Ando me sentindo um pouco sufocado entre o anaerobismo da esquerda, de um lado, e o fundamentalismo dos mercados do outro. Quem dera o mundo fosse simplificável à possibilidade de um Estado monolítico e da iluminação de sábios como os petistas, ou de um mercado onipresente. Oito ou oitenta.
O Rodrigo Constantino, do Instituto Millenium, cujo blog foi recomendado no post abaixo, explica didaticamente como a propriedade privada é a solução para quase tudo, inclusive para a devastação da Amazônia. Eu quero concordar em parte com ele.
Explica o Rodrigo:
“a solução para os problemas do desmatamento desenfreado na Amazônia passa longe do decreto de que a região é o “pulmão” do mundo, um bem da humanidade. Muito menos será resolvido dando uma área rica em minerais, do tamanho de Portugal, para uns 3 mil índios ianomânis. Acaba gerando o que vemos, como crimes, corrupção e exploração ilegal, enquanto alguns índios andam em suas picapes importadas. Esse é o caminho certo do caos. Tampouco adianta apelar para o Curupira.
Para resolver de verdade o problema, precisamos delimitar propriedades privadas. Empresas com foco no lucro precisam ser responsáveis com seus ativos. Basta pensar nas grandes empresas de petróleo. Elas não detonam o máximo de produção possível ignorando a capacidade produtiva futura. Sabem que isso seria sua morte súbita, e por isso cuidam bem do seu mais valioso ativo. O mesmo vale para as empresas de celulose. As enormes florestas da Aracruz, Klabin, Suzano e Votorantim não enfrentam os problemas típicos da Amazônia. As empresas cuidam bem dos ativos, plantam novos eucaliptos, praticam o reflorestamento, tudo isso objetivando o lucro. No site da própria Aracruz, encontramos: “Por ser uma empresa de base florestal, a Aracruz sabe que a própria sobrevivência do empreendimento depende do uso renovável dos recursos naturais, assegurando que estejam disponíveis para as futuras gerações”. As atividades delas precisam ser sustentáveis, e o principal insumo tem que ser bem utilizado.
Espero que a mensagem tenha ficado bastante clara. É a propriedade privada que faz florescer um tratamento adequado aos recursos naturais, com base na racionalidade e busca de lucro. Não vamos tratar a Amazônia como um mico-leão dourado. Vamos tratá-la como uma vaca. Quando as coisas têm dono, a própria lei de oferta e demanda, através do preço de mercado, força um tratamento mais racional por parte do proprietário. Ou alguém acha que um criador de vaca iria matar todo seu rebanho pensando apenas no lucro imediato, ignorando o futuro do seu negócio?”
Embora o pressuposto central possa ser, de modo geral. considerado correto, o simplismo com que a questão é tratada, assim como algumas afirmações feitas, demonstram um conhecimento apenas parcial da complexidade do desmatamento no Brasil e certa desinformação sobre a realidade dos povos indígenas no país.”
Em primeiro lugar, sem dúvida nenhuma, o Rodrigo está correto: a questão fundiária é o nó gordio do desflorestamento amazônico.
A instituição onde trabalho, o Laboratório de Processamento de Imagens e Geoprocessamento da Universidade Federal de Goiás (LAPIG), desenvolve extenso programa de pesquisas sobre o tema. O LAPIG é responsável pelo desenvolvimento do Sistema de Alerta contra Desmatamentos (SIAD) do Sistema de Proteção da Amazônia (SIPAM), hoje coordenado pela Casa Civil da Presidência da República.
Os nossos trabalhos, e muitos outros de outras instituições, mostram a importância da estrutura de propriedade (ou ausência dela) há bastante tempo. O centro do processo de desmatamento na Amazônia está na apropriação indevida de terras públicas. Nesta dinâmica, o desflorestamento, mais que uma necessidade produtiva, é uma forma de ocupar a terra e consolidar sua posse, ao mesmo tempo em que uma extensa rede criminosa produz documentos falsos e mata gente.
É evidente, portanto, que o desmatamento é essencialmente um problema relacionado a direitos de propriedade e que a regularização fundiária é um elemento crucial de sua solução. Quarenta e dois municípios – todos no Pará e Mato Grosso -, concentraram 50% de todo o desmatamento na Amazônia Legal entre 1997 e 2004. (Curiosamente, as áreas onde o Ibama é mais presente não incluem nenhum deles e o INCRA não tem nenhum escritório fora das capitais).
Na Amazônia, entre 1997 e 2004, as análises feitas por alguns colegas mostram correlações fortíssimas entre apropriação das terras e conversão de florestas e também entre concentração fundiária e desmatamentos. Até aqui, estou, grosso modo, confirmando o que o Rodrigo diz.
Muitos, por isso, têm afirmado que o caminho para a solução do problema está, ao lado da regularização das terras, na concessão de grandes áreas de florestas públicas para a exploração, em regime de manejo sustentável, pela iniciativa privada. Sem entrar no mérito de se o tal “manejo sustentável” é possível, questão que aparentemente está mais no campo da religião que no da Ciência, tão incendiado é o debate, eu acredito que o rumo correto é esse mesmo.
Não se pode deixar de notar, entretanto, que há muitas pessoas sérias que objetam à Lei de Concessões Florestais, proposta pelo Ministério do Meio Ambiente, e sancionada hoje por “Nosso Guia”. Marc Dourojeanni, ex-BID, é um deles. Marcos Sá Correa é outro. Aziz Ab’Saber, Geógrafo e professor emérito da USP, engrossa a fileira, fechada por meu pai, o jornalista Washington Novaes, que já escreveu algumas vezes em sua coluna semanal no Estadão sobre o assunto.
Entre os principais e mais fortes argumentos contrários está o fracasso de experiências semelhantes em outros países tropicais, bem como a pergunta óbvia de como o Estado fiscalizará e monitorará esses empreendimentos, assegurando um manejo sustentável.
Penso que o principal argumento a favor é o de que, em princípio, além de cuidarem de suas áreas, impedindo sua apropriação e uso degradante, as empresas concessionárias serão as maiores interessadas em impedir a concorrência predatória da exploração ilegal, o que compensa, em alguma medida, a inépcia do Estado.
Entretanto, nada assegura plenamente a eficácia dos mecanismos de mercado para levar a esse manejo sustentável pelos agentes privados, bem como para dar conta de muitos dos problemas ambientais. Essencialmente porque está em jogo um problema intergeracional, ligado ao quanto o futuro interfere nas decisões dos agentes privados no presente. E aqui, a crescente escassez de commodities como a madeira é estímulo forte para altas taxas de desconto do futuro. É claro, por outro lado, que se afirmamos uma fé na tecnologia tão cega quanto a que se deposita nos mercados, sempre haverá solução para a escassez. Mas essa fé na inevitabilidade das inovações tem pouco de Ciência e muito de religião.
Além disso, as taxas de exploração sustentável são passíveis de controvérsia. A ciência não tem consenso sobre o tema. Conseqüentemente, o previsível escasseamento da madeira e a incerteza científica, somados à inépcia do Estado, indicam possíveis taxas elevadas de desconto para o retorno futuro da atividade e, conseqüentemente, a possibilidade de uma exploração predatória legalizada no presente.
O principal mecanismo econômico para mudar o panorama de degradação ambiental está na estrutura tributária. Aliada à criação de mercados, em muitos casos (o que equivale a alocar direitos de propriedade onde não existem), uma reforma tributária “verde” é o principal caminho para a sustentabilidade ecológica (em essência, reduzir drasticamente a tributação sobre o capital e o trabalho, estimulando a produção e empregos, e taxar de forma muito mais pesada o uso de recursos naturais). Isso, entretanto, fica para um próximo post, e para gente mais gabaritada, como o professor José Eli da Veiga.
Em resumo, aparentemente, apesar dos argumentos em contrário, essas concessões parecem uma peça importante para ajudar a mudar o panorama amazônico, mas a questão não pode ser vista através de uma chave simplista. Especialmente porque a degradação ambiental e, especificamente, o desflorestamento não se resumem a um problema de direitos de propriedade mal definidos ou não definidos, embora isso seja evidentemente parte fundamental do problema. O Cerrado brasileiro, por exemplo, é uma região com direitos de propriedade muito claramente definidos há algumas décadas e, precisamente também por isso, continuamos desmatando-o de maneira insana, no embalo dos preços das commodities. A questão se complexifica e há aqui que se construir outros tipos de incentivo, como os tributários.
Por fim, é preciso também não simplificar a questão indígena, sobretudo em sua interface com essa complexa questão do desmatamento. Começando por não confundir ianomâmis e cintas-larga, caiapós, xavantes etc. Aqui, mais uma vez, parece que, ou simplificamos tudo – demônios ou bons selvagens -, igualando mais de 200 etnias, ou não conseguimos entender a questão.
Em primeiro lugar, há também vários estudos que mostram a importância e eficácia das terras indígenas na proteção à floresta. Aliás, nem é preciso ver estudo algum, basta pegar uma imagem de satélite e olhar onde para o desmatamento, por exemplo, no Mato Grosso, se não precisamente nas bordas do Parque Indígena do Xingu. E o mesmo ocorre em muitas outras áreas, via de regra mais eficazes na proteção à floresta que as unidades de conservação em mãos do Estado.
Isso ocorre precisamente porque se definiram claros direitos de propriedade sobre aquelas terras, e os índios, com alguma – embora pouca – ajuda do Estado, os defendem com unhas e dentes. E eles preservam a floresta porque dependem dos recursos naturais para sobreviverem, justamente por não terem como, nem desejarem, em geral, substituir o que a natureza lhes provê por produtos nos mercados. Além disso, suas tradições asseguram pouco ou nenhum aumento da densidade demográfica
Com os incentivos adequados, os índios e seus modos de vida são aliados da conservação, entre eles os ianomâmi, em cujas terras a única mineração existente é aquela feita por garimpeiros invasores, diferentemente do que afirma o Rodrigo, e se desconhece a existência de caminhonetes. Ele, na verdade, provavelmente se referia ao caso dos Cinta-Larga, cerca de dois mil quilômetros mais ao sul, em Rondônia.
Por outro lado, não se pode também ter uma visão pueril do assunto, simplificando-o na outra direção, a do “bom selvagem”. O caso da mineração entre os Cinta-Larga, da extração de madeira entre os Caiapó, no Pará, e, mais recente, da ameaça da soja entre alguns grupos xinguanos estimulados por este prócer do empresariado nacional que é o governador Blairo Maggi mostram isso.
É evidente que as culturas mudam e que eles absorverão elementos da nossa cultura. E isso não é necessariamente mau. Sempre enfatizo: o objetivo é ajudá-los a conquistar autonomia. Eles têm que poder escolher o que desejam para si. Não podemos tutelá-los, fazendo suas escolhas, nem tampouco permitir que sejam tangidos pelas circunstâncias para a não-escolha única de se tornarem “brancos”. Situações trágicas como a dos Cinta-Larga são precisamente resultado de um contexto de ausência de autonomia aliado a brancos de pouco caráter. Esse caldo gera índios de mau caráter, merdas históricas como a do massacre dos garimpeiros em Rondônia e caciques apelidados “Fernandinho Beira-Mar” andando em caminhonetes Nissan.
Gozado também que os fundamentalistas dos mercados gostem sempre de alardear a importância dos direitos individuais, sobretudo o de propriedade – aliás, como eu. Temos aí mais um ponto em comum. Mas, em geral, quando falamos de índios, essas idéias, num passe de mágica desaparecem. Não tem nada de errado o Estado, em nome de sei lá o que, inclusive de abrir espaços para a maravilhosa mão invisível, tomar as terras que são deles por direito! Isso é difícil de entender.
Enfim, a realidade é menos simples do que quer a esquerda, mas também mais complexa do que querem os fundamentalistas dos mercados.