Sempre achei a amizade uma tonalidade afetiva ambígüa. Há uma polifonia semântica no termo que me exaspera. Se, por exemplo, assumo uma perspectiva social, a amizade – como disse Aristóteles – é uma espécie de argamassa das relações entre os indivíduos. Uma relação orientada a fins e determinada por afinidades socialmente relevantes como a coragem ou a justiça, mas que nada tem a ver com a comunicação entre espíritos. Não há vestígio algum daquele arrebatamento pelo outro de que fala o Pedro Novaes. Esse tipo de coisa, esse estar “face a face” com a alteridade, só consigo vê-lo quanto assumo a perspectiva privada, individual. Aí sim, amizades são eletivas, arrebatadoras e desinteressadas.

Mas eu fico a me perguntar: o que é esse outro que encontro na amizade? Conhecemos os outros através do mundo – ou melhor, intermediados pelo mundo. O amigo nos vem ao encontro como algo dado no mundo. Diria Levinas, através da totalidade. Para Levinas totalidade é pensamento. Pensar, estar consciente de si, não é outra coisa do que diferenciar o externo do interno, o mundo objetivo do subjetivo. Logo, o amigo nos vem como algo diferente de nós, contudo o indentificamos – talvez o próprio fundamento do que normalmente chamamos amizade – pelas semelhanças, por aquilo que lhe é menos próprio e, talvez, mais próprio a nós. Escolhemos os amigos pelas semelhanças e não pelas diferenças. É a teoria do espelho: ao ver uma amigo, vejo-me nele.

Mas o outro não cabe nesse esquema (daí o que eu acho o melhor no que diz o Pedro). O outro, a alteridade radical é o contrário da totalidade. Na fórmula do Levinas, “o rosto do outro é um enigma. O rosto do outro nos apela”. O espelho deveria ser opaco, isto é, devemos respeitar no outro exatamente sua alteridade, seu esforço para não ser conhecido ou reconhecido como algo parecido comigo. A alteridade nos escapa e sempre escapará. Daí que não podendo compreender – uma ação racional, que tente a submeter o outro, em sua singularidade, à totalidade do mundo – deve-se aceitar o outro como um milagre. Em outras palavras, diante do outro, da alteridade, somos arrebatados pelo divino, pelo absolutamente transcendente. Eis porque a amizade e o amor são caminhoa para se chegar a Deus: porque todas só existem a partir de uma aceitação desinteressada do outro. O grande enigma de Deus não é a natureza, não é porque ocorrem os tsunamis. Bem mais simples, Deus está na face do outro como um enigma indecifrável. Como se ele fosse, na verdade, outro.