Deve chegar ao Congresso Nacional, depois do carnaval, o texto final dos projetos de lei da reforma política – tão esperada e sempre adiada. Um deles relatado pelo deputado federal Ronaldo Caiado, aqui da terrinha. O projeto foi moldado não apenas pela comissão especial de reforma política do Congresso, mas também assimilou sugestões da sociedade civil organizada, principalmente pela OAB.
Muita gente já comentou o documento. Alguns, como o Tio Rei, soltando os cachorros para cima de propostas como a que permite a convocação de plebiscitos e referendos sem a aprovação do Congresso. Ou elogiando o documento e, ao mesmo tempo, repudiando sua impossível aprovação, já que boa parte das propostas não agrada aos senhores congressistas.
O que eu queria fazer, entretanto, é uma pequena digressão sobre os objetivos da reforma política, porque eles contém valores políticos fundamentais, além de introduzir no debate político aqui do blog uma perspectiva um pouquinho mais analítica.
Em geral, fala-se em reforma política quando se quer promover alguma alteração no sistema político institucionalizado. Por institucionalização não se quer dizer apenas o arcabouço legal que conforma o sistema político, mas a natureza dos debates e dos jogos de força nos quais a legislação foi construída. Neste sentido, segundo Bolivar Lamounier, quatro objetivos animam os adeptos da reforma política:
- Estabilidade – melhorar o sistema de governo e os mecanismos de manejo das crises, para fortalecer o regime democrático.
- Efetividade decisória – capacidade das instituições de realmente fazerem valer as políticas públicas adotadas tanto pelo legislativo quanto pelo judiciário, em outras palavras, melhorar a governabilidade.
- Accountability – desenvolver modos de clarificar a atribuição de responsabilidades aos políticos “em termos de honestidade, transparência e desempenho”.
- Soberania popular (empowerment) – “contínuo alargamento da base da pirâmide de poder na sociedade, medido sobretudo pela abrangência, pela igualdade e pelo efetivo exercício do sufrágio”.
Estes objetivos derivam de valores. São uma tentativa de operacionalizar a democracia uma vez que a tenhamos admitido como valor. Não deve assustar ninguém o fato de que os maiores atentados aos valores democráticos não vêm de proto-ditadores ou da tradição ideológico-totalitária de partidos e governantes. Vêm, na verdade, da incapacidade das sociedades de fazer valer institucionalmente as regras democráticas num arcabouço burocrático funcional. Em outras palavras, o problema da democracia é fazê-la funcionar. Este racioncínio é análogo ao da Transparência Brasil em relação à corrupção: somos incapazes de controlar – ainda bem – o que vai pela mente das pessoas, mas podemos diminuir as oportunidades objetivas destas pessoas realizarem suas intenções negativas. Tal institucionalização se dá na elaboração de leis, naquela região onde o valor (vida) transforma-se em fato (lei contra o assassinato). Enquanto permanecer apenas um valor ele não possui o que Kelsen chama vinculação, isto é, ele não vale. Pode ser paradoxal, mas é uma condição da contemporaneidade: o valor só vale em sua forma objetiva, isto é, cristalizado num sistema legal, porque ele precisa “vincular” os indivíduos e, portanto, precisa se impor a eles. Desta forma a institucionalização também traça o limite entre as esferas pública e privada. Neste ponto a lógica nos força a responder: como poderia ser justo impor aos indivíduos valores que eles não acatam? Como legitimar a violência de eu ser obrigado a me comportar, em público, de forma contrária aos meus valores privados?
Legitimar significa dar as razões pelas quais eu aceito obedecer a uma lei ou ordem. Pode ser porque sempre foi assim, ou porque confio em quem me pediu para obedecer, ou porque meu chefe ou meu líder espiritual assim o ordenou, ou pode ser porque, depois de muito discutir com meus amigos, decidimos que esta é a melhor forma de proceder. Em todos estes casos, a legitimação é, na verdade, uma fundamentação da autoridade. Segundo Weber ela pode ser de três tipos distintos: a carismática, a tradicional e a burocrática (legal). O Estado – assim como a Igreja e o Exército – é uma instituição cuja principal dominação é a burocrática (e isso não é ruim, não. Há uma série de ritos e burocracias entre os três poderes, por exemplo, que garantem exatamente sua independência).
Mas a relação entre Estado e Sociedade não precisa ser simplesmente burocrática. Ela pode ser democrática. O que é democracia? A forma mais expedita que conheço de defina-la é reduzi-la ao conceito de participação. Uma decisão é democrática na medida em que todos os afetados por suas conseqüências tem condições de opinar sobre ela e suas opiniões são levadas à sério (analisadas e refutadas, se for o caso). Este é, na minha opinião, o princípio democrático fundamental. Em certo sentido, tudo se resume à capacidade que uma sociedade tem de promover as condições necessárias para este debate ocorrer. Um detalhe curioso: é por conta deste princípio que cientistas e filósofos como Carl Sagan e Karl Popper acreditavam numa “sociedade aberta” (o termo é de Popper), ou seja, no poder do debate científico, franco e racional, baseado em fatos e idéias, como modelo de legitimação política e social. A democracia atual, senhores, é uma invenção iluminista até os ossos.
Enfim, o debate racional de idéias como critério para a legitimação do poder do Estado. Temos a separação dos poderes, temos a representação, temos eleições e constituição por conta disso. E é para isso que serve uma reforma política, ou seja, serve para aprofundar os ganhos institucionais para que as decisões sejam debatidas pela sociedade no mais amplo espectro possível e com a maior participação possível. O problema é fazer isso funcionar.
A própria idéia de uma reforma pressupõe, por outro lado, um certo grau de insatisfação com o sistema político vigente. Aqui precisamos fazer uma distinção bastante óbvia, na verdade, mas ainda assim fundamental: uma coisa é estar descontente com a representação, outra é estar descontente com o sistema enquanto tal. Condenar os políticos não implica abandonar o sistema. Daí o cuidado do Tio Rei em relação aos plebiscitos (na proposta não há regulamentação prevista, ou seja, do jeito que está, 2 ou 5% da população brasileira poderão pedir um plebiscito a qualquer momento. Seria o caso de ver se esse percentual é estatisticamente consistente), amplificado, é claro, pelo seu pavor anti-petista. Há, de fato, sempre a possibilidade de se contrabandear para dentro da reforma um golpe branco. Ainda assim, convocar um plebiscito ou referendo é uma coisa, vencê-lo é outra bem diferente. O medo do Reinaldo exemplifica uma outra questão democrática paralela a esta: a equiparação entre racionalidade e maioria numérica. Particularmente acredito que a idéia é boa em princípio mas apressada. Para que o plebiscito fosse de fato uma atividade democrática como pretende a OAB, seria necessário uma sociedade mais permeável ao debate, canais de discussão mais amplos e inclusivos e um povo mais educado. Acredito, neste particular, que podemos adiar as questões plebiscitárias por mais algumas gerações sem prejuízos aos valores democráticos. Mas já devo estar estourando a cota de paciência do meu leitor. Em todo caso, sou daqueles que acreditam na reforma política e a consideram importante. Desde que amplie os valores democráticos ao realizar os objetivos citados acima.