Estávamos em meio a um debate a respeito dos fundamentos filosóficos da moral, quando, inevitavelmente, entrou na roda o velho assunto dos políticos pretensamente bonzinhos que só fazem maldades. O moderador, um professor de filosofia duma obscura faculdade de Nova York (obscura ao menos para mim), até que segurava bem as rédeas das opiniões, argumentos e idéias que iam entrando. (Sim, é óbvio que toquei na questão do Foro de São Paulo, do qual os gringos ali presentes nunca ouviram falar. Aliás, eu era o único representante da América do Sul.) Enfim, alguém, mais que depressa, retirou da manga o amarrotado tema do desrespeito às minorias, desrespeito esse bastante criticado por Verum, representante do Diversity 2007 e proprietária do Verum’s Place – uma área dedicada a este gênero de discussões – quando então, assim do nada, surgiu o gigantesco Homem Biscoito de Gengibre. Caminhando feito uma mistura de zumbi bêbado com Carlitos – e provavelmente comandado pelo dono de algum computador de pouca memória e baixa velocidade – o Homem Biscoito foi se aproximando da nossa roda que, um tanto perplexa, assistiu à aparição silenciosa e um tanto tímida do estranho avatar. Aparentemente cego, chutou dois ou três dos presentes e se dirigiu a uma das almofadas vagas, sentando-se com estrépito. O problema é que o sicrano era tão grande que suas pernas ficaram por cima de outros dois membros do nosso grupo, aqueles que o flanqueavam de imediato. O estudante norueguês de asas negras simplesmente saltou uma almofada e voltou a se sentar a uma distância segura. Já a professora de artes canadense se levantou e resmungou algo um tanto irritada, mantendo-se de pé daí em diante. Assim que o Homem Biscoito de Gengibre finalmente emitiu um “Good morning”, desapareceu deixando uma nuvem de estrelinhas.
“Ih, o cara caiu”, disse o moderador.
Verum se manifestou: “Não, eu o expulsei. Ele estava atrapalhando a reunião”.
Surgiram risadas e observações ácidas de todos os lados. O moderador comentou:
“Ora, ora… E não é que nossa anfitriã defensora das minorias acabou de excluir o único Homem Biscoito da nossa reunião?”
E teve início, pois, uma série de argumentos e contra-argumentos a respeito do significado ético do ocorrido. Alguém comparou o caso à hipotética expulsão de um passageiro com obesidade mórbida de um avião. Outro atacou o Homem Biscoito afirmando que era certamente alguém com complexo de inferioridade e sem nenhuma outra razão de ser senão a de aparecer. O Homem Raposa, sentado ao meu lado (eu sou o punk de crista da foto) disse que o Homem Biscoito tinha todo o direito de se manifestar como um Homem Biscoito, pouco importando seu tamanho e seu sabor. Se ele podia comparecer em forma de raposa, por que o outro não poderia em forma de biscoito? (“Yeah, you have a good point!”) E, claro, não se chegou a qualquer conclusão.
Sinceramente, não sei se o Homem Biscoito ficou triste e solitário diante de seu computador ou se sua intenção era ser de fato expulso, ficando então entregue às suas próprias risadas de ator de pegadinha. Sei apenas que certas situações são muito rápidas em sua implícita volúpia de nos fazer pagar a língua. Quase fiquei com pena da Verum. Segundo-vivendo e aprendendo…
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P.S.: Enquanto alguns bobos ficam a ladrar “joguinho! joguinho!”, a caravana do Second Life vai passando, sem deixar de levar, em seu bojo, pessoas que, de todos os cantos do mundo, querem se conhecer e trocar idéias…
Acid
Adorei esse post. nem sabia q na Second life tinha quem se reunisse pra papear e filosofar sentados em almofadas… deu até vontade de estar junto.
yuri vieira
Pois é, Acid, o mais interessante do SL é essa possibilidade de comunicação. Não é un jogo, embora haja jogos ali dentro, principalmente de RPG. Na verdade, há nele o retorno do “acaso” ao contato via tecnologia, acaso esse que se mostrou improfícuo em outros sistemas: telégrafo, telefone, celular, messenger, skype, etc. Nesses aí, a gente só atende a quem conhece ou que, no mínimo, nos conhece. No SL não. Há sempre um pretexto para entabular conversa com qualquer um, seja esse pretexto um “pôr do sol”, um prédio engraçado, o fato de se estar perdido numa área nova, etc. Todas as vezes que tentei, pelo ICQ e pelo Skype, conversar com desconhecidos, reinou a desconfiança: “quem é vc? por que me chamou? O que vc quer?” Ora, pensava, esse programa não tem o status “Disponível para conversa”? “É, mas eu não te conheço.” Nem num chat público a coisa é diferente. Todas as vezes que tentei conversar com chineses num chat chinês fui tratado com desconfiança: “From Brazil? What are you doing here?!” Ora, eu estava na minha casa, uê, conectado à internet, isto é, a um click de distância da China. Por que não queriam conversar? Por medo de eu ser um agente do governo chinês? No SL, esse contato com os desconhecidos é não só possível mas estimulado. (Vou escrever mais sobre isso.) Para mim, tecnicamente, tudo se passa como numa projeção astral. (Vc entende bem desse assunto.) A diferença é que no SL nossos sentidos são retringidos, ao invés de ampliados, e tampouco nos encontramos com extraterrestres e desencarnados. Bom, isso até onde eu saiba… 🙂
Abraço!
yuri vieira
A propósito: já participei até mesmo de um Festival de Literatura no SL, no qual conheci o editor da Penguin Books, entre outros.
{}’s
yuri vieira
Ah, lembrei de outro detalhe dessa reunião. Durante a palestra inicial do moderador, um cara se manteve em pé enquanto nós outros estávamos sentados. Alguém perguntou por que ele não se acomodava. Ele respondeu que não sabia o que fazer para se sentar.
“Poxa, é só apertar o botão direito do mouse e escolher ‘Sentar-se'”.
“Já me disseram isso, o problema é que meu computador é um Mac, não é um PC.”
A partir daí, a pergunta recorrente aos retardatários era: “Você usa Mac? Você usa Mac?” Tanto que alguém devolveu: “Por que? Vcs só aceitam macmaníacos aqui na Diversity?”
E finalmente apareceu um usuário de Mac.
“Aperta Command e clica na almofada.”
“Aaaaaaah! Thank you so much, sir.”
Uma meia hora depois, surgiu um figura que parecia um Homem Biscoito de Gengibre e…
Marcela Moreira
Joguinho! Joguinho!
yuri vieira
Bobinha! Bobinha! 😛
ant zabelin
Hilária sua narração da estória, dei ótimas risadas. Valeu!
Sou novo no SL, sou um “filho-do-fantástico” mas ja notei que tem muito pouco de bricadeira lá, o “trem” pode ser bem sério.
Como jogamos o jogo é como vivemos a vida.
A partir de agora, vou pensar duas vezes antes de virar as costas para o homem-biscoito-de-gemgibre, caso tenha o privilégio de vê-lo
até,