blog do escritor yuri vieira e convidados...

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Mirante

Eles chamam esse lugar de mirante, mas eu confesso que nunca vi nada daqui. A cidade e as estrelas estão sempre encobertas por nuvens, ou distantes demais pr’eu distinguir uma coisa da outra. Eu só vejo os carros parados ao meu lado e seus faróis cortando a neblina. Lígia me disse que já viu até estrela cadente, mas isso bem que pode ser coisa da cabeça dela. Mulher sempre tem uma necessidade de fantasiar, de enxergar alguma coisa mística e melosa onde existe apenas a mecânica previsível da vida na sua repetição morosa e cansativa. Ela, por exemplo, não tem mulher mais previsível. Eu sabia que ela só ia me dar depois que eu falasse em casamento, eu sabia que os boquetes e punhetas seriam só no início, para garantir o compromisso. Depois que ela se sentisse segura, a coisa ia virar um feijão-com-arroz tão maçante que eu só não terminaria porque o comodismo quase sempre acaba falando mais alto que a paixão. O comodismo é lento, mecânico, repetitivo, ele não liga de ficar dez anos fazendo a mesma coisa. Ele nos ganha pela paciência. Quando eu reclamo da Lígia, acho que no fundo estou reclamando é dessa mesmice em que ela acabou me trancando. Casa, faculdade, festa, casa da sogra, casa, faculdade. Todo mundo sempre falando as mesmas frases, rindo das mesmas piadas, reclamando das mesmas coisinhas que eles podiam mudar a qualquer momento, e não mudam porque não querem. Eu sinto que tudo isso veio dela. Se não fosse a sua enorme necessidade de fazer tudo sempre igual, sua ambição convicta por casamento, cachorro e casa de praia, talvez eu estivesse em outro mundo, mais brilhante e gostoso, mais excitante, mais ameaçador, talvez; mas um lugar onde eu certamente me sentiria mais vivo. Quando eu quero transar no estacionamento do shopping, quando eu quero gozar na boca ou nos peitos, quando eu insisto para ela me masturbar no banheiro de uma festa qualquer, acho que no fundo eu quero apenas protestar contra essa mesmice. Quero que ela entenda que não suporto essa rotina. Não quero passar a vida trabalhando para esperar as férias e comendo minha mulher para matar o desejo que eu sinto por outra.

Acho que era nisso que eu pensava naquela noite, quando vi o casal no carro ao lado. Eu buscava alguma coisa que nos libertasse, a mim e à Lígia, dessa vidinha rasa, desse feijão com arroz que além de tudo é sem tempero. Eu reparei que ela também estava olhando para eles e isso me excitou de uma forma inesperada e estranha. Eu fiquei me perguntando se Lígia teria vontade de transar com outro cara, de saber como é o sexo com outro corpo, outro cheiro, outro pau. Por um lado isso me excitava, porque, se fosse verdade, ela pelo menos não seria a garota tão certinha e maçante que eu pensava ser. Haveria na alma dela algum gosto pela transgressão, pelo diferente, pelo novo. Por mais estranho que isso possa parecer, acho que eu ia gostar mais dela se descobrisse isso. Mas por outro lado, não deixo de confessar que senti certo medo. E se ela gostasse de trair? E se começasse a fazer isso com freqüência, relegando nosso namoro a segundo ou terceiro plano? Isso me daria liberdade para trair também, mas eu gostava de transar com Lígia, gostava da sua pele lisa, do seu cheiro forte e acanelado de morena. Não queria perdê-la. Fiquei olhando de soslaio para ela, e vi que ela não tirava o olho do casal. Meu medo e minha excitação aumentavam. O cara já estava tirando a roupa da garota, notei que ela também olhava para mim, não dava para saber se era de vergonha, ou se queria mesmo que eu os visse — talvez isso a excitasse. Tirei também a roupa de Lígia. Ela, sem-graça como sempre, ficou reclamando que alguém poderia ver. Procurei fazer algum barulho para que o casal nos visse. Eles a princípio pareceram não notar, depois a garota falou alguma coisa no ouvido do cara, e ele olhou para o nosso lado. Quando viu Lígia semi-nua, seus olhos brilharam. Lígia é alta, bonita, tem os cabelos longos e lisos que essas meninas pagam muito para ter. Seu rosto afinado e seus olhos pequenos contrastam com uma boca carnuda e bem desenhada. Como se não bastasse, é naturalmente magra, não precisa comprar revistas sobre dieta e malhação. Enfim, uma mulher que meu dinheiro podia pagar (não é hora de falar da importadora de papai, mas sei o quanto isso me ajuda com as mulheres). Senti que o sujeito ficou fascinado ao olhar para ela, seus peitos redondos e brancos refletindo a luz alaranjada de vapor de sódio. Senti também a pontada de ciúme. Olhei para a namorada dele, e ela me encarou com um olhar agressivo, desafiador. O cara, por sua vez, fez um sinal com os punhos fechados, como se dissesse “Fode logo, rapaz. Fode essa menina que eu quero ver”. Olhei para Lígia, ela tinha cruzado as mãos sobre os peitos, estava assustada, mas pressenti certa excitação no jeito fixo com que ela olhava o rapaz. Ele também a olhava, e a namorada dele me encarava com aquele olhar desafiador. De repente percebi o que eu tinha que fazer. Eu sabia que Lígia ia me criticar até o fim, mesmo que ela gostasse, nunca iria admitir. Mas eu estava decidido, não dava para voltar atrás. Além disso no fundo eu sentia que Lígia e eu tínhamos de passar por aquilo de qualquer jeito. Se não fosse daquela vez seria outra. Então que viesse logo, que enfrentássemos o desconhecido que não encontramos na casa da sogra e nas festas de natal.

Iceman

Na internet ninguém tem filhos, nem estrias, nem cicatriz de cesariana. Eu também era apenas um nome bonitinho — Iceman —, algo que sugeria vagamente meu desprezo pelo mundo, mas não delatava minha barriguinha, minhas pernas magras e os comprimidos contra calvície. Quando nos encontramos é claro que isso veio à tona, e ela pensou em acabar tudo, pegando meu telefone e prometendo ligar qualquer dia. Mas eu era advogado, tinha um Audi e pagaria sem dificuldade uma pousada em Cabo Frio ou Búzios. Ela costumava sair com jovens bonitos, que esbanjavam cabelo e bíceps, mas eles viviam de pequenas pontas em novelas e eventos, tinham no máximo um Pálio, e não persistiam quando descobriam o garoto. Por isso ela teve uma pequena vertigem quando insisti em pagar a conta. Estava ao mesmo tempo revendo seus conceitos de homem ideal e se perguntando qual seria a melhor hora para falar em Daniel — se antes ou depois da primeira foda. Decidiu que depois era melhor, assim já teria me mostrado aquelas habilidades especiais que ela não aprendera na escola — nem com os pais — e justamente por isso considerava seu poder mais autêntico e confiável. Foi aliás lembrando desse poder que ela encontrou segurança para já falar em como gostava de Cabo Frio e seu mar calmo e esverdeado. Eu, que nunca dei a mínima para praia, afirmei terminantemente que amava Cabo Frio e seu mar calmo e esverdeado. Eu amaria o mar, a areia e até as palmeiras de qualquer lugar se a mulher que me acompanhasse tivesse a delicadeza de me dar, em troca da viagem, o merecido deleite sexual. Ela era jovem e muito bonita — a cicatriz de cesariana era insuspeitável naquele momento — e me parecia que a troca valeira a pena.

De fato valeu. Uma pequena cicatriz não faz diferença nesses momentos, a não ser pela interrogação que suscita. Ela me falou de Daniel, da pertinácia da sua bronquite e do seu desprezo inabalável a tudo que não estivesse diretamente ligado a jogos de computador. Falou das intermináveis horas-extras que ela fez para pagar o cursinho de inglês, enquanto ele matava aula para freqüentar uma lanhouse. Para arrematar, acrescentou que o estado precisava buscar mecanismos mais eficientes de controlar os jovens, antes que eles se tornassem marginais, drogados e pais solteiros. Como toda brasileira, ela achava que qualquer problema devia ser de alguma forma resolvido pelo estado, cabendo aos cidadãos apenas o dever imprescindível de ir à praia e ver televisão.

Não foi difícil perceber que aquele menino era a chave para dominá-la. Se eu me aproximasse do garoto, se o fizesse repetir algumas frases em inglês, se conseguisse convencê-lo da utilidade de ter um maldito diploma, ela se apegaria tanto a mim, desejaria tanto a minha permanência na sua vida, que talvez chegasse até mesmo a sentir algum prazer quando estivesse me chupando. Foi por isso que decidi comprar o playstation no natal; foi por isso que mencionei o fato de os fabricantes de games serem formados numa faculdade chamada “ciência da computação”; e foi ainda por isso que paguei a conta do oculista e os óculos ridículos que davam o contorno definitivo daquela cara de néscio.

E foi assim que eu vivi o delicioso prazer de ter razão. Valéria me amou intensamente, suportou bravamente meus gritos e momentos de cólera, me chupou algumas vezes na sala, quando o rapaz estava trancado no quarto, cantando alguma gordinha pelo msn. Pensei várias vezes em abandoná-la, mas descobri que de vez em quando eu também gostava da sua companhia. Ela era a única namorada de quem eu não precisava esconder as garrafas de Red Label. Ela foi a única que ficou comigo depois que os médicos me explicaram o que era pancreatite aguda.

O menino é que nunca me engoliu. Depois que se formou, arrumou um emprego numa multinacional, e disse que não queria mais nos ver. Explicou que gostava muito da mãe, só que não suportava sua condescendência com meu autoritatismo. Mas de vez em quando ele escreve pedindo algum dinheiro e Valéria se lembra de como ser carinhosa e usar uma lingerie. Acho que somos uma família.

J. Toledo se despede

O escritor e artista plástico paulista J. Toledo, com quem costumava conversar ao telefone menos do que deveria, faleceu sábado passado. Eu o conheci quando eu ainda morava com a escritora Hilda Hilst, na Casa do Sol (1998-2000). Naquela época, falávamos quase todas as manhãs. Cheguei inclusive a contribuir com alguns dos verbetes de seu Dicionário de Suicidas Ilustres, editado pela Record. (Ele também publicou livros de crônicas e uma biografia sobre o artista plástico Flávio de Carvalho, a quem conheceu, e que traz um prefácio de Jorge Amado.) Toledo era um amigo extremamente atencioso e tinha um excelente senso de humor. Aliás, como costumo dizer, ele ainda o é e ainda o tem. Está vivo em algum lugar, dando risadas com a Hilda.

Logo mais colocarei em meu podcast uma gravação que fizemos juntos por telefone. Nada de mais, apenas para dar uma idéia de sua personalidade.

Vaya con Dios, hermano!

O blog do Fernando Meirelles

O Pedro Novaes me enviou o link do blog Blindness, uma espécie de “diário de viagem” do diretor Fernando Meirelles pelas entranhas da produção de seu filme mais recente, uma adaptação do romance do José Saramago, Ensaio sobre a Cegueira. Em geral, quando leio textos de pretensos diretores de cinema, me lembro daquela sentença do Fernando Pessoa na boca de Bernardo Soares: “Ofende-me o entendimento que um homem seja capaz de dominar o Diabo e não seja capaz de dominar a língua portuguesa”. Aqui, Pessoa se referia a um livro sobre ocultismo pessimamente escrito. Mas fico particularmente irritado quando alguém tenta dominar o diabo da técnica cinematográfica sem antes dominar a escrita. O Fernando Meirelles prova que não é um desses: o cara manda bem.

Para quem tem interesse nos bastidores de uma produção cinematográfica, para quem trabalha ou quer trabalhar com cinema, o blog é uma mão na roda. Aliás, uma amiga que trabalhou durante dois anos na produtora O2 me disse que, lá, o Meirelles é visto como uma espécie de guru interno. Já um de seus sócios, segundo ela, é o mauzão da área. (Parece que as demais sócias são mulheres.) Ao fim e ao cabo, os caras são espertos e sabem que não são apenas as duplas policiais que devem ter um cara que bate e um que fala manso. Cinema também é diligência.

Com relação a diretores que sabem escrever, sugiro ainda os livros/textos de Andrei Tarkovsky, Andrzej Wajda, Glauber Rocha e François Truffaut.

Provincianismo

Do blog do Martim Vasques:

Segundo T.S. Eliot, ser “provinciano” não significa “não possuir a cultura ou o requinte da capital”, muito menos ser “estreito no pensamento, na cultura e no credo”. É algo além – e muito mais trágico para a cultura de uma nação que se pretenda saudável. Refere-se “também a uma distorção de valores, à exclusão de alguns, ao exagero de outros, que resulta, não de uma falta de ampla circunscrição geográfica, mas da aplicação de padrões adquiridos dentro de uma área restrita, para a totalidade da experiência humana, que confundem o contingente com o essencial, o efêmero com o permanente. Em nossa época, quando os homens parecem mais do que propensos a confundir sabedoria com conhecimento, e conhecimento com informação, e a tentar resolver problemas da vida em termos de engenharia, começa a emergir na existência uma nova espécie de provincianismo que talvez mereça um novo nome. É um provincianismo, não de espaço, mas de tempo, aquele para o qual a história é simplesmente a crônica dos projetos humanos que têm estado a serviço de suas reviravoltas e que foram reduzidos à sucata, aquele para o qual o mundo constitui a propriedade exclusiva dos vivos, a propriedade da qual os mortos não partilham. A ameaça dessa espécie de provincianismo é que podemos todos, todos os povos do mundo, ser provincianos juntos; e aqueles que não estiverem satisfeitos podem apenas tornar-se eremitas” (ELIOT, T.S. “O que é um clássico”, in: De Poesia e Poetas, págs. 96-97).

Joana D´arc

Joana D´arc - Jules Michelet

Quem estiver com o tempo livre e com algum sobrando eu gostaria de indicar um livro. Não porque a personagem é uma das principais figuras da história francesa, nem porque fui eu quem escreveu a introdução. Indico porque é uma boa leitura e uma excelente oportunidade de penetrar no universo do genial Michelet.

Até mesmo seus exageros são extraordinários. Michelet é o primeiro historiador a desenvolver um método de compreensão da história a partir do modo de vida das pessoas, buscando a ressurreição total de uma época na compreensão de fatos ou personagens até então desconsiderados pela historiografia clássica. A edição é muito bem cuidada, a tradução é excelente e a introdução não comete nenhum grande pecado. Leiam.

Fidelidade

Hoje eu sei que aquilo se chamava barriga. Mas na época, mesmo que conhecesse a palavra, talvez eu preferisse não usá-la. Não seria exato falar em “dor de barriga”. A sensação nascia no centro mesmo do meu ser e se irradiava pelo corpo, com tal velocidade, que eu me debatia, esticava as mãos e gritava, mesmo antes de distinguir o que eram mãos, braços, pernas, laringe e cordas vocais. Eu era um corpo vibrátil, quase um fluido. Qualquer ponto estimulado levava instantaneamente à resposta de algum outro ponto distante e insuspeitado. Lembro, por exemplo, que um tipo particular de excitação nas minhas extremidades inferiores causava um som suave e ritmado que eu já quase identificava como riso. Pequenos toques na minha cabeça e na sobrancelha me faziam relaxar e ter vontade de fechar os olhos. Sons agudos na minha direção me deixavam atento e silencioso, com um pouco de medo. Às vezes minha respiração era interrompida e, mesmo que não quisesse, eu era forçado a fechar os olhos, porque minha boca crescia de forma a quase não caber no rosto: era um bocejo. Também acontecia de minhas nádegas vibrarem e eu me livrar de uma pressão incômoda e insistente logo abaixo do peito.

Mas naquele dia, minhas nádegas não vibraram. Alguma coisa atrás do meu umbigo exigia uma atenção urgente e decisiva. Sem saber o que fazer, eu me remexia e emitia os sons que me pareciam melhor traduzir aquela urgência.

Até que alguém soube me compreender. Senti primeiro um certo calor envolvendo minha pele, depois uma voz suave e constante que indicava a presença de uma pessoa humana e caridosa. Meus lábios identificaram alguma coisa quente e pontuda, um objeto nítido, consistente, seguro, que eu mordi com convicção, ou simplesmente pressionei entre os lábios, já que não tinha dentes. O líquido veio quente, abundante e grosso. Eu não tinha dificuldade em engolir, depois que um tantinho fazia volume na minha boca. Aquele ato de alguma forma já estava em mim, e eu apenas o descobria silenciosamente. Eu me entregava confiante, como um peixe se entrega à enormidade plácida e invencível da água. Meu corpo foi aos poucos sossegando e fui compreendendo os conceitos que mais tarde se traduziriam em prazer, satisfação, felicidade. Abri os olhos e vi um rosto humano, arredondado, os olhos nítidos e serenos, brilhando por trás da sombra dos cabelos. Intuí que aquilo era uma espécie de música angelical, a sensação mais sagrada que eu teria nesta vida. Então, sem hesitar um mínimo segundo, eu jurei, prometi silenciosamente, sem tirar os olhos dela, que nunca na minha vida, nem que eu vivesse cem anos, nem que eu voltasse à infância, nem que eu descobrisse uma alma imortal e vivesse eternamente, eu nunca na minha vida tomaria o leite de outra.

No que tange a mulheres, foi de fato o único juramento que nunca quebrei.

Joel Silveira

Para muitos e muitos, é considerado o maior repórter brasileiro. Da Caros Amigos:

Joel Silveira, o repórter dos presidentes, morreu no último 15 de agosto, aos 88 anos. “A víbora” , como era conhecido, viveu a história de perto, denunciava os medíocres e marcou o jornalismo. Releia entrevista concedida para a Caros Amigos em abril de 2000. Vale a a pena ler de novo!

Admirável Mundo Novo no teatro

Eis uma matéria no Correio Brasiliense sobre a peça que estou adaptando com a diretora teatral Miriam VirnaAdmirável Ainda – a partir do romance Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. Hoje, em Brasília, rolará a primeira leitura pública.

Um mergulho aristotélico-stanislavskiano

Trecho de mais um artigo imprescindível, Quando a alma é pequena:

“(…) Esse medo, por sua vez, revela-se da maneira mais inconfundível na literatura de ficção nacional. Repassando mentalmente as produções maiores da nossa criação romanesca – índice seguro da imaginação das classes letradas –, o que me chama a atenção em primeiro lugar é a falta absoluta de problemas, de enigmas, de perplexidades. O romancista brasileiro limita-se a retratar situações vistas segundo a ótica de uma filosofia ou ideologia preexistente, de modo que tudo no fim parece óbvio e explicado. Não estou falando de escritores ruins, mas justamente dos melhores. Tomem o excelente Graciliano Ramos no mais bem sucedido dos seu livros, São Bernardo , no mais popular, Vidas Secas , ou no mais ambicioso, Angústia . O que se vê nos dois primeiros são equações de sociologia desenvolvidas com a lógica de uma demonstração matemática, a condição de classe dos personagens determinando suas escolhas e produzindo inevitavelmente o destino correspondente: o senhor de terras age como um senhor de terras, a professorinha como uma professorinha, o camponês diante da autoridade como um camponês diante da autoridade. É tudo muito bem observado, muito bem construído, mas não suscita um único “por que?”. No terceiro romance a fórmula parece complicar-se um pouco mediante a introdução de elementos de psicopatologia, mas no cômputo final estes se somam aos dados sociológicos e explicam tudo. Ninguém nega que esses livros sejam obras-primas à sua maneira, mas, se eles nos ensinam algo sobre a vida brasileira e algo sobre como se escreve um romance, não abrem nossa inteligência para nenhuma questão que ali já não esteja de algum modo respondida. Não têm a força fecundante da grande arte literária. O mesmo pode-se dizer de quase toda a produção de Raul Pompéia, José Lins do Rego, Jorge Amado, Lima Barreto, Guimarães Rosa, José J. Veiga, Antônio Callado, Herberto Sales, Josué Montello e outros tantos.

“Você não pode ler o teatro grego, Shakespeare ou Dostoiévski sem perceber que ali se encontra algo de perfeitamente real e ao mesmo tempo inexplicável, lógico e ao mesmo tempo absurdo. Os ensaios de interpretação podem se multiplicar ao longo dos séculos sem jamais dar conta do mistério. A grande literatura de ficção mostra-nos como é a vida humana, mas não pode nos explicar o porquê. Para fazê-lo, teria de subir um grau na escala de abstração, tornando-se análise e teoria, abandonando portanto a contemplação da vida concreta, que é o seu terreno específico. Mesmo os romances mais complexos do século XX, que incorporam elementos de análise filosófica, como A Montanha Mágica de Thomas Mann, Os Sonâmbulos de Hermann Broch, O Homem Sem Qualidades de Robert Musil ou a trilogia de Jacob Wassermann ( O Processo Maurizius , Etzel Andesgast e A Terceira Existência de Joseph Kerkhoven ) não têm por resultado uma teoria explicativa mas a expressão formal concreta de um aglomerado de tensões sem solução. Daí o fascínio mágico que continuam exercendo sobre o leitor por mais que este, eventualmente filósofo ele próprio, se esmere em transformar o egnima em equação. A equação resolvida é sempre genérica, não esgota nunca a infinidade de sugestões embutidas na trama particular e concreta.

“Nada disso se observa em geral na ficção brasileira, uma literatura de segunda mão que nasce do recorte da experiência pelo molde de explicações previamente dadas. A análise das obras esgota rapidamente a problematicidade da sua cosmovisão, não sobrando outro enigma senão, é claro, o do talento individual que encontrou soluções tão boas para a transposição estética de uma vivência espiritual tão pobre.(…)”

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