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Sobre a necessidade de classificar o mundo

Certa vez eu, o Yuri e o Paulo conversamos até tarde num barzinho (destes que Goiânia pari e mata aos montes) sobre o paradoxo de Russell e sobre como ele redefinia a idéia de classificação com a qual sempre trabalhamos. Em outras palavras, Russell mandou para o espaço o que costumo chamar, não sem alguma pretensão didática, “visão supermercadológica” do mundo. O que isso tem a ver com o post anterior do Pedro e sua resistência à nossa insistência em enquadrá-lo? Sigam-me.

Nosso senso comum possui uma compulsão classificatória herdada da linguagem. Andamos no mundo como em um supermercado, observando os diversos produtos em suas gôndolas mentais. Vejam, uma lula! O que significa: eis um objeto que podemos classificar como pertencente à categoria “lula”. E usamos estas categorias porque elas são funcionais, nos poupam um tempo danado (assim como num supermercado não perdemos tempo procurando arroz no açougue) e nos ajudam a construir um sentido para as coisas. Como o Yuri disse, é uma das funções da razão.

Fazemos o mesmo com nossa intimidade. Classificamos nossos amigos numa espécie de Orkut mental. “Vejam, lá vai o Pedro, um cara muito legal mas com tendências ao emputecimento precoce”. Ou então “vai lá o Yuri. Será que ele dará sorte hoje e será abduzido pelos autores do livro de (Y)Urântia?”. Nós os associamos a uma série de pessoas e experiências, às vezes por mera contiguidade, a fim de colocar ordem no nosso mundo íntimo. Do ponto de vista do sujeito, conhecer alguém, primeiro e na maioria das vezes, siginifica situá-lo neste plano categorial de rótulos e relações. Eis aí uma das mais importantes funções da linguagem (tomada na perspectiva de Husserl, de uma linguagem enquanto cálculo): racionalizar, organizar, botar o mundo em ordem. O primeiro rótulo que recebemos não é outro senão nosso próprio nome.

Mas o mundo não é um supermercado. Simplesmente porque nossa linguagem não apenas classifica (como era o caso do sistema fregeano do qual brotou o paradoxo do Russell) mas também hierarquiza. E, como sabemos, toda hierarquia brota de uma escala de valores. Nossa hierarquização dos amigos se dá pelo critério da afetividade. Somos mais afeitos a uns do que a outros. Por exemplo, sou muito mais próximo do Paulo do que do Fiume, mesmo tendo conhecido o Fiume antes do Paulo. Goethe nomeava este fenômeno de “afinidade eletiva”. Elegemos nossos amigos porque os categorizamos e classificamos segundo uma ordem de importância fundamentada na afetividade.

Mas não me entendam mal. Não se trata de um processo científico, frio e calculado. É um reflexo condicionado dos seres capazes de desenvolver linguagem. De fato, ela não opera de outra forma. O que chamamos mundo nada mais é do que uma rede de significados relacionados uns aos outros, na maioria das vezes, por critérios de classificação puramente subjetivos, mas ainda assim baseados numa estrutura categorial e hieráquica herdada através da linguagem (e, através da linguagem, discutida e compartilhada num grupo social). Tal estrutura forma o que chamamos “visão de mundo” de alguém. E todos nós somos parte das visões de mundo dos outros.

Assim, a partir da linguagem estruturamos, classificamos, julgamos e agimos no mundo. É o que nós fazemos; o tempo todo quando não estamos dormindo. O grande debate, claramente, fica por conta da noção de adequação. Será que as categorias e hierarquias que montamos e com base nas quais julgamos e agimos, são as mais corretas em cada caso no qual as aplicamos?

Se pensarmos nas pedras, nos pães e nas carnes, o problema é resolvido pelo método científico. Como dizia o Kant , interrogamos a natureza para saber se o que dizemos a seu respeito é o caso ou não.

Contudo, o mais interessante deste papo é o fato de que esta tese não é apenas epistemológica, é ética também. Pronto! Chegamos à essência do que eu queria dizer: quando relacionamos PESSOAS às categorias com as quais compomos o mundo, elas resistem. Citando aquele filme profundamente filosófico: “o tijolo não revida”, mas as pessoas sim. Retrucam, reclamam, mandam a gente ir catar coquinho na enxurrada. Imaginem se uma pedra nos interpelasse toda vez que a chamamos pedra, reclamando sua verdadeira natureza de rocha? Só que, graças a Deus, é o que as pessoas fazem. Esta conversa, acredito, é uma espécie de deontologia do debate – e o Pedro sempre volta a este ponto – a qual nos propusemos quando montamos este blog. Respeitar a opinião do outro significa rever nossas categorias e hierarquias classificatórias em relação a ele (e não necessariamente em relação ao mundo).

Quando classificamos coisas estamos lidando com categorias, mas quando classificamos pessoas, estamos lidando com IDENTIDADES. É a única heurística ainda aceitável para termos como esquerda e direita, vale dizer, eles significam quando usados pelas pessoas para definir sua própria identidade política. Se eu ou Pedro usamos o termo “direita’, ele possui um significado específico em nosso debate. Quando o Olavo usa “esquerda” ele quer dizer algo preciso, referenciado em seu universo teórico.

Em geral, como a relação entre os indivíduos é necessariamente ética e afetiva, perdemos tempo tentando decifrar as pessoas das quais gostamos. Outro Zé Mané qualquer vai para a prateleira dos chatos, ou dos ricos, ou dos esquerdistas, ou dos direitistas e não mais nos incomodamos com ele. Provocamos quem nos intriga, nos deixa curiosos. Eu particularmente demorei para entender isso, mas um pouco de mistério sempre nos torna mais interessantes para as outras pessoas. É um tipo de combustível para as relações humanas.

Enfim, quando o Pedro reclama da forma como o classificamos em nosso sistema categorial devemos ouví-lo. Mas isso não implica, de jeito nenhum, aceitar como verdadeiro o que ele diz (ou qualquer outro). As pessoas se enganam, a miúde sobre si mesmas, mas tembém sobre o mundo compartilhado. Assumo o ethos proposto pelo Pedro, mas também acredito que deva ser convencido a abandonar minhas posições. Sinceridade, honestidade intelectual, amizade e disputa inspirada pelo ágon. Este é meu “código de conduta”. É isso.

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4 Comments

  1. Paulo Paiva

    Gostei, Daniel!

    Agora me diga: na hierarquização entre a importância da política e da ciência em nossa vida, a ciência tem NENHUMA importância?

  2. Vinicius

    “É tão raro duas pessoas se entenderem nesse muundo!” Goethe

    É a crise da “?” que molda nossa razão.

  3. Eu me lembro de, nesse barzinho, eu ter ficado aliviado por haver lido sobre o tal paradoxo dias antes, do contrário eu não teria entendido bulufas, pois estava bêbado demais para tanto… 🙂

  4. Virginia

    Olá, encontrei o blog de vcs por acaso… msm q talvez o acaso nao exista.

    Diria q a minha incerteza é explicar até que ponto a classificação das pessoas é necessária e em que medida ela se torna estereotipadora. Tanto que esse é o tema de um trabalho da faculdade. Nesse trabalho eu preciso me utilizar de um monumento pra representar essa incerteza… e achei que a analogia feita entre isso e o supermercado é perfeita!

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