Demorei um pouco para me posicionar sobre o imbróglio Cicarelli. Antes de qualquer coisa achei que fosse mais uma jogada de marketing da minha xará, e não me senti muito disposto a auxiliar no “boost” de imagem da moça. Mas o tiro saiu tão pela culatra que se for mesmo uma estratégia de marketing é a mais furada da história, e deveria tornar-se estudo de caso obrigatório na GV. Por isso acho que não é. É difícil imaginar que alguém se colocaria, deliberadamente, na posição de censor, principalmente tendo como público alvo a faixa mais pluggada da população. Mas, e aí vem o “catch”, eu acho que ela e o namorado estão certos ao processar os paparazzi, o YouTube e o escambau, mesmo que isso signifique “fechar a praça” para nós.
Pensemos em direitos e liberdades e separemos os fatos.
Fato 1: Cicarelli e o namorado vão para a praia “furunfá”. Um gaiato, de botuca, filma a “furunfada” toda sem o conhecimento (ou o consentimento) do casal, e depois publica. O vídeo ganha o mundo – pela Internet – e todo mundo assiste a “furunfada”.
Comentário: A coisa toda foi tão discreta que somente quem estivesse observando com o interesse de flagrar alguma coisa teria notado a trepada. É o mesmo que dar alguns amassos no ônibus, ou no banco detrás do carro, ou atrás do muro da escola. Neste ponto, concordo com o Contardo Calligaris. Parece mais uma demonstração de carinho e amor do que um vídeo pornográfico. Antes que me perguntem – porque alguém irá perguntar – não gostaria que meu filho visse a trepada, mas também não gostaria que ele visse o videoclip da Beyoncé. Contudo, seria mais fácil explicar o que a Cicarelli estava fazendo no mar do que explicar o que a Beyoncé faz no seu videoclip. Além disso, se meu filho tivesse e-mail ele já teria visto o vídeo da Cicarelli e, provavelmente, eu nem saberia. Portanto, a visibilidade do fato deve ser considerada tanto no momento em que aconteceu – a praia espanhola – quanto em sua reprodução posterior. Se houve delito legal ou moral no ato, o mesmo delito acompanha sua reprodução e a audiência que o assiste. A aura moral do original acompanha as cópias, porque o problema não está no ato, mas na sua visibilidade.
Mas o que é visibilidade? Visibilidade é um dos sentidos de público. Na verdade, só podemos pensar no YouTube como “praça” neste sentido e em nenhum outro. Quando se diz que os gregos inventaram a pólis e que este termo significa praça, fala-se, na verdade, em sentido figurado. Do ponto de vista político, por exemplo, dificilmente podemos afirmar que a principal invenção política dos gregos tenha sido o espaço arquitetônico cercado pelas casas no qual as pessoas se reuniam para bater papo. A grande invenção política dos gregos foi a construção de uma convivência coletiva mediada pela lei. Aristóteles costumava comparar o trabalho dos legisladores ao dos arquitetos: fazer leis é como construir muros, moldar o “espaço” normativo que será habitado pelos indivíduos. Neste sentido, espaço público, praça, são as relações sociais construídas entre os indivíduos sob este arcabouço normativo. Existem, é claro, outros tipos de relações sociais – privadas – que obedecem não à lei, mas a princípios morais particulares. É por isso que autores como John Locke e Hannah Arendt separam claramente público de privado. Falando em Hannah Arendt, ela define público de duas formas complementares. Na primeira, define público a partir da idéia de publicidade, do tornar público – o agir e o falar -, desde que livre da necessidade, ou seja, das atividades envolvidas na luta pela subsistência. Neste sentido o mercado é privado. Na segunda, equivale o que é público ao próprio mundo, enquanto este mundo é compartilhado. Em ambos os casos a definição de público se dá em oposição ao privado. Mesmo que na Condição Humana a autora cole a idéia de visibilidade à própria existência humana (e na Vida do Espírito ao pensar), em momento algum a noção de “espaço público” permanece restrita à mera visibilidade. Entretanto, tornar algo público tem a ver, claramente, com tornar algo visível. Ainda assim, é a natureza das ações e dos discursos, e não apenas sua visibilidade, que garantem seu status político. Trepar no mar não se torna uma ação pública simplesmente porque é visível a todos; no sentido em que uso a expressão ela é apenas algo privado feito em público.
O YouTube intermedeia a visibilidade e só. Na verdade, nenhuma das relações estabelecidas entre os usuários do serviço do Google pode ser caracterizada como pública. Estão apenas utilizando o serviço para espiar o que há para se ver – admitindo que os uploads são todos espontâneos e feitos pelos próprios autores dos vídeos. Isolados em seus computadores, preocupados com a satisfação de necessidades individuais (diversão, conhecimento, memória, etc.) não estabelecem nenhum tipo de relação nem mesmo próxima da política. A separação das esfera é fundamental. Outro pensador, Jurgen Habermas, discordando um pouco do sólido republicanismo de Hannah Arendt, vai mais longe ainda. Para ele, só há espaço público quando as pessoas estão engajadas em defender posições de forma argumentativa e racional. O núcleo da principal obra de Habermas – a Teoria da Ação Comunicativa – é a tentativa de definir uma racionalidade política capaz de intermediar as relações entre o mundo da vida e os sistemas políticos (Estado, Parlamento, etc.) de forma ao mesmo tempo racional e ética. Ele acredita encontrar suas respostas numa teoria dos atos de fala, numa pragmática da comunicação. Assim, para ele, espaço público são as relações estabelecidas entre agentes sociais nas quais tais agentes procuram elaborar respostas para impasses e problemas políticos baseados exclusivamente no uso argumentativo da razão. Isso também nada tem a ver com o YouTube. Meu ponto é, então, o seguinte: o que há de público no YouTube é sua capacidade de, como meio, conferir visibilidade; isso não o caracteriza como um “lugar público”, apenas, se tanto, como um meio publicizar o privado.
Fato 2: Cicarelli e o namorado iniciam a “queda dos dominós” dos processos e, no meio do caminho, o YouTube é tirado do ar. A Justiça – de forma totalmente inépta – decide tirar o site do ar com a justificativa de preservar um direito dos indivíduos Cicarelli e namorado da Cicarelli, acreditando que tal coisa seria possível. Pouco tempo depois, o juíz volta atrás mas não recua no mérito da sentença, ou seja, o que tornou sua decisão impraticável foi a inexistência de meios para se barrar a proliferação do vídeo e não o fato de que ela proibia, à pessoas que nada tinham a ver com o fato, acesso a um serviço da Internet.
Comentário: liberdade aqui significa liberdade para ver o que está disponível aos olhos, assim como uma árvore, um edifício, crianças brincando numa praça, ou para espiar um instante privado tornado público? Reparem bem, assumindo que o YouTube não representa nada parecido com o público – ele é apenas um meio de dar publicidade e não o público por excelência – e assumindo também que o ato de furunfá na praia continua um ato privado, mesmo tendo sido realizado em público; o que nos franquea acesso à furunfada cicarelliana?
Corolário: mas, diriam alguns, o que se condena não é o ato da Cicarelli, mas retirar o YouTube do ar, negando acesso legítimo mesmo àqueles que nada querem com a menina e seus rituais marítimos de acasalamento. Esta questão, assim como os computadores da Internet, está irremediavelmente conectada ao problema da visibilidade, já que o direito de todos verem – o que vai pelo YouTube – colidiu com o direito de cada um ter autonomia sobre sua imagem. Pelo quadrado lógico de Aristóteles!!! Se o YouTube não é a praça pública, logo as cicarellagens também não são públicas, se não o são, que direito temos de assisti-las? O que tem precedência aqui, os direitos coletivos de acesso ao site ou os direitos privados à imagem? Um individualista conseqüente deveria refletir sobre sua condenação à menina e seu apoio inocente à racionalidade coletiva. Por outro lado, ao coletivista deveriam estar claras as consequências de seu posicionamento político, isto é, direitos coletivos alçados a valores absolutos levam, necessariamente, à condenação sumária de indivíduos e, portanto, deveria ele estar pronto para responder a este inquietante problema matemático: quantos são suficientes em nome de todos?
Antes que me aporrinhem com o detalhe de que o problema estaria resolvido se apenas o acesso a este vídeo específico fosse impedido, deixando o resto do conteúdo do site livre para todos; retruco afirmando o óbvio: nada disso seria minimamente interessante se não fosse por este problema técnico. Não havendo como impedir unicamente o video cicarelliano, optou-se por retirar todo o acesso do ar. Pensem bem, um direito individual vale esta proibição coletiva? Porque ela está certa em processar. Estamos nós também certos em espiar?
bruno costa
Much ado about nothing, se me permitem. Não sei até que ponto é possível defender a tese de que a srta. Cicarelli tem razão em processar quem quer que seja pela veiculação de seu imbróglio carnal, pelo contrário, foi ela quem invadiu o espaço público com seu comportamento privado (sem trocadilhos). Semelhante ao caso daquelas garotas filmadas pela equipe do Girls Gone Wild que depois ficam “putas” e processam a produtora da série, apesar da licença de imagem que elas assinaram. É absolutamente normal, num espaço público, observar/espiar duas pessoas jovens e bonitas num intercurso sexual. Quanto mais alto late o carola, maior o desejo reprimido, acho que a histeria gerada por esse episódio arquibanal tem muito a ver com o fato de que a maioria de nós se espelhou ou nela ou nele (ou em ambos, no caso de um pansexualismo difuso crônico). Não vou nem entrar no mérito se houve uma pontinha de exibicionismo inconsciente pululando naquelas cabecinhas tórridas (não me refiro, claro, à carapuça de algas). Quanto a espiar, só não devemos fazê-lo invadindo o espaço privado, aliás, é quase uma contradição em termos espiar o espaço público. O elemento imponderável disso tudo é o fato de que ela só teve a ganhar com a incrível repercussão de uma inocente queca ‘al mare’. No mais, a maneira correta de fazer isso é adentrar o mar e aproveitar o ensejo da onda, que beija e balança, com mais vagar, e sem aqueles espasmos leporinos, por favor!
Paulo
Cara, eu precisaria de mais tempo para entender mais claramente o seu ponto, mas, no mínimo, o texto valeu pelo link do texto do Contardo Calligaris. É exatamente o que eu acho. O cara é demais. Ah! E tb acho (depois de resmungar e bufar) que a moça tinha sim o direito de tentar tirar o vídeo do ar! Não penso mal dela não. Tanto é que sempre achei essa estória uma bobagem sem tamanho, só tornada mais relevante pela ação precipitada de um juiz metido a besta!
daniel christino
Bruno, o que a Cicarelli fez é apenas uma desculpa. Meu ponto gira em torno 1)da idéia de que o YouTube e a Internet não são “espaço público”; 2) de que, nesta questão, direitos individuas e coletivos colidiram de frente, forçando-nos a pensar (ou repensar) nossas posições. Quis, sem trocadilho, por favor, atravessar os atos da Cicarelli em direção a questões mais interessantes.
Paulo, meu texto tenta entender que relevância é essa. A idéia era ir além da banalidade do fato.
bruno costa
Eu havia entendido seu ponto, Daniel. Mas acho que esse direito individual específico (o de ter a privacidade resguardada, embora ela estivesse num espaço público, o busílis da questão) não pode suplantar em hipótese alguma o direito coletivo de acessar o Youtube. abs
daniel christino
E eu concordo com você. Por isso, creio, temos a constituição. Se caminharmos um pouco mais, esbarraremos no problema da institucionalização destes direitos e deveres coletivos. Creio que seja uma das razões mais fortes em favor do Estado (ou, para ser mais preciso, dos três poderes da república). Mas isso já é outro post.