Da Ortodoxia, de Chesterton:
Com freqüência se diz que os sábios não conseguem ver nenhuma resposta para o enigma da religião. Mas o problema dos nossos sábios não é que eles não consigam ver a resposta; é que eles não conseguem sequer ver o enigma. Como crianças, eles são tão obtusos que nada notam de paradoxal na jocosa afirmação de que uma porta não é uma porta. Os latitudinaristas modernos falam, por exemplo, acerca da autoridade na religião não apenas como se não houvesse nenhuma razão nela, mas como se nunca houvesse existido razão alguma para essa autoridade. Não vendo a base filosófica da religião, eles não conseguem ver sua causa histórica.
A autoridade religiosa sem dúvida foi muitas vezes opressora e exorbitante, exatamente como todos os sistemas legais (e especialmente o nosso sistema atual) têm sido insensíveis e cruelmente apáticos. É racional atacar a polícia. Mais que isso, é maravilhoso. Mas os críticos modernos da autoridade religiosa são como homens que atacariam a polícia sem jamais ter ouvido falar de ladrões. Pois a mente humana corre um grande perigo concreto: um perigo tão prático quanto o latrocínio. Contra esse perigo a autoridade religiosa foi erigida, certo ou errado, como uma barreira. E contra ele algo certamente deve ser erguido como uma barreira, se quisermos evitar a destruição de nossa raça.
O perigo é que o intelecto humano é livre para destruir-se. Da mesma forma que uma geração poderia impedir a própria existência da geração seguinte com todo o mundo entrando no convento ou pulando no mar, assim um grupo de pensadores pode, até certo ponto, impedir a expansão do pensamento ensinando à geração seguinte que nenhum pensamento humano tem validade alguma. É inútil falar sempre da alternativa entre razão e fé. A própria razão é uma questão de fé. É um ato de fé afirmar que nossos pensamentos têm alguma relação com a realidade por mínima que seja.
Se você for simplesmente um cético, mais cedo ou mais tarde precisará perguntar-se o seguinte: “Por que ALGUMA COISA deveria dar certo, mesmo que se trate de observação ou dedução? Por que a boa lógica não seria tão enganadora quanto a lógica ruim? Ambas são movimentos no cérebro de um macaco perplexo”. O jovem cético diz: “Eu tenho o direito de pensar por mim mesmo”. Mas o velho cético, o cético total, diz: “Eu não tenho direito de pensar por mim mesmo. Não tenho absolutamente direito de pensar”.
Há um pensamento que bloqueia o pensamento. Esse é o único pensamento que deveria ser bloqueado. É o mal supremo contra o qual toda autoridade religiosa se voltou. Ele só aparece no final de épocas decadentes como a nossa; e o sr. H. G. Wells já desfraldou a sua desastrosa bandeira. Ele escreveu uma delicada obra de ceticismo intitulada “Doubts of the Instrument” [Dúvidas do Instrumento]. Nela questiona o próprio cérebro, e se esforça para eliminar toda a realidade de todas as suas afirmações pessoais, passadas, presentes e por vir. Mas foi contra essa remota destruição que todos os sistemas militares da religião foram originariamente enfileirados e comandados.
Os credos e as cruzadas, as hierarquias e as horríveis perseguições não foram organizados, como dizem os ignorantes, para suprimir a razão. Foram organizados para a difícil defesa da razão. O homem, por instinto cego, sabia que, se uma única vez as coisas fossem loucamente questionadas, a razão poderia ser questionada primeiro. A autoridade dos sacerdotes para absolver, a autoridade dos papas para definir a autoridade, e até mesmo a autoridade dos inquisidores para aterrorizar: essas são todas sombrias defesas erigidas em volta de uma autoridade central, mais indemonstável, mais sobrenatural de todas — a autoridade do homem de pensar.
Sabemos agora que isso é assim mesmo; não temos desculpa para não sabê-lo. Pois podemos ouvir o ceticismo invadir violentamente o antigo espaço das autoridades, e ao mesmo tempo podemos ver a razão oscilando em seu trono. Na medida em que a religião já desapareceu, a razão vai desaparecendo. Pois ambas têm a mesma natureza primária e autoritária. Ambas são métodos de comprovação que não podem elas mesmas ser comprovadas. E no ato de destruir a idéia da autoridade divina nós já destruímos em boa parte a idéia daquela autoridade humana pela qual efetuamos uma longa conta de dividir. Com um puxão demorado e constante, tentamos tirar a mitra da cabeça do pontífice; e a cabeça dele veio junto com a mitra.
Ortodoxia, G. K. Chesterton, tradução de Almiro Pisetta, Mundo Cristão, 2008.
daniel christino
Chesterton é o expoente de um argumento que voa longe na imaginação dos conservadores mundo afora. O argumento do perigo que está sombranceiro, em vias de se concretizar. Hirschman o chama “jeopardy”. Em resumo: mudanças são perigosas porque ameaçam algo valioso que conquistamos e não queremos perder.
No caso do texto do Chesterton “a mente humana sofre um grande perigo concreto”. Este perigo é a liberdade para destruir-se. O núcleo resumido do argumento fica assim: sem a religião corremos o risco de ver nosso intelecto dissolver-se no caos do ceticismo e acabar destuindo-se.
Nossa! Dá medo, não é? O elemento chave aqui é o diagnóstico da decadência. Parte-se do princípio de que a cultura está decadente porque a religião está sendo afastada do centro do pensamento e substituida pelo relativismo científico e pelo ceticismo filosófico.
Sei não, moçada, mas há aqui um desejo incontido de arrastar todo o pensamento humano para o mesmo buraco em que se enfiou o cristianismo na virada do século XX (época do Chesterton). Desculpem-me os mais exaltados defensores da decadência, mas a crise do pensamento cristão não é a crise da humanidade, mas não é mesmo!
Vejam bem, na esteira deste diagnóstico justifica-se até o autoritarismo religioso da Idade Média como um remédio necessário para se evitar o pior. E a religião torna-se a Rotam do pensamento, impondo limites para o que podemos ou não pensar, justificados sempre pelo medo terrível de perder a verdade que já alcançamos. O que é uma torturazinha aqui outra acolá, comparado ao apocalipse da razão?
Chesterton possivelmente sabe disso. Mas o texto da Ortodoxia deve ser lido juntamente com as polêmicas do autor contra Wells, Shaw e Wild. Há outro livro dele, chamado Heretics, cujo debate é claramente contra Shaw, Wells e Kipling. Em certo sentido, tanto Heréticos quanto a Ortodoxia são textos mais argumentativos do que analíticos, e isso implica dizer que respondem a uma necessidade de polêmica midiática e superficial, não sendo, para usar um termo caro ao próprio Chesterton, profundamente filosóficos. Ainda acho que o ponto fraco de todos estes argumentos é o diagnóstico da decadência. Ele não está estabelecido e falta lastro na realidade. Até aqui, é só delírio.
yuri vieira
Para quem ainda vive dentro da caverna (vide Platão) não importa o quanto ouça daqueles que vêm de fora, não importa o quanto lhe falem da luz do Sol: ele jamais entenderá.
É como gritar no deserto.
Ou, já que o texto acima é supostamente medíocre, não-filosófico e superficial, digamos então que é como a música do nosso amigo Roberto Carlos: Todos estão surdos. Os da caverna.
Deus do céu, que preguiça me dá…
daniel christino
Ainda bem que eu não sou preguiçoso. Eu disse que o Chesterton se concentra na elaboração de argumentos e não na análise profunda de um problema ou questão. Seria o mesmo que considerar “O imbecil coletivo” como a principal obra filosófica do Olavo. Você dá a este livro o mesmo status do “Jardim das Aflições”? Acho que não.
Nós aqui da caverna nos sentimos louvados pela santidade que se compadece e, getilmente, procura nos mostrar a luz. Mas ao fim e ao cabo são apenas homens como nós, feitos de carne, sangue e borra; perdidos em seus delírios luminosos, cegos de tanto ver e surdos de tanto ouvir. Esperemos que algum dia percebam que o saber humano constitui-se de quantidades iguais de sombra e luz; e que o pecado do orgulho está em querer ter olhos de anjo.
Yuri Vieira
Não é pecado do orgulho não: é, como vc bem notou (porque, claro, eu o sugeri) o da preguiça mesmo. (Ah, meus genes baianos!) O que está de fora da caverna é apenas aquilo que minhas avós já me ensinavam, assim como minha professorinha hippie de catecismo, minha tia carioca médium, a lavadeira lá do alojamento da UnB, a mãe simplória de um amigo (uma que morreu de câncer enquanto orava), algumas empregadas domésticas, alguns mendigos que batem à porta (hoje em dia, bem poucos dentre eles), etc., etc. Não é preciso ser um Bruno Tolentino para estar de fora da caverna. É uma coisa muito simples, de gente simples nada orgulhosa, tão simples que dá o maior trabalho explicar a uma mente complexa como a sua. Tal como diz Chesterton: não é que sábios como vc não entendam a resposta, é que vcs não conseguem perceber sequer o enigma.
Há alguma coisa, ou uma série de coisas, situações e fatos, que prepara o solo da nossa vida interior para a Semente. Sabe-se que o solo está preparado quando o enigma se sobrepõe a todas as respostas conhecidas e louvadas pelos sábios mundanos. Sim, alguns tem o solo mais difícil de ser preparado. Não vou dizer que o meu foi melzinho na chupeta, uma tarefa facilzinha que qualquer jardineirozinho teria levado a cabo. Já fui mais osso duro de roer que vc. Mas, enfim, um dia finalmente acontece algo que nos faz aceitar tudo, como diz o Mestre, com o espírito de uma criança. E, se há algum orgulho numa criança, é o orgulho de se saber protegido por um Pai amoroso. Mas mesmo esse orgulho é passageiro, afinal, o Pai é pai de todos, inclusive dos que não sabem ou se negam a aceitá-Lo.
Tudo bem, concedo: a preguiça talvez seja uma espécie de orgulho clandestino, isso porque leva no bojo o preconceito de que o outro jamais nos entenderá. E já discutimos tanto isso, Daniel, de que adianta continuar? Jamais perderei minha fé e vc jamais aceitará a Palavra por meio da minha pessoa, logo… vamos seguir cada qual com sua vida interior. Eu posso gastar dias falando a quem se mostra realmente interessado em aceitar uma sementinha, mas vc só quer abrir a dita cuja com estilete e colocá-la no microscópio, não acreditando que uma merrequinha verdinha e quase sem conteúdo pode transformar-se num Cedro. Se eu fosse de fato um cara que se acha fodão, teria colocado como um dos meus objetivos de vida converter o cara mais pentelho e chato que conheço. Mas não, já desisti desse Everest, tenho mais o que fazer. Certamente uma pessoa com uma vida mais prosaica que a minha, e por isso mesmo muito mais sábia em sua simplicidade, saberá em que fenda da rocha dura da sua vida interior há de ser colocada a Semente. Eu é que não sei. Porque, se bem me lembro, um dos maiores obstáculos à minha própria conversão era aceitar a idéia de me unir às filas dos sem-fim de evangélicos, crentes, carolas, fanáticos e demais membros (legítimos ou não) desse grupo que, mormente entre os acadêmicos, é considerado um grupelho de mera gentinha, uma galera descerebrada, patética, ingênua e, tadinhos, imbuídos de fé numa ilusão. Mas, como escreveu Chesterton, após elaborar minha própria heresia, descobri que não era ela senão a Ortodoxia. Nada mais chato para o alpinista orgulhoso do que escalar um pico e descobrir que alguém — até mesmo sua corcunda avozinha camponesa — já esteve lá antes. Deste pecado de que me acusa, meu amigo, realmente não padeço.
Abração!
daniel christino
Mas foi a única acusação capaz de te mover.
Digo novamente: dentro do que é possível a alguém compreender outra pessoa, eu te entendo. Mais do que você imagina. Por isso pego no teu pé.
Meu caro, eu tenho muitas horas de convivência com estes católicos, crentes, carolas, fanáticos, de que falas. Com as crianças e os bobos também. Em minha curta vida não viajei ao cume de nenhum vulcão, não atravessei nenhuma vez as fronteiras do país; no entanto já percorri boas léguas na companhia de gente mais humilde e mais sábia do que eu. E tive a prudência de nunca considerar, de modo consciente e deliberado, essa convivência parte da minha educação estética ou filosófica. Convivência verdadeira é aquela não intermediada pelo projeto que nós somos para nós mesmos. Tal convivência necessita de um desarmamento aos moldes do diálogo proposto por Martin Buber. É um doar-se. Em você, quando muito, vejo apenas um doer-se.
Vou falar uma coisa aqui mas não quero que você leve a mal. Nem interprete como algum tipo de ataque ou crítica: o que inspira outras pessoas, Yuri, é o exemplo. É a religião viva. É ver Deus agindo na pessoa. Não há nada de místico nisso, nem mistério algum. Basta viver de acordo com a Palavra. Você fala muito sobre a Palavra, exalta as capacidades curativas da Palavra, fala da Palavra como fundamento da razão. Leva uma imagem de Cristo no celular. Mas isso não é você. É um discurso decorado que vem do Mario Ferreira ou do Olavo ou do Bruno Tolentino ou da Hilda. Você é uma caixa de ressonância. A Palavra ainda não vibrou as cordas necessárias para um novo dizer inteiramente seu.
Por exemplo: quando você fala em religião começa a temperar seu texto com parábolas do novo testamento e metáforas de catequese. É um cacoete, um maneirismo. Porque tornar-se um pregador? Porque emular um catequista? Este nunca foi seu modo verdadeiro de dizer as coisas. Você se assemelha, neste particular, ao escultor que, uma vez convertido, acredita só valer a pena esculpir crucifixos. Sugiro que você aprofunde a convivência com os crentes.
Há uma igreja católica praticamente um quarteirão acima da sua casa. Basta você caminhar um pouco e todos os dias poderá assistir a missa e louvar a Deus junto com outros católicos. Faça isso. Você se lembra da alegria que é cumprimentar outro católico desejando-lhe a paz de Cristo? Era o melhor momento da missa para mim, depois da eucaristia. Uma explosão de alegria e fraternidade num evento, em grande parte, solene. Mas ao invés de andar uns poucos metros uma vez por semana, você prefere defender o “upgrade” do catolicismo. Escrever, para você, não é nenhum sacrifício. Abandone seu escritório e mergulhe no fluxo vital da fé. Eu vou com você. Que tal? Vamos assistir a uma missa num domingo qualquer na Igreja aí perto da sua casa? Eu topo.
E esse ressentimento pelos acadêmicos, meu Deus! De onde vem isso? Outro dia passei algumas horas almoçando com meu antigo professor – você já ouviu falar dele, é o Pierre (Francisco Eduardo Pont-Pierre) da Facomb, hoje aposentado – conversando sobre a Imitação de Cristo. Ele é um dos católico mais convictos que conheço e sua sabedoria, acadêmica e comum, é assombrosa. Mas eu apenas gosto de conversar com ele e gostaria que fôssemos mais amigos. Talvez porque eu não seja um católico.
Não sei se você percebeu, mas não quero te fazer desistir da sua fé. Quero fazê-lo mergulhar nela pra valer. Quero ver você ministro da eucaristia, ofertando a comunhão aos seus irmãos. Não há honra maior.
Marina
esse tipo de conversa particular pega mal ser exposta em público.
vocês não conhecem um troço chamado telefone?
yuri vieira
Eu até concordo com vc, Marina. (Aliás, da próxima vez use um email real ou deletarei seu comentário. Seu IP é bastante suspeito…) E diria mais: vc pode dizer isso — sobre o telefone — em cerca de 80% dos fóruns encontrados na internet. Há sempre alguém procuranco chifre em cabeça de cavalo e levando as discussões para o plano pessoal. Mas aqui não daria certo. O Daniel trabalha para algum serviço secreto e, embora eu o encontre pessoalmente apenas umas 4 ou 5 vezes ao ano, conforme deu para notar ele sabe mais da minha vida do que eu mesmo. Ele sabe se entro ou não na igreja que fica a dois quarteirões da minha casa, sabe se me relaciono com o próximo de modo escroto ou de forma verdadeiramente fraterna, sabe se minha fé é composta de geléia de mocotó ou de diamante, enfim, ele sabe tudo, não duvidaria se ele fosse um avatar ou coisa assim. Talvez ele esteja me vendo agora na tela do PC dele e eu não seja senão um monstrinho do Spore, esse jogo em que a pessoa brinca de ser Deus. Enfim, se eu conversasse sobre essas coisas por telefone, ele, sendo um agente secreto, certamente iria gravar tudo e colocar no podcast do Garganta. O negócio mesmo é segurar a onda e ficar quieto.
Obrigado pelo comentário.
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daniel christino
Epa! Essa acusação de particularizar o debate eu não aceito não. Meu comentário sobre o Chesterton era rigorosamente técnico, discutia a forma do argumento. Alguém poderia dizer que a forma não diminui a relevância do conteúdo ou poderia reafirmar a tal tese da decadência, até não responder seria uma opção legítima.
Mas o que “desvirtuou” a coisa toda foi a referência ao mito da caverna e a Platão. Ficou claro que eu sou um habitante da caverna e o Yuri, um dos poucos que conseguiu alcançar a saída. É o centro da analogia. Que resposta eu poderia dar a isso? Eu escolhi dizer que a luz do saber também pode cegar. E quem se coloca na posição de determinar a diferença entre os que estão na escuridão e os que já alcançaram a luz, acredita que possui uma visão privilegiada – pelo menos em relação a nós aqui da caverna. Eu chamei isso de orgulho. Mas era um galanteio, um jogo.
Não fui eu quem colocou a vó no meio da história.
Por fim não é preciso ser nenhum vidente para intuir que o Yuri não vai à missa. Aliás, se você vai, Yuri, me desculpe. Diga quando costuma ir para podermos ir juntos. Eu acho que seria muito interessante – sem ironia, de verdade.
Transeunte
Cai de pára-quedas, mas gostaria de fazer uma pergunta. Vocês acham que é possível compartilhar desses sentimentos bonitos, na falta de um termo melhor, os quais vocês sentem ao “viver” a fé, como no caso da fraternidade ao desejar a outra pessoa “a paz de Cristo”, sem ser religioso, sem ter fé em nada sobrenatural, seja ela uma energia mística ou um gigante invisível que habita as nuvens? Não é intenção ofender ninguém, mas o pessoal aqui parece ser bem estudioso. Gostaria de saber isso se não for atrapalhar, é claro.
daniel christino
Essa questão é difícil, transeunte, e não sei respondê-la. Posso, no máximo, ajudar.
O sentido da “Paz de Cristo”, por exemplo, não pode ser experimentado sem a crença na natureza divina do salvador. O que tornava essa parte da missa legal era poder sentir o liame religioso conectando as pessoas. Nem todos eram sinceros, claro, mas lembro-me de atravessar toda a igreja, certa vez, para cumprimentar um amigo de colégio descoberto por acaso na multidão. Fazer aquilo era prazeroso e recompensador.
Entretanto, por mais potente que seja o adesivo religioso, podemos, certamente, imaginar outros modos de fundamentação da interação social também capazes de nos manter grudados. A amizade é um caso. Em tese, podemos e devemos ser amigos independentemente de nossas crenças religiosas. Idéias morais como “honestidade” e “lealdade” podem sustentar-se numa amizade sem apelo a algo além do homem. Era uma das virtudes morais e intelectuais para Aristóteles. É o centro de uma interpretação da política feita por um ex-professor meu, Francisco Ortega, hoje na Federal do Rio.
Na sociologia, Durkheim acreditava numa espécie de “consciência coletiva”, extremamente necessária para impedir aquilo que ele chamava de solidariedade orgânica, degenerar em anomia (isto é, falta de lei ou falta dessa conexão normativa maior do que todas as individualidades que lhes impõe algum limite). As formas sociais nas quais cristalizava-se a consciência coletiva eram o Estado militarista da época pré-moderna, a burocracia administrativa e a religião. Dizia ele:
Essa citação deixa claro que a consciência social, para Durkheim, mudou sua natureza na época moderna, assumindo um caráter material e econômico cuja essência só poderia ser decifrada pelo conhecimento científico. Ele acreditava que a divisão do trabalho – especialmente as corporações profissionais, isto é, os sindicatos – poderia ser o novo molde desta consciência social, substituindo as outras formas tradicionais de vínculo. Durkheim não via esse movimento com bons olhos, é bom dizer. Segundo ele “uma forma de atividade – atividade econômica – que assumiu tamanha importância no conjunto da vida social não pode evidentemente permanecer a tal ponto desregulada, sem que resultem dificuldades as mais sérias. Isso constitui, notadamente, uma fonte de desmoralização geral”. Profético, não?
Citei Durkheim para mostrar um tipo de pensador que imaginava outra forma de regular a interação social (outro fundamento para a solidariedade, se quiser) que não através da religião ou de algum princípio metafísico. Marx tem opinião parecida e Weber, por exemplo, discorda de ambos.
No âmbito estritamente individual – e não sociológico – há os chamados “sentimentos morais”, ou seja, sentimentos disparados por modos diferentes de julgar (aqui estou equiparando a moralidade funcional à nossa capacidade de julgar, isto é, escolher entre o bem e o mal nas nossas ações) as ações dos indivíduos. Segundo autores como Hume, Adam Smith e Tugendhat, estes sentimentos – todos associados à ordem social – são a matéria-prima da moralidade. Seu fundamento é a preservação do grupo e eles são aprendidos pelo exemplo e pelo hábito (de modo bem aristotélico, aliás). Aqui, a consciência social é formada pela necessidade de autopreservação do grupo. As regras são filtradas pela tradição e consubstanciadas na norma jurídica. Como dizia Aristóteles, o juíz é como um arquiteto. A pólis só pode ser habitada – só pode haver vida política – depois de terminada a constituição, ou seja, o trabalho do legislador. Aqui o fundamento da solidariedade é a preservação da própria sociedade. Uma ordem transcendente a cada indivíduo, sem dúvida, mas não uma ordem metafísica.
Citei, de cabeça, dois exemplos. Mas há muitos e o debate é intenso. Alguém certamente irá argumentar pelo outro lado, ou seja, que não há moralidade verdadeira sem um apelo à metafísica. Mas eles provavelmente são mais capazes de defender esta posição do que eu.
Transeunte
Puxa, muito obrigado! Sua explanação foi ótima, sério, ficou bem explicado e de forma objetiva. Obrigado.
Particularmente, e lendo e relendo seu comentário, penso que não seja necessário um apelo à metafísica para se alcançar a moralidade, os sentimentos bonitos que falei no início. Até porque vejo com muita desconfiança as religiões, tenho aquela impressão de que ao mesmo tempo em que ela lhe oferece algo com uma mão ela exige algo em torno com a outra. Alguém poderia argumentar que isso é normal, que faz parte de convivência aprender a ceder para poder viver em conjunto. Penso assim também, porém no caso da religião vejo que o preço é muito alto. Ao se agarrar ao metafísico como uma fonte a se recorrer para se distinguir o certo do errado, o bom do mal, puxa… isso não me parece certo, porque desvia meu raciocínio da análise do que, inicialmente, me fez questionar, muitas vezes me impede até mesmo de questionar sobre determinadas coisas, me obrigando a aceitar determinados ditames, ou dogmas, para que possa ser aceito naquele grupo. É quase como que, para eu ser aceito deva fazer tudo do jeito que me mandam… Sem falar que muitas vezes somos chantageados a cumprir com determinadas práticas, sobre o risco de sermos severamente punidos “posteriormente”, ou, até mesmo, de forma “sobrenatural”. Não sei, mas ao se agarrar ao metafísico, me parece, como se eu deixasse de pensar na questão por mim mesmo e passasse essa obrigação para outra pessoa, ou, ainda, me ate-se a buscar a resposta em um único lugar… Putz, acho que viajei na maionese… Culpa sua professor, que deu corda.
Diogo
Mais um que não faz idéia do que seja Metafísica; tampouco do que é a religião…
Transeunte
Diogo, para que sua resposta se torne uma crítica construtiva, poderia expor seus argumentos que o fizeram chegar à conclusão a cima?
filipe
será que o diogo vai explanar sobre a metafísica/religião?