O Supremo Tribunal Federal liberou, recusando a ação direta de inconstitucionalidade contra Lei de Biossegurança, o uso de células-tronco para pesquisa científica. Segundo a Lei, os embriões utilizados deverão ser inviáveis, estar congelados a mais de três anos e o processo deverá ter a anuência do casal responsável pelo embrião. A Lei também veta a comercialização de material biológico para a realização de pesquisas. O placar foi de seis votos contra cinco. Discutiu-se também a criação de uma instância que fiscalize as pesquisas, mas o Governo Federal informou prontamente aos ministros que da conta do recado. Entretanto, a institucionalização de um tipo de controle deverá ser transformada em lei.
É uma vitória da racionalidade.
Não é, entretanto, uma derrota da Igraja Católica ou da vida, mas de um gurpo cujos argumentos se sustentam numa lógica, no mínimo, “fuzzy”.
Em primeiro lugar, nos Estados modernos, religião é um tema privado. O Estado não pode transformar todos em budistas e nem o budismo pode querer gerir o Estado. Logo, a Igreja Católica, e seus seguidores, estão corretos em expressar sua opiniões publicamente contra o que consideram uma decisão teologicamente equivocada. Do mesmo modo, todos os católicos estão liberados para recusar qualquer tratamento científico derivado destas pesquisas, se assim lhes parecer correto, do mesmo modo como se abstêm do uso de preservativos e do sexo pré-marital e extra-conjugal. Nos domínios de sua religião, eles não perderam nada.
Em segundo lugar, o princípio da inviolabilidade da vida permanece ativo como fundamento do Estado de direito, garantido na Constituição. Era exatamente isso que estava sendo votado. O Reinaldo Azevedo, por exemplo, achou um absurdo e acusou o voto do ministro Celso de Mello de relativista. Seu mantra era “se aquilo (o embrião) não é vida, é o quê?”. Para ele, só poderíamos liberar conscientemente as pesquisas com células-tronco depois de responder a essa pergunta. É aqui que a lógica fica “fuzzy”.
Vida é um termo polissêmico. Pode significar um monte de coisas. No caso do Reinaldo acredito que signifique vida “em potência”. As células da minha pele estão vivas, mas se eu, por algum motivo, cortá-las, isso não será considerado uma assassinato. Isso se dá porque deixadas a si mesmas, as células da minha pela não serão outra coisa senão o que já são, células da minha pele. Com o embrião é diferente. Deixado a si mesmo (isto é, seguindo o curso normal do seu desenvolvimento) este embrião pode se tornar um ser humano completo e perfeitamente funcional. Daí, matar o embrião é, ao mesmo tempo, matar o ser humano que ele poderia ser.
Mas o embrião é, ele mesmo, uma conseqüência. Talvez do sexo sem preservativos. Na verdade, todo embrião está, em potência, contido no ato sexual. Por outro lado, todo ato sexual está contido, em potência, no primeiro beijo entre duas pessoas. E todo beijo na primeira troca de olhares. O encadeamento causal (e falar em potência e realização é falar em termos causais) não precisa estar circunscrito ao embrião. Mas porque está? É uma decisão arbitrária. E decisões arbitrárias não são logicamente sustentáveis, embora sejam legítimas e defensáveis, do ponto de vista político.
Assim, o mundo não vai acabar em Sodoma e Gomorra nem a ciência irá crias monstros geneticamente modificados porque o Brasil decidiu, corretamente, entrar no circuito mundial das pesquisas com células-tronco. Esta opção não significa, como ouvi de um amigo, pousar a cabeça no colo do Frankenstein (quem dormiria tranqüilo?). Na verdade, o mundo ficou um pouquinho mais iluminado do que era antes.
filipe
diogo,
concordo contigo.
acho oportuno, inclusive, deixar claro três coisas. existem várias linhas de pesquisa e vários “tipos” de células-tronco. as que estão em questão são as células-tronco embrionárias, caracteristicamente atrativas pela sua pluripotência. no entanto, há pesquisadores que acham os “tipos” não embrionários (adultas) muito mais atrativos.
a grande confusão começa porque as células-tronco embrionárias são obtidas a partir do blastocisto, fase inicial dos embriões de mamíferos. isso cria uma impressão (falsa) de que as pesquisas com essas células implicam em cientistas loucos coletando-as desenfreadamente de embriões em pleno estado gestacional para criar mostrinhos. e isso, obviamente, não existe, como vc mesmo salienta no teu texto: “segundo a lei, os embriões utilizados deverão ser inviáveis, estar congelados a mais de três anos e o processo deverá ter a anuência do casal responsável pelo embrião”. esses critérios já estão estabelecidos há algum tempo.
a igreja católica, e seus seguidores, podem expressar sua opiniões publicamente contra o que consideram uma decisão teologicamente equivocada. esse não é o problema. a idiotice começa quando as pessoas se utilizam de artimanhas pra influenciar outras sem entender sobre o assunto. ja citei aqui, noutra oportunidade, o caso da briga judicial travada entre o arcebispo de recife/olinda e a prefeitura dessas cidades devido à distribuição de anticoncepcionais durante época carnavalesca. o representante da igreja chegou até a ameaçar excomungar quem utilizasse camisinhas (aiai). outra triste oportunidade foi o papa afirmando que a manipulação genética era um pecado moderno e que a pesquisa com células-tronco embrionárias era um crime contra a vida.
interessante seria se alguém avisasse ao bentão que o vinho tão celebrado nos rituais religiosos da igreja católica advém de processos metabólicos envolvendo leveduras modificadas geneticamente, e não de veias divinas; ou que seus seguidores católicos e mais de 95% da população mundial (incluindo o filipe aqui) consomem remédios produzidos através de pesquisas com células-tronco embrionárias de camundongos. camundongo tem vida? pq a pesquisa com essas células não são um crime contra a vida dos camundongos? e se as sociedades protetoras dos animais decidissem “proibir” a pesquisa com células-tronco embrionárias de cobaias?
quanto ao reinaldo azevedo, ele é um bundão. a forma como ele (e outras pessoas) discute sobre “o que é vida” é extremamente equivocada. digam pra ele que as bactérias presentes na (sua) merda tem vida e ele não sabe o que fazer com essa informação.
eu sei, meu pai diria: senso de auto-crítica, rapaz!
algumas pessoas não podem entrar nesse debate. é uma questão de know-how. pra estas, o limite é assistí-lo.
daniel christino
Sem dúvida. Mas não acho que seria muito pedir a estas pessoas que conheçam um pouco mais sobre ciência antes de opinar, não acha?