vagarosamente para amarrar uma fita num pedaço de grade livre. Sinal da cruz, um homem joga entre as barras o retrato de alguém. De quem? Há tantos outros, tantos olhos baixos como os daquela mulher. Faróis acesos, o carro parte. É uma coisa e tanto viver com fé.
Cássia
É mesmo impressionante como na infância tudo nos parecia maior.Às vezes dá saudade dessa pequenez e também da pequenez de crer. Sim, é uma coisa e tanto e viver com fé. Dá saudade de viver com fé.
Belo texto.