Como você se sentiria se ganhasse pouco menos de dois mil reais por mês e ainda estivesse devendo quinhentos mil de IPTU? Eu, por exemplo, já estaria pirado, ou recebendo as visitas de sob a cama, ou caçando vereadores com estilingue. (Posso até ver suas testas cravejadas de mamonas embebidas em curare.) Sim, porque a situação seria muito surreal, digna de um conto do excelente José J. Veiga, com direito a cobradores astrais – daqueles que vêm nos cobrar nos sonhos – e Castelos gulaguianos para onde seriam enviados todos os kafkas inadimplentes. Claro, a não ser que você seja um especulador imobiliário profissional, tal dívida hipotética não passa de um absurdo… Mas eis que, ontem, meu amigo José Luis Mora Fuentes, escritor, que se divide entre seu apê, em São Paulo, e a Casa do Sol, chácara da escritora Hilda Hilst, me deu essa notícia chocante: a dívida de IPTU da Hilda já atingiu o lindo montante de R$500.000,00! Dá pra imaginar?

E o Zé Luis ainda me disse que, somando juros, multas e demais sangrias, a dívida seguirá aumentando num ritmo de cinqüenta mil reais ao ano! É como se o verdadeiro dono das terras da Hilda – herdadas de sua mãe – fosse o Estado e não ela, afinal, esse valor condiz mais com um aluguel do que com um tributo, né não? Até já estou vendo o xerife de Nottingham, altivo, em seu cavalo negro, indo arrancar algumas parcas moedas de prata das mãos da indefesa poeta. E o pior: agora que o Robin Hood é presidente tudo segue igual! A impressão que isso me dá é que o Estado de Direito já foi virado pelo avesso e, agora, a propriedade privada – ex-direito fundamental – passou a ser um palavrão terrível, um crime a ser purgado. Se não, me diga: qual outra saída há para a Hilda senão vender suas terras para pagar seu direito de possuí-las? Não é um disparate? É claro que o Mora Fuentes, amigo e, digamos, protetor da Hilda, já mobilizou alguns advogados tributaristas, mas não há dinheiro para pagá-los, e isto significa: as terras estão sendo loteadas e serão vendidas de uma forma ou de outra. Se você for um escritor e estiver planejando construir uma casa num local afastado, imaginando uma vida idílica de poesia e prosa, sem a chateação do ramerrão urbano, calcule bem: não vá viver próximo de cidade alguma, pois essas monstras crescem, emitem pseudópodes, engolem a natureza circundante, levando o IPTU pra dentro da sua horta. E pensar que uma vidente disse à Hilda que suas terras seriam usadas para alimentar as pessoas! Se em 2012, ano extremo do calendário Maya, não ocorrer nenhuma dessas catástrofes já tão previstas, essas que exigem plantio e colheita para a salvação comum, tal predição significará meramente o seguinte: suas terras, madame Hildá, serão transformadas em tributos ao Fome Zero, vão alimentar um par de famintos reais e inúmeros leitões burocratas, todos presos às tetas do Estado. Nas palavras da própria Hilda:

Amada vida, minha morte demora.
Dizer que coisa ao homem,
Propor que viagem? Reis, ministros
E todos vós, políticos,
Que palavra
Além de ouro e treva
Fica em vossos ouvidos?
Além de vossa RAPACIDADE
O que sabeis
Da alma dos homens?
Ouro, conquista, lucro, logro
E os nossos olhos
E o sangue das gentes
E a vida dos homens

Entre os vossos dentes.

[Ouvindo: Babaji – Supertramp]