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Sobre ciência e religião II

Tentarei, neste post, responder as provocações feitas pelo Yuri, Paulo, Ronaldo Brito Roque e Frederico ao meu post sobre a relação entre ciência e religião.

Em primeiro lugar, tentarei traduzir o problema em termos argumentativos. Para fazer isso, precisarei inferir argumentos a partir do que foi postado pela galera; o que sempre inclui uma boa dose de subjetividade e risco. Se houver incompreensão da minha parte acerca dos pontos de vista assumidos por vocês, avisem.

Em resumo, meu argumento dizia o seguinte: ao longo do tempo, as descobertas científicas influenciaram muito mais o pensamento religioso do que o contrário. Na verdade, até onde sei, o contrário nunca aconteceu.

Tanto o Paulo quanto o Yuri atacaram o argumento de forma um tanto inesperada. Para detoná-lo pura e simplesmente, bastava indicar um momento da história no qual isto aconteceu. Entretanto, ambos preferiram afirmar, de modos distintos, que a própria relação entre religião e ciência sobre a qual estruturei meu argumento não procede. Ciência é uma coisa, religião outra; não se deve igualar o que não é igual.

Este argumento não é novo. Deparei-me com ele primeiro em Cassirer e, depois, em Husserl. Ambos se referem a ele com a expressão aristotélica “metabasis eis allo genos” que é, ao mesmo tempo, o nome de uma falácia e de um tropo retórico. Traduzido, significa algo como “transição (ou confusão) de um gênero para outro”. Assim, o coração do argumento é o de que, ao fazer a comparação, estou forçando uma confusão de generos e, portanto, falseando o argumento.

Não acredito que isto ocorra. Toda comparação ou, mais sutilmente, relação implica um elemento ou condição comum que, por sua vez, modula a comparação. Ex: peixes e bicicletas são ambos matéria (qualidade comum, base da comparação); a relação entre eles passa, portanto, a ser pertinente apenas no que diz respeito ao conceito de matéria e suas derivações. Não é porque peixes e bicicletas são matéria que podemos sair por aí dizendo que são ambos comestíveis. Fazer isso seria exatamente “confundir os gêneros”. Logo, para escapar ao contra-argumento do Paulo e do Yuri preciso mostrar que há algo comum entre ciência e religião e que este algo sustenta a comparação que fiz. Por fim, não pode ser algo trivial.

O que separa também une. Isto quer dizer: uma relação não precisa ser sempre harmônica ou positiva, pode também ser negativa. As grades de uma prisão separam o guarda do interno, mas também os une nesta separação. As grades determinam quem é guarda e quem é interno. Creio que aconteça o mesmo com a ciência e a religião. O que os separa é o que os une. Cassirer argumentava de modo parecido, igualando religião e ciência enquanto formas simbólicas. Eu defendo que religião e ciência se igualam na medida em que constróem asserções sobre o sentido da realidade, e o sentido do que dizem sobre a realidade as separa.

Um juízo religioso (Deus existe!) tem pretensão de verdade assim como um juízo científico (dois corpos não ocupam o mesmo lugar no espaço). Religiões não acreditam que seus juízos são meramente ficção, elas atrelam ao seu sentido um valor de verdade. A transubstanciação é uma verdade, ela ocorre!, assim como é verdadeiro o fato de que Jesus andou sobre a Terra e era Deus encarnado.

É neste sentido que o exemplo de Galileu é relevante. E aqui faço minha primeira crítica ao Paulo: Galileu é mais importante do que faz crer seu post. Naquela época, a teologia cristã elaborava juízos cosmológicos baseada no caráter de texto revelado da Bíblia. A conformação da realidade – a posição dos planetas, suas revoluções, etc. – era assunto teológico e havia toda uma cosmologia sustentada nesta interpretação. O livro de Urantia, pelo que o Yuri diz, faz a mesma coisa. As descobertas de Copérnico, Galileu e Kepler invalidaram esta interpretação. A partir daí, e só a partir daí, a Igreja abandonou os estudos cosmológicos pois reconheceu suas limitações diante do método científico ao tratar a questão. É isso que chamo recuo. Sem a tese da mathesis universalis de Galileu, ainda estaríamos estudando o cosmos a partir de pistas espalhadas pela Bíblia.

Isto possui conseqüências interessantes. Com o avanço da ciência – inclusive da genética – as assertivas da religião sobre, por exemplo, o homem podem colidir novamente com as descobertas científicas. Se isto ocorrer, é correto supor que a religião deverá recuar mais uma vez. Desta forma, ao que tudo indica, toda assertiva religiosa sobre a realidade está sob judice até que a ciência a valide ou invalide. Para ser coerente, o pensamento religioso deveria se abster de emitir juízos sobre a realidade, o que equivale a abandonar sua pretensão de explicar o que ocorre no mundo dos sentidos. A ciência, por outro lado, em função da natureza do seu método, só pode discorrer sobre fenômenos verificáveis na realidade. O problema, então, passa a ser o seguinte: quais são os critérios da religião para propor que seus juízos sejam verdadeiros? Qual é a fundamentação (epistemológica? gnosiológica? ontológica?) da idéia de verdade no pensamento religioso? Este é um dos motivos pelos quais não acho que esta questão seja uma “baboseira”, pelo menos não tão grande quanto o livro de Urantia.

Digressão: não deixa de ser sintomático do processo de decadência do cristianismo o fato de que a Bíblia não seja mais capaz, por si mesma em sua qualidade de texto revelado, de inspirar o sentimento religioso. O livro de Urantia – assim como se-nos-apresenta na versão do Yuri – nada mais é do que uma fantasia cosmológica (portanto, passível de confirmação pela ciência) construída sobre o arcabouço de valores do cristianismo. Um sofisticado mecanismo catalizador da experiência religiosa cristã.

Continua…

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2 Comments

  1. Como vc sabe, Daniel, em tempos pretéritos eu correria tanto risco de ir pra fogueira quanto vc. A minha natureza de libertarian me faz desaprovar não só o Estado – e daí hoje eu me sentir mais ameaçado por políticos que pelo Papa – mas toda e qualquer imposição precipitada e intrometida de grupos que se arrogam senhores de algum poder específico, seja este científico, religioso, acadêmico, militar, político, culinário, sexual, esotérico, desportista, etc. Não pense que isso implique desrespeito da minha parte. Respeito as opiniões, credos, crenças e idéias de toda a gente, mas não venham obrigar-me a aceitá-las se contrariam a minha visão das coisas. E pior: não venham me empurrar algo cuja natureza não tenha nada a ver com o campo que dominam. O fato de alguém ser PhD em Teoria das Cordas não implica que possa realizar uma cirurgia de ponte de safena. Dito isto…

    Primeiro preciso esclarecer que minha definição de religião não condiz com a sua. Quando você fala em religião percebo que se refere a um grupo organizado sob um conjunto de dogmas e doutrinas derivadas de uma revelação. Ok. Isso existe no mundo. Mas para mim religião é o nome que dou à minha relação pessoal com Deus. Minha relação com uma mulher pode ser um namoro, um noivado ou casamento, mas minha relação imediata com Deus se chama religião. Daí eu não ver sentido em ficar falando se quem manda mais é a ciência ou a religião: Deus manda mais. Contudo, no tocante à outra definição de religião – essa que vc usa – concordo com vc: religião não tem de ficar boicotando e ditando o que é e o que não é conhecimento científico. Da mesma forma, espero que grupelhos de cientistas não fiquem dizendo se posso ou não ter fé, isto é, confiança num Ser que lhes escapa, que não pode ser apreendido por pinças, béqueres, microscópios, aceleradores de partículas, hubble e assim por diante. Cientistas têm mania de se achar espertos, mas são piores do que eu em filosofia: adoram cair no argumentum ad ignorantiam. Porque não há provas materiais, aaah, então não existe.

    Com relação à Bíblia, taí um bom motivo para eu ser considerado herege. Swedenborg, um cara que admiro imensamente, acreditava tal como a maioria dos cristãos de hoje que a Bíblia é a revelação de Deus, a sua Palavra. Acho que o Olavo de Carvalho crê no mesmo, assim como o Bruno Tolentino. A Hilda Hilst não. Eu tampouco. (Estou citando meus mestres, aqueles com quem tive um contato pessoal mais intenso que extenso.) Como a Hilda, acho que se trata de um livro Sagrado que faz uma compilação de Revelações de fato, ou meramente verossímeis, ocorridas de forma localizada ou individual. Há muito dedo humano ali, embora seja sim possível vislumbrar um Sentido, tal como se Deus tivesse utilizado aqueles personagens como palavras de uma frase que os transcende. Mas essa “frase” é mais uma interpretação originada por escolhas humanas (seleção do cânon) que um sussurro diretamente saído da “boca” de Deus. Acho possível que Moisés e os profetas tenham sido agraciados com a Revelação, isto é, com a comunicação divina ou referente às coisas divinas, mas não creio que o relato dos episódios seja ele mesmo uma revelação. Creio, por exemplo, que Jesus era sim uma encarnação divina, ou seja, Ele próprio uma revelação. Mas o cristianismo não é como o islamismo, em que a revelação é o livro, o Corão. Os evangelhos são relatos humanos que tratam indiretamente da verdadeira revelação: a vida de Jesus neste planeta. Aliás, toda a Bíblia aponta para sua chegada e por isso acho tão engraçado os judeus ainda não serem cristãos. 🙂

    Vc escreveu:

    Eu defendo que religião e ciência se igualam na medida em que constróem asserções sobre o sentido da realidade, e o sentido do que dizem sobre a realidade as separa.

    Se seus respectivos sentidos os separam, então é porque se opõem. É o que vc quis dizer? Então, não necessariamente, eu responderia. A ciência e a religião devem sempre discordar? Por quê? Newton era profundamente religioso e logo no início do Optics, que li lá na casa da Hilda (li apenas o início e alguns trechos), ele deixa muito claro que seu objetivo é compreender a Criação divina. Ainda tenho anotado algumas coisas no diário que escrevia à época:

    “All these things being considered, it seems probable to me that God in the beginning formed matter in solid, many, hard, impenetrable, moveable particles, of such sizes and figures, and with such other properties, and in such proportion to space, as most conduced to the end for wich He formed them; and that these primitive particles being solids, are incomparably harder than any porous bodies componded of them; even so very hard as never to wear or break in pieces; no ordinary power being able to divide what God himself made one in the first Creation.” (Isaac Newton, Optics

    Em suma: o que me incomoda é o grupo que tenta imiscuir-se onde não é chamado. Já o indivíduo não só pode como deve percorrer todas as áreas, ampliar ao máximo o campo da sua experiência. O fato de Newton ter em alto preço sua relação com Deus – sua religião – não o impediu de ser um dos maiores cientistas de todos os tempos. Ou será que o impediu?

    Quanto ao Livro de Urântia, sou o primeiro a xingar o safado. Ele amargura os meus dias. Me causa até writer’s block, já que me deixou tão pequenino e atordoado. Sim, porque me colocou num nível que ainda não sei se é o cume duma montanha altíssima ou as profundezas dum abismo. Mas, teimoso, ainda o leio porque algo me sussurra que a primeira opção é a mais provável. E digo isto por experiência própria: como vcs sabem, fui andinista (escalei quatro vulcões com mais de 5.000 metros e outras três montanhas com mais de 4000, afora outras menores) e “cavernista” (percorri 15 cavernas, algumas em sua companhia, mas não me considero um espeleólogo). As cavernas sempre me causaram um prazer e uma paz incríveis, como a volta ao útero materno. Mas eram escuras e desprovidas de horizonte. As montanhas e vulcões, ao contrário, me causavam ansiedade e vertigem – tal como o Livro de Urântia. A solidão que nos causa o ver o mundo de uma altitude que nos faz enxergar loooooonge (no tempo e no espaço), de uma forma não compartilhada por mais ninguém à nossa volta, que nenhum vizinho aceita ou percebe, é uma experiência que beira a loucura. (Já me acostumei a ouvir: “ah, o Yuri está louco, doidão de pedra”.) Vc, Daniel, o Olavo, e mais montes de pessoas, ficam dizendo que o livro é um resíduo cristão. Eu li Spengler, sei que, segundo ele, no final de uma Cultura a religião que a iniciou volta de uma forma artificial, com um jeitão de último suspiro. Mas isso tem mais a ver com a Igreja Universal e outras seitas pentecostais que com o Livro de Urântia, esse livro que vc não leu e ao qual se refere como “na versão do Yuri”. O Olavo, honesto como é, não se atreve a fazer asserções tão drásticas sobre ele. Pelas poucas informações que lhe dei, pareceu-lhe também um complemento tardio do cristianismo. Mas me deu a chave que provará se ele é ou não uma revelação legítima: se der início a uma nova Cultura, é. O problema é que, para quem lê o livro de Urântia, o cristianismo é que é um resíduo da religião de Jesus, estando esta descrita inteiramente ali.

    Uma coisa que os cientistas deveriam engolir é que a revelação é uma possibilidade. Da mesma forma que os índios receberam informações dos portugueses aqui chegados, sobre a existência de todo um mundo além-mar, nós também podemos receber informações advindas de outras paragens. Por que não? A ciência sabe o que há do “lado de lá” do Cosmos? Por quais meios? Hubble? O mais interessante do Livro de Urântia é que, ao mesmo tempo em que ele se coloca como único texto revelado legítimo, não se coloca como Palavra de Deus. É a palavra dos filhos Dele, de nossos irmãos, em Seu nome. Por isso, não põe a si mesmo como infalível, completo e absoluto. Certas partes trazem a autoridade de quem sabe das coisas, outras apenas trazem testemunhos de estudos e especulações em andamento. A ciência continua após a morte.

    For so far as we can know by natural philosophy what is the First Cause, what power He has over us, and what benefits we receive from Him, as well as that towards one another, will appear to us by the light of Nature. And no doubt, if the worship of false gods had not blinded the heathen, their moral philosophy would have gone farther than to the four cardinal virtues; and instead of teaching the transmigration of souls, and to worship the Sun and the Moon, and dead heroes, they would have taught us to worship our true Author and Benefactor, as their ancestors did under the govermmen of Noah and his sons before they corrupted themselves.” (Isaac Newton, Optics – book III: Part I)

  2. Agora percebo que deixei vários pontos de fora. Mas não irei totalmente a eles agora. Apenas enumerando: 1) Spengler dizia que cada Cultura tem sua maneira de encarar a ciência e que esta depende daquilo que originou a mesma Cultura, isto é, da sua religião (o que implica que, se a ciência ocidental foi tão longe, é porque o Cristianismo é que deu as bases de sua liberdade); 2) Como bem frisa o Olavo, nossa vida se organiza sobre uma base simbólica e o fundamento dessa base é religioso. Ou seja: mesmo um cientista vive de acordo a princípios que não existiriam não fosse a existência do ocidente judáico-cristão; 3) Não fosse a religião, aposto que os cientistas usariam qualquer pessoa como cobaia. E não me diga que esse é um problema meramente ético. O cristianismo, ao legitimar o valor da pessoa individual, ajudou a avançar a ética. Aposto que no tempo dos romanos havia muitos Mengeles; 4) “Em um sentido profundo que nenhum sentimento de ridículo poderia apagar, nós, os sábios, conhecemos o pecado.” (Oppenheimer, sobre a invenção da bomba atômica).

    Enfim, um cientista ateu parece um peixe dizendo aos demais: não acreditem neles, essa tal de água não existe…

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