Acabo de ler Os Cus de Judas, obra que escolhi para me introduzir no universo denso de António Lobo Antunes. Para quem ainda não o conhece, trata-se de premiadíssimo autor português de mais de 15 romances. Nascido em 1942, psiquiatra de formação, Lobo Antunes foi muito fortemente marcado por sua experiência como médico do exército português durante a Guerra Colonial em Angola, relatada de maneira visceral nesta obra de 1979 que o tornou internacionalmente conhecido.

Para mim, o paralelo estilístico mais próximo na literatura brasileira é o de Raduan Nassar, cujos Lavoura Arcaica e Um Copo de Cólera me parecem igualmente livros tão escritos com o estômago quanto este, impressionante na dureza de suas metáforas e imagens improváveis e inesperadas. No sentimento, lembra Julio Cortázar, sua mistura de angústia, cinismo e revolta contra a contenção e mansidão humanas, diante do infinito e da surda corrente, sempre prestes a explodir, subjacente a cada sorriso conformado.

“Luanda começou por ser um pobre cais sem majestade cujos armazéns ondulavam na humidade e no calor. A água assemelhava-se a creme solar turvo a luzir sobre pele suja e velha que cordas podres sulcavam de veias ao acaso. Negros desfocados no excesso de claridade trémula acocoravam-se em pequenos grupos, observando-nos com a distracção intemporal, ao mesmo tempo aguda e cega, que se encontra nas fotografias que mostram os olhos voltados para dentro de John Coltrane quando sopra no saxofone a sua doce amargura de anjo bêbedo, e eu imaginava adiante dos beiços grossos de cada um daqueles homens um trompete invisível, pronto a subir verticalmente no ar denso como as cordas dos faquires. Pássaros brancos e magros dissolviam-se nas palmeiras da baía ou nas casas de madeira da Ilha ao longe, submersas de arbustos e de insectos, nas quais putas cansadas por todos os homens sem ternura de Lisboa, ali vinham beber os últimos champanhes de gasosa, à maneira de baleias agonizantes ancoradas numa praia final, movendo de tempos a tempos as ancas ao ritmo de pasodoble de uma angústia indecifrável.”