Tenho acompanhado os desdobramentos do trágico acidente da TAM em Congonhas. Uma bagunça. Desde o acidente acho que pelo menos uns 10 a 15 especialistas foram consultados pelos jornais, telejornais, portais de notícias e blogs. Nada conclusivo. Na blogosfera a discussão concentra-se nos aspectos políticos da tragédia. Em resumo a questão é a seguinte: o governo federal tem ou não tem responsabilidade no acidente? Vamos ver.

No geral, tem. Todo governo tem. Mas o acidente possui um espectro tão amplo que é possível culpar quase qualquer um dos atores envolvidos (só não culparam ainda São Pedro). A TAM, de acordo com matéria exibida no Jornal Nacional de hoje, admitiu que a aeronave operava com o reverso desativado e já apresentava certa instabilidade nos pousos desde a semana passada. A Infraero liberou a pista sem as ranhuras necessárias para escoar o excesso de água da pista. O piloto – o melhor bode expiatório da história, porque já morto – pode ter aterrissado numa velocidade muito maior do que deveria dada as condições da pista e do tempo. Congonhas, a julgar pelo que se diz, está mais para cemitério do que para aeroporto. O edital de hoje do Estadão – reproduzido e elogiado pelo Reinaldo Azevedo – culpa todo mundo ao longo de anos. Na verdade, ninguém sabe ao certo e uma resposta tecnicamente embasada deve demorar uns 10 meses para aparecer.

Do ponto de vista político o esforço é para construir uma linha direta de argumentação ligando o governo federal às mortes. Como disse, se ampliarmos o espectro de análise, dá para culpar o governo porque ele é o responsável por todo o sistema aéreo brasileiro, logo, se aconteceu algo do tipo foi porque alguma medida de segurança foi negligenciada. Que medidas de segurança? No limite, permitir que Congonhas continuasse operando.

A maioria dos argumentos (tomo o Reinaldão como modelo) retira sua plausibilidade da falência progressiva do sistema aéreo brasileiro conhecida como o “apagão da aviação”. Lido neste contexto, parece lógico “colar” uma coisa na outra. É a festa das Cassandras.

Já está em curso a rotina dos sacos pretos, em que são retirados os corpos.

O acidente da Gol, que matou 154 pessoas, completa 10 meses no dia 30. A crise aérea que inferniza a vida dos brasileiros está em seu nono mês. E dá à luz o óbvio: mortes.

Irresponsabilidade fazer uma afirmação como essa sem saber nem mesmo a causa do acidente? Não! Puro realismo! Já se sabe que o Airbus derrapou numa pista recém-reformada, que estava molhada. O mesmo aconteceu ontem. Os pilotos reclamavam dos reparos feitos pelo Infraero.

Isso é do blog do Reinaldo (link acima). O problema é que o argumento é falacioso. Do “apagão” não se segue, necessariamente, a culpabilidade do governo. Ela é apenas possível. Do ponto de vista lógico é uma inferência contingente. Por quê? Simples: o apagão estava relacionado com o atendimento da demanda da população pelo serviço de transporte. Foi disparado pelo acidente da Gol e envolveu uma greve de controladores e a capacidade da Infraero de monitorar o tráfego aéreo brasileiro. Não sei se vocês se lembram, mas na época discutiu-se muito a defasagem tecnológica dos equipamentos e a falta de pessoal especializado para realizar a operação. Este acidente, por outro lado, está relacionado a fatores como qualidade da pista, manutenção da aeronave, habilidade do piloto, capacidade do aeroporto, etc.

Assim como o caso do “buracão” – lembram-se? – qualquer atribuição de culpa depende da investigação técnica. Qual é a evidência mais forte em apoio à tese do Reinaldo? As condições da pista, responsabilidade do governo. Mas o desenrolar das informações foi noutra direção. Como todo mundo se baseia em informações não fundamentadas (opiniões de especialistas principalmente) em dados fidedignos (nem a transcrição das caixas-pretas se tem), a coisa toda virou chute. Lançam-se algumas hipóteses e, baseado nelas, postulam-se diversas conclusões. O alvo é Lula.

E o governo, amedrontado com as vaias do Pan, treme de medo. Marca reuniões. Pelo amor de Deus, mais reuniões? A reação do governo é tão inepta que apenas ajuda na confusão. Marcelo Tas diz o seguinte em seu blog:

Responda rápido: quantos “gabinetes de emergência” foram criados para resolver a crise aérea que se arrasta há 10 meses?

De todos eles, participou a incrível figura do Ministro da Defesa Waldir Pires.

De todos eles, emergiu a incrível figura do Brigadeiro José Carlos Pereira, presidente da Infraero, para declarar aos microfones que o sistema aéreo brasileiro é “um dos mais seguros do mundo”. Será que dessa vez ele vai ter a mesma cara-de-pau?

De todos eles, o presidente Lula exigiu uma solução em 48 horas que nunca veio.

De todos eles, o presidente se esqueceu de cobrar o que exigiu.

Será que agora a Infraero explica por que priorizou as obras no terminal luxuoso de passageiros de Congonhas e não nos equipamentos básicos de segurança, como a pista principal do aeroporto, que vem sendo criticada sistematicamente pelos aeronautas há anos?

Será que agora a Infraero explica por que fez o mesmo no aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, que sofreu um incêndio anteontem?

Será que agora, as empreiteiras que se beneficiaram com essas obras gigantescas espalhadas pelo Brasil serão investigadas?

Será que um dia vamos trocar o estado de emergência por um estado de direito?

A indignação se justifica, mas também o Tas adianta responsabilidades. Para ele o governo é culpado a) por não resolver o “problema” da aviação brasileira; b) por não ter priorizado as obras na pista de Congonhas. Sobra até para as empreiteiras responsáveis pelas reformas. Voltando à vaca fria, a forma como o Reinaldo vai diluindo seu argumento em teses cada vez mais amplas e distantes da tese central é um indicativo de que o argumento original está fazendo água. O melhor exemplo é o texto “A ordem é morrer calado e ficar de luto em silêncio”, eis um trecho:

São os tempos petistas. Chegou a hora de morrer calado. Chegou a hora de sofrer em silêncio. O curioso é que o próprio Lula, a despeito do que dizem os seus puxa-sacos, sentiu à distância o calor das chamas e se apressou em reunir o tal gabinete de crise. É claro que ele sabe ter tudo a ver com isso. Com isso o quê? Com a tragédia? Em certa medida, sim. Os brasileiros passaram a voar com muito menos segurança no seu governo. E as respostas ficaram todas entre a inércia e o cinismo.

Aqui ele indica que o fato de Lula ter reunido o gabinete de crise ajuda a provar sua responsabilidade pelo acidente. O nome desta falácia é post hoc ergo propter hoc (na inculta e bela: depois disto, logo, por causa disso). Dito de outra forma: se Lula montou o gabinete é porque ele vê alguma ligação entre ele e o acidente. Bem, como já disse, num sentido beeem amplo tem mesmo a ver com o governo, mas a amplitude da relação dilui a inferência. O que a torna verossímil é o contexto referencial da crise, cuja relação com acidente é tênue. Mais à frente ele critica a reação do governo ao acidente e, mantendo a tese de inadequação da pista (e do aeroporto), o gasto do governo federal com as reformas. Em outros momentos ele articula sua crítica com ênfase mais ideológica: a natureza incompetente e maliciosa do PT e das esquerdas.

E eu? Bem, eu quase sempre concordo com o Reinaldo quando ele critica o Lula, mas agora não dá para concordar. Eu não quero o governo que está aí por um monte de motivos, mas não este. Ainda é cedo para acusar responsabilidades. Esperemos.