Vocês já matutaram sobre a expressão “movimento estudantil”? Pois é. A primeira coisa que me vem à cabeça é a seguinte pergunta: para onde? Já que se move, em qual direção vai? Nos últimos anos tem ido da esquerda para a esquerda, ou seja, não sai do lugar. Segunda coisa: se há movimento, então algo se move, logo, o que está se movendo? O estudante? Só se for para sair de casa e invadir reitorias ou, num passado não tão distante, jogar pedra em presidente. Enfim, será que ainda podemos atribuir a esta expressão algum sentido? Eu acho que sim.
Movimento é uma substantivação do verbo mover que, por sua vez, vem do latim Movere. Pode significar uma pletora de coisas. Mas na expressão “movimento estudantil”, movimento tem um significado metafórico e não literal; significa algo como “agir em conjunto”. Dentre os outros significados possíveis vinculados ao substantivo um saltou-me aos olhos: atividade. Movimento estudantil significa também atividade estudantil. Para mim o significado da expressão fica mais ou menos assim: agir (realizar um determinado tipo de atividade) em conjunto. Se nos perguntarmos pela natureza de tal atividade, veremos que se trata de uma atividade política.
Eu disse ainda perceber algum sentido na expressão, não foi? Pois é. Em 1998 fui convidade pelo DCE da Federal de Goiás para um debate exatamente sobre movimento estudantil (ME) na Rádio Universitária. Debatiam comigo o ex-vereador Martiniano Cavalcanti, o professor Jorge Safatle, o jornalista Pinheiro Salles e o presidente do DCE na época (nem lembro o nome dele). O tema era a relação entre ME e partidos políticos no contexto de uma despolitização dos estudantes. Eles estavam preocupados com o fato de que os estudantes já não se mobilizavam mais como na época da ditadura. Tive que ouvir muita merda, mas também pude falar um pouco. Minha tese, inspirada no conceito de compreensão de Hannah Arendt, procurava mostrar qual seria a “atividade’ própria para um estudante, de acordo com o que eu acredito ser sua condição mais original. Depois de uma pequena introdução, a palestra conclui da seguinte forma:
O processo pelo qual chegamos a compreender alguma coisa é, em si mesmo, interminável. E ele é interminável porque lida com uma espécie de realidade sempre cambiante, dinâmica, imprevisível. Em última análise, isso significa que um processo de compreensão verdadeiro nunca chega ao fim antes que seu objeto chegue também ao seu termo. Assim, o produto da compreensão e do pensamento não é aplicável em nenhuma esfera do dia-a-dia, isto é, não tem utilidade. Esse produto é o sentido.
Pensar a participação política do estudante, dentro ou fora do movimento estudantil, é exatamente conferir-lhe um sentido, que não pode ser ideológico sob pena de colocar o próprio processo de compreensão em perigo. O que eu quero dizer por ideológico? Na verdade falamos de um subproduto da ideologia: a doutrina. Ela nasce de uma deturpação da compreensão e coloca um fim arbitrário a um processo interminável. Ela faz isso porque está engajada em uma luta e necessita que as pessoas tomem lados e combatam.
Um sentido não doutrinário da prática estudantil não pode ser dado de fora, ou seja, por uma condição política externa ao próprio ser estudante. Só faz sentido falar em estudante dentro de um processo pedagógico do qual ele é objeto e sujeito, ao mesmo tempo em que seu professor. Dirigir os holofotes da razão para iluminar o aspecto pedagógico do ensino superior é, talvez, a forma mais livre de se propor uma prática estudantil afinada com a condição do estudante, um ser passageiro dentro de uma instituição secular, mas que passa por momentos decisivos dentro dessa mesma instituição.
O conceito do político ligado à idéia de ação e discurso é exatamente a matéria prima que possibilita uma tal reflexão, porque essa concepção garante um espaço radical de liberdade no qual o pensamento pode executar tranqüilamente sua tarefa. Perguntar, assim, pelo sentido da ação estudantil é pensar a condição do estudante dentro daquilo que o faz um estudante; o processo de formação intelectual que deve ser desenvolvido dentro da universidade com um único objetivo: torná-lo dono e construtor de seu espírito.
Isso significa que devemos expulsar as forças políticas há tanto tempo residentes dentro do movimento estudantil? De forma alguma. Devemos apenas colocá-las em seu devido lugar e pensá-las como leituras possíveis da realidade político-administrativa do país. Elas levam a posições que podemos ou não aceitar, mas jamais podem se arrogar o papel definidor da prática estudantil. Devemos assumí-las, se o quisermos, à posteriori. Nesse caso, eu realmente acredito que a maioria dos estudantes se afastou tanto do movimento estudantil por identificar esse movimento com tais práticas, e não ver nenhuma outra alternativa para essa forma de atuação.
Em suma, a posição política dos estudantes deve ser autônoma e determinada apenas pela inserção daqueles estudantes no processo pedagógico que implica toda uma vida. E tal posição é tão política quanto qualquer outra, pois no político o que importa, na verdade, é quem você é. É esta a pergunta fundamental que o estudante tem que se perguntar. Uma pergunta, desde Sócrates, profundamente política.
Houve alguma repercussão. Acusaram-me, entre outras coisas, de utilizar o “conhecimento da humanidade” em benefício próprio e não da melhora das condições materiais de vida da população. Por outras palavras, acusaram-me de ser um pensador burguês. Observando, agora, as repercussões do vandalismo uspiano (madame USP nem se escandaliza, pobre senhora!) percebo o alcance limitado da reflexão na vida dos estudantes. Aconteceu precisamente o contrário do que eu queria. Ao invés da lógica da compreensão própria da sala de aula determinar a ação dos estudantes fora dela; foi a lógica da batalha política, externa ao saber e à compreensão, que assaltou o espaço livre de interação intelectual da sala de aula. Triste.
yuri vieira
Esta semana, eu encontrei uma crônica que havia esquecido de terminar – é do ano passado – e verei se a concluo. Chama-se: Movimento peristáltico estudantil, onde narro o dia em que caminhei com a multidão, junto a amigos e outros estudantes da UnB, Esplanada dos Ministérios abaixo, para assistir à votação do impeachment do Collor. Sim, eu estava lá e só conseguia pensar no livro “Massa e Poder”, do Elias Canetti. Até hoje, sinto que os únicos estudantes que praticaram algo de realmente útil ali foram o Marlom e o Lawrence, dois figuras com quem dividia apartamento no Centro Olímpico da UnB, e que levaram uma caixa de isopor enorme para vender latinhas de cerveja e garrafas d’água. Eles não tinham grana para se bancar em Brasília e por isso estavam sempre em, digamos, movimento pela sobrevivência…
Quando estiver terminada, será blogada.
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