Coluna do Alexandre Soares Silva publicada na Revista Semana 3, em julho de 2005 (todas as colunas dele nesta revista estão disponíveis aqui).
Esquerda? Direita? Muito pelo contrário!
Quando vejo alguém dizer que não é de esquerda nem de direita, tenho a mesma reação de quando encontro um carioca: olho para os pés dele em pânico, com medo que comece a sambar.
Não é justo, porque há cariocas que não sambam, e que têm menos malemolência e ginga (Jesus, ginga) que eu – ou mesmo que Ingmar Bergman num dia especialmente reflexivo. Da mesma forma, há quem diga que não é de esquerda nem de direita por motivos perfeitamente válidos, e que não são cabeças-ocas de forma alguma. Mesmo assim, quando encontro cariocas ou pessoas que se orgulham de não ser nem de esquerda nem de direita, minha reação é a de dar três passos para trás com medo de me ver no meio de um pagode. “Não sou nem de direita nem de esquerda, muito pelo contrário! Epa!” – e imediatamente levanta os dois indicadores em direção ao teto e começa a sambar.
Algumas pessoas têm bons motivos para não ser nem de esquerda nem de direita. Entre eles o melhor motivo é o de não se interessar por essas coisas. Ser infantil demais, alienado demais; demasiadamente desinteressado nos possíveis modos de exploração de manganês e bauxita, e realmente não querendo saber como o Estado ou as empresas se arranjam para fazer essas coisas. Estão certos, eu queria ser assim. Até sou, um pouco. É melhor dedicar a vida à leitura dos contos de Tchecov, ou à tentativa de ouvir cada som jamais produzido pela garganta de Dietrich Fischer-Dieskau. Essas pessoas têm toda a minha simpatia.
Assim também os cristãos que usam o “meu Reino não é deste mundo” como justificativa para não se interessar pelo caderno de política dos jornais: estão certos, estão certos. Para um cristão, dar uma sugestão sobre como o Estado deve se organizar é mais ou menos como um hóspede sugerir onde um quadro deve ser pendurado na casa em que está de visita: ele pode dar a sugestão, é claro, quando perguntado; mas nunca com muito empenho ou ênfase. Em outras palavras, um cristão pode ser de esquerda ou de direita, mas nunca muito empolgadamente. As questões de sua própria casa, no céu ou no inferno, geralmente o ocupam muito mais.
Essas são as boas razões para não ser nem de esquerda nem de direita: infantilidade, alienação, desinteresse; ou a melhor de todas, que não entra em conflito com as outras: um interesse maior em Outras Coisas. Mas sou muito mesquinho e costumo atribuir motivos mais tolos. Por mais que a esquerda diga o contrário, é muito pequeno o número de pessoas genuinamente alienadas no mundo – em toda a minha vida, acho que só conheci duas ou três. A leitura de editoriais é uma tentação tão grande quanto o jogo, a bebida, as drogas, as prostitutas. Não, é muito pior: não conheço muita gente viciada em jogo, bebida, drogas ou prostitutas, mas quase todo mundo que eu conheço tem um interessezinho meio doentio em política e atualidades. Quanto aos cristãos, são mais raros ainda, numa época em que o islamismo, o budismo, a wicca e o espiritismo recebem todo o respeito e na qual é muito mais fácil encontrar um tarô com motivos tirados dos índios sioux do que uma simples imagenzinha de santo.
De modo que quando encontro alguém que diz que não é de direita nem de esquerda, quase nunca acho que se trata dessa que é, afinal, a mais rara alma de todas, o Alienado Genuíno. Não, a minha experiência é que se trata de um tipo muito mais comum: alguém que se acha complexo demais para ser descrito de modo tão simplista. Esse é o seu orgulho, ser Complexo Demais Para Ser Rotulado. Ele tem opiniões políticas, e muitas. Ele se interessa pelo assunto: não está nem abaixo, nem acima dele. O que há é que ele acha que o conjunto das suas opiniões é tão pessoal, tão complexo, que Esquerda e Direita não fazem sentido para ele, e toda uma nova categoria deveria ser inventada para acomodá-lo.
Mas aposto uma coisa, no entanto: o Homem Complexo Demais, se é sincero, e se não nega que seja de esquerda ou de direita apenas por covardia ou estratégia, é alguém que simplesmente se conhece pouco, e que nunca parou para perceber que todas as suas opiniões apontam claramente ou para a esquerda, ou para a direita – e mais freqüentemente para a esquerda. Suas opiniões sobre o aborto, a eutanásia, a legalização das drogas, o papel do Estado na economia e a influência da religião na vida pública são exatamente aquelas atribuidas tradicionalmente à esquerda, ou pelo menos a maioria delas; mas de esquerda, ele? Nah, não, nunca.
Uma pequena parte da esquerda-que-nega-ser-esquerda faz isso conscientemente, por covardia ou por estratégia. Pretendendo estar livres para atacar os dois lados, atacam um lado com frequência e o outro uma vez a cada dois anos. Pretendendo estar sujeitos aos ataques dos dois lados, por serem supostamente independentes, na prática estão livres de qualquer ataque – jurando à esquerda que não são de direita e à direita que não são de esquerda.
Mas esses são poucos. A maior parte faz isso sem sequer perceber que é de esquerda. Essa é a Nova Esquerda, a Esquerda que Não é Esquerda. Como esquerda seriam atacáveis, mas como simples representantes do que consideram ser bons sentimentos, não são atacáveis de forma alguma. E cada vez que encontro um tipo desses, realmente tenho muito medo que ele comece a sambar de tanta alegria inzoneira.
(Publicado originalmente na edição 31, de junho de 2005, da revista Semana 3)
Jamila
Essa é uma visão bem tacanha da atual situação política mundial. Bem escrita, tenho que confessar, com argumentos sofisticadamente trabalhados.
É como aquele artista plástico que sempre desenhou, e faz isso com maestria. Dá vida às formas bidimensionais que rabisca com a caneta de nanquim.
Mas, sabe, a modernidade trouxe a tinta acrílica, com todas as suas nuances, com todas as tonalidades que vão muito além do preto e branco. Que vão além das cores primárias: magenta, amarelo e azul.
E a tecnologia foi mais além, trouxe colorações furta-cor, cítricas, filtros do Photoshop e iluminações que transcendem a palheta comum.
Nada disso tira o mérito do bom e velho artista, que adora desenhar e se apega até a última gota de tinta ao seu conhecido nanquim preto. É muito bonito mesmo, romântico, nostálgico. Só é meio ultrapassado e desbotadinho. Não é daltonismo não. É conservadorismo mesmo.
sunami chun
ainda bem que belas letras nem sempre significam belas ideias, quiçá, a humanidade sempre elegeu e elegerá o ultimo como de mais importancia….
Daria um taxidermista mediano, conseguiu qualificar todos que sao ceticos e defendem suas proprias ideias ou nao se jogam em idealismos, num grupo, a nova esquerda, qual será a evolucao disso?…..pena que nao se permite escutar pagode, tem uns muito bons e pena que generalizou demais todos as outras classes, inclusive os cristaos como evangélicos, poderia ganhar um 6 com seu salto triplo escarpado de humildade alem dos seus argumentos esteticamente adornados, da técnica, porém sem aquela presença de espírito que é fundamental numa prova qualificatória…onde será que ele se qualifica nessa míriade de preconceitos e visoes tao raras da humanidade? nao, claro, ele é apenas um critico-sensivel-artista, expondo as mazelas do mundo, qta sensibilidade por parte dele….
se me perguntassem de que lado eu sambo?
num sambo, danço onde toca música boa….
yuri vieira
Eu achei excelente o texto, principalmente no trecho em que ele fala da Jamila e do Pedro, isto é, dos que são Complexos Demais Para Serem Rotulados.
Quanto à parte sobre os cristãos, está incorreta, esta é a posição do gnosticismo, tais como os cátaros e outros hereges antigos e modernos. São os gnósticos que desconsideram a Terra como parte da Criação e por isso ou abraçam o capeta ou, ao contrário, torcem pra partir daqui o mais rápido possível. Jesus viveu muito bem na Terra e sua frase “Meu Reino não é deste mundo” está fora de contexto. Ele só disse isso para acabar com as ilusões daqueles que queriam fazê-lo um rei mundano. Não nego que haja pseudo-cristãos com essa concepção – “ah, não quero me envolver com esse mundo” – mas que são pseudos, ah, são.
Abraços!
pedro novaes
Sem dúvida o texto é excelente. E ninguém pode dizer isso com mais autoridade que eu, neste caso, afinal eu o pus aí como provocação a mim mesmo. Só uma coisa, entretanto, Yuri: o único inrotulável aqui neste blog sou eu. A Jamila é claramente de esquerda…
daniel christino
Eu gostei muito do texto. Achei a ironia do autor muito fina. Discordo da Jamila, ele não pretendia denunciar uma nova esquerda – pareceu-me mais uma enquete entre amigos – ou qualquer outra coisa do gênero.
A idéia de ouro é mesmo a dos CDPRs. Nos quais incluo o próprio autor, já que ele não firma posição, assim como o Pedro.
Já sobre as minudências teológicas do Yuri (conf. Mário Ferreira dos Santos) não acho que classificar uma interpretação como herética siginifique grande coisa. Heresias indicam disputas políticas em torno da hemenêutica bíblica (as vezes nem isso; o atos dos apóstolos, por exemplo, girou em torno da velha prática judaica de oferecer o prepúcio a Javé), geralmente resolvidas a canetada, como no Concílio de Trento. Ora, a própria reforma protestante foi classificada como heresia. Até as (Y)urantices seriam heréticas. Rigorosamente falando, o Yuri é um cristão herético.
A recompensa maior dos cristãos não está mesmo neste mundo, embora o catolicismo seja uma religião do mundo (como explicar, então, a mística cristã?). A recompensa, mesmo que nos venha aqui, está em Deus, que em hipótese alguma pode ser confundido com o mundo, nem seu reino com este daqui (lembrem-se, “a César o que é de César”). Ou, mais sofisticadamente, numa antropologia da alteridade, realmente consciente da figura do Outro (metafísico ou real).
Então, acho que o cara tá certo, pelo menos para o nível de profundidade teológica que ele pretende.
sunami chun
dizer que a “nova esquerda” que engloba todos os que nao se posicionam (pelo que entendi a ideia do texto é essa, uma crítica à falta de posicionamento das pessoas) só pode ser composta de seres insinceros, cabeças-ocas, alienados, infantis, desinteressadas, covardes, ser considerado uma ironia fina nao seria demais Daniel? (nao nos conhecemos pessoalmente mas me dou a liberdade como se já o tivesse ;), espero que considere assim o tom de nossa conversa, sem muitos floreios).
Talvez eu encontrasse algo de ironico em seu texto se ele não utilizasse tanto o outro e seus preconceitos pessoais como recurso para explicar seu medo da liberdade alheia….
se um texto como este não é provocativo a quem nao se considere de esquerda ou direita devo estar delirando, alguém pode me tirar dessa?
yuri vieira
Bom, Daniel, a palavra heresia colou na sola do seu sapato e vc acabou não acompanhando o que eu disse. Erro meu, o termo – que usei num sentido técnico, apenas para defenir uma visão de mundo – é muito geral mesmo. Mas eu me referia meramente à “heresia” do gnosticismo, essa que considera a Terra um mundo alheio à Criação, uma região criada e dominada por um demiurgo, que não é nem Deus nem Jesus. Nem o Livro de Urântia, com seu papo de Rebelião de Lúcifer, se encaixa aí. Eu me referia a apenas essa forma de heresia, a qual é reciclada por muitas ideologias modernas, tais como o próprio comunismo: “ah, Deus não existe [logo, não existe a Criação e a Terra não faz parte dela], há apenas a História [esse arremedo de demiurgo], e somos nós homens que devemos implantar nossa concepção de ‘Reino de Deus’ na Terra [isto é, agindo como se não houvesse uma Lei superior às leis humanas]”. Concordo que a “recompensa maior” dos cristãos não pertence a este mundo – assim como a recompensa da vida universitária (não me refiro ao diploma, mas ao conhecimento) não é tão somente tirar boas notas e arrastar o currículo pelas salas de aula sem nunca deixar o campus – mas é aqui na Terra, na relação com o próximo, que o cristão há de tornar-se merecedor dela, da recompensa. Enfim, quase todo gnosticismo moderno vem da incapacidade de se conceber uma fonte de valores, princípios e da própria vida além do espaço-tempo, o que faz com que se divinize ora o espaço (cientificismo, materialismo, panteísmo, “nova-erismo”, etc.), ora o tempo ou História (materialismo histórico e quejandos).
Abração!
Abraço!