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O cidadão americano

Direto do blog do Hermenauta – e das minhas saudosas aulas de Antropologia no curso de Jornalismo da UFG, em 1991.

O cidadão norte-americano  
Ralph Linton, antropólogo 

“O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão originário do Oriente Próximo, mas modificado na Europa Setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai debaixo de cobertas feitas de algodão, cuja planta se tornou doméstica na Índia; ou de linho ou de lã de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo; ou de seda, cujo emprego foi descoberto na China. Todos esses materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no Oriente Próximo. Ao levantar da cama faz uso dos “mocassins” que foram inventados pelos índios das florestas do Leste dos Estados Unidos e entra no quarto de banho cujos aparelhos são uma mistura de invenções européias e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é vestiário inventado na Índia e lava-se com sabão que foi inventado pelos antigos gauleses, faz a barba que é um rito masoquístico que parece provir dos sumerianos ou do antigo Egito.

Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma cadeira do tipo europeu meridional e veste-se. As peças de seu vestuário tem a forma das vestes de pele originais dos nômades das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um processo inventado no antigo Egito e cortadas segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do Mediterrâneo; a tira de pano de cores vivas que amarra ao pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros pelos croatas do séc. XVII. Antes de ir tomar o seu breakfast, ele olha ele olha a rua através da vidraça feita de vidro inventado no Egito; e, se estiver chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos índios da América Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é feito de feltro, material inventado nas estepes asiáticas.

De caminho para o breakfast, pára para comprar um jornal, pagando-o com moedas, invenção da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados de empréstimo o espera. O prato é feito de uma espécie de cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga feita pela primeira vez na Índia do Sul; o garfo é inventado na Itália medieval; a colher vem de um original romano. Começa o seu breakfast, com uma laranja vinda do Mediterrâneo Oriental, melão da Pérsia, ou talvez uma fatia de melancia africana. Toma café, planta abssínia, com nata e açúcar. A domesticação do gado bovino e a idéia de aproveitar o seu leite são originárias do Oriente

Próximo, ao passo que o açúcar foi feito pela primeira vez na Índia. Depois das frutas e do café vêm waffles, os quais são bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava, empregando como matéria prima o trigo, que se tornou planta doméstica na Ásia Menor. Rega-se com xarope de maple inventado pelos índios das florestas do leste dos Estados Unidos. Como prato adicional talvez coma o ovo de alguma espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas fatias de carne de um animal domesticado na Ásia Oriental, salgada e defumada por um processo desenvolvido no norte da Europa.

Acabando de comer, nosso amigo se recosta para fumar, hábito implantado pelos índios americanos e que consome uma planta originária do Brasil; fuma cachimbo, que procede dos índios da Virgínia, ou cigarro, proveniente do México. Se for fumante valente, pode ser que fume mesmo um charuto, transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da Espanha. Enquanto fuma, lê notícias do dia, impressas em caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado na China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das narrativas dos problemas estrangeiros, se for bom cidadão conservador, agradecerá a uma divindade hebraica, numa língua indo-européia, o fato de ser cem por cento americano.”

LINTON, Ralph. O homem: Uma introdução à antropologia. 3ed., São Paulo, Livraria Martins Editora, 1959. Citado em LARAIA, Roque de Barros. Cultura: um conceito antropológico. 16ed., Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 2003, p.106-108]

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6 Comments

  1. O Paulo aí, que entende melhor que eu de culinária, provavelmente irá concordar com isto: cada prato é uma mistura única de ingredientes e condimentos que permitem que ele seja 100% ele mesmo. (Claro, o Daniel, pra variar, irá desdizer isso ao afirmar que não passa de mais uma analogia do Yuri, mas, enfim…) O Brasil é também, como qualquer outro lugar, uma mistura de mil e uma influências, mas ninguém nega, principalmente ao regressar do exterior, que é brasileiro. Ser 100% norte-americano significa ser um “prato” preparado com determinada proporção de ingredientes.

  2. É o problema do todo e das partes. Até que ponto a originalidade da mistura transforma os ingredientes em algo mais ou melhor ou mesmo pior do que são? Um prato é tão bom quanto forem seus ingredientes e depende deles para ser saboroso e nutritivo. Ser 100% americano significa ser 10% de várias coisas.

  3. Jether

    “O primado da forma, a sujeição da matéria, são leis inescapáveis, em literatura como em tudo o mais: “Quando o coelho come alface, é a alface que vira coelho, não o coelho que vira alface”, resume Jean Piaget.”
    http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/quem.htm

    ***

    Yuri, dá uma boa escutada no que o Olavo fala sobre ter amizade com esquerdista.

  4. Não há coelho sem alface. E se ele não comer alface, resolver comer carne, não será um coelho por muito tempo. Condições materiais não determinam a existência, mas limitam seus modos. Enquanto tivermos um corpo, essa é uma verdade igualmente inescapável.

  5. Sim, Jether, conheço desde 2000 a opinião do Olavo sobre a amizade com esquerdistas. Também falamos ao telefone sobre isso anos depois. E também o vi voltar ao tema, internet afora, um par de vezes. Até certo ponto acho que ele está certo — já passei por bons apuros para saber disso –, mas infelizmente eu também sofro de insubordinação crônica. Ou seria de “paralaxe cognitiva”? Algo assim.
    {}’s

  6. J. ( o mesmo cara)

    Até certo ponto acho que ele está certo

    Gostaria de saber se essa tua discordância do que ele fala é racional (eu acho que não, a julgar pelo tipo de amigos que você tem…).

    já passei por bons apuros para saber disso

    Ouça a voz da experiência. Pense também nos apuros que outros passam por causa deles.

    eu também sofro de insubordinação crônica. Ou seria de “paralaxe cognitiva”? Algo assim.

    Desde que você não ache que é por alguma virtude tua…

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