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Anarco-indigenismo

Vamos voltar ao tema suscitado pelo Paulo ali embaixo com seu amigo David D. Friedman. Eu li alguns dos textos do cara e até achei legais, mas todos, sem exceção, são uma elocubração teórica só. Coisa típica de economista, embora ele não seja um.

E, não se enganem comigo, eu adoro Economia. No meu trabalho acadêmico e sobre políticas públicas, grande parte das minhas referências vem de economistas que eu admiro muito, como, do lado da Economia das Instituições, o Prêmio Nobel Douglass North, e, nos estudos do desenvolvimento, outro Nobel, o indiano Amartya Sen (aliás, motivo de grande revolta contra o Microsoft Word, que insiste em sempre corrigir automaticamente o nome dele para “Sem”).

Meu propósito é tentar chegar exatamente ao que nos une e desune aqui nesse blog em relação à sociedade ideal. Acho que isso é importante porque esses pontos de discordância estão exatamente ao redor de alguns dos grandes nós da modernidade.

O Friedman se autodenomina um “libertário” e/ou “anarco-capitalista”, algo que, confesso, eu nem sabia que existia até esse post do Paulo. Aliás, quando li seu título – “Anarco-liberalismo” – eu ri, pois achei que o Paulo tinha feito uma ironia muito fina, mas depois descobri que a coisa era séria.

Basicamente, trata-se da idéia de que os mercados e a livre competição são a melhor solução para tudo, até mesmo para propiciar bens e serviços que, aparentemente, por sua natureza, teriam inescapavalmente que ser providos por um Estado, como, por exemplo, o cumprimento das leis. Em última instância, entendem que o Estado é um equívoco, o grande estorvo, e que devemos caminhar para sua redução drástica ou eliminação, deixando que a mão invisível resolva tudo. É o pensamento liberal levado às últimas conseqüências.

Ali embaixo, eu disse que o que diferencia esse camarada dos genuínos anarquistas, herdeiros das idéias de Kropotkin e Bakunin, são duas coisas. Primeiro, ele não pretende abolir a propriedade privada. Ao contrário, um anarco-capitalista a entende quase como “natural” e, dentro de um sistema capitalista, como parte fundamental da equação pela qual os mercados resolvem tudo. Segundo, há uma outra diferença mais profunda, de visão a respeito do ser humano.

Enquanto os anarquistas de mercado crêem que o ser humano é inelutavelmente individualista e competitivo, os anarquistas, no sentido original do termo, acreditam na cooperação e na solidariedade como pedra fundamental da sociedade. O hedonismo reinante, para estes últimos, é apenas uma face de um momento histórico e da própria lógica do capitalismo. Ele é criado pelo capitalismo – e não um solo natural onde este viceja.

Todos concordamos que o Estado é a grande tragédia, base e centro de toda a porcaria. Portanto, não vamos nem falar sobre ele. Vamos começar pela primeira questão – a da propriedade privada.

O Paulo respondeu a meu post “Libertários vs. Libertários” dizendo o seguinte:

“A sociedade pode resolver seus problemas sem a necessidade de um governo! Mas há de haver a propriedade privada, de terra, de dinheiro, de roupas, de qualquer coisa, se não para que se esforçar? Para que criar? Você tem o sonho totalitarista de um mundo composto somente por filósofos, que não ligam para o mundo material? É a moral que impede o homem de se matar, o capitalismo é só a ferramenta de produção!”

Primeiro, Paulo, cuidado com a retórica. Eu não sei se o meu sonho é isso aí que você pergunta, mas eu não entendo o que a idéia de um mundo de pessoas que não ligam para valores materiais tem de totalitarista. Sério. Totalitarismo é outra coisa – controle das pessoas pelo Estado, especialmente a partir da invasão total e, em última instância, aniquilação da esfera privada. Isso é totalitarismo. Por isso, não entendi essa relação que você fez.

Mas, retóricas à parte, mano, o que interessa é que você entende que a propriedade privada é um estímulo necessário para que as pessoas produzam. Beleza. É uma boa afirmação, para a qual evidentemente podemos oferecer muita evidência empírica.

Acontece, entretanto, que eu tenho a sorte de ter sempre convivido muito próximo a índios e de ter grandes amigos entre eles. E a evidência que os modos de vida deles nos oferecem é sempre excelente para questionarmos nossa visão das coisas porque tudo é radicalmente diferente de nós. Não é à toa que os estejamos exterminando há cinco séculos.

Ora, eles vivem sem propriedade privada e são humanos. Logo, para mim, é questão de lógica simples: está dentro do nosso escopo de possibilidades sermos felizes sem ela, vivermos sem acumular bens e dentro de uma lógica de cooperação que, no caso deles, está inscrita no DNA da sociedade, que são as tradições, simbolizadas em mitos, etc.

Aliás, acho lapidar o título do livro do genial antropólogo francês Pierre Clastres, “A sociedade contra o Estado”. Apedrejadésimo pela Antropologia Marxista em sua época, essa é sua definição das sociedades indígenas. No mais íntimo de sua constituição, no seu DNA, elas são engendradas para impedir a todo custo o surgimento, em seu seio, da desigualdade social, de dominantes e dominados. Por isso, são sociedades contra o Estado.

Os índios, para mim, nos obrigam a descartar a própria idéia de uma “natureza humana” como conceito útil de trabalho. A natureza humana é do tamanho do universo. É tudo. E, se é tudo, não é nada. Não adianta lançarmos mão dela para entendermos as coisas.

Por fim, para concluir, eu não estou dizendo que temos todos que virar índios, até porque não teríamos competência. Entre os índios e a nossa loucura há literalmente infinitas possibilidades de sociedade, de formas de nos relacionarmos uns com os outros e com a natureza. E eu continuo achando esse tal de capitalismo tremendamente empobrecedor, no sentido material e espiritual.

E o anarco-liberalismo e, como de resto, todos os que acreditam no capitalismo e criticam o Estado, separa demais as coisas. O capitalismo e este Estado corrupto são uma coisa só. Não há um sem o outro.

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1 Comment

  1. claudio

    li muito na diagonal mas gostei. por que? bom, primeiro porque um dos livros que mais me influenciou foi o The Machinery of Freedom de David Friedman e, sim, sou mais libertário do que pareço. Por outro lado, eu também gosto de Douglass North. Finalmente, custou a aparecer uma discussão em português nesta web brazuca sobre temas assim, com esta qualidade (vou ler com calma, mas pelo que conheço deste blog, não deve ser coisa ruim).

    valeu por lavar minha alma fazendo tupiniquins pronunciarem palavras novas com o significado correto.

    claudio

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