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Carta aberta aos Comunicadores

Do site A coisa aqui tá preta:

Carta aberta aos comunicadores

Esta carta é dirigida a todos aqueles que mantêm relação com o público através de meios de comunicação de massa. Entre estes, em especial aos que operam e administram blogues, fóruns e sítios de Internet que propiciam alguma interação com o público. Assim, os destinatários não são apenas jornalistas, embora estes constituam a parte mais ponderável desse universo.

Gostaria que a carta não fosse lida como manifestação satisfeita de moralismo, mas como preocupação com o papel civilizatório que as atividades ligadas à circulação da informação deveriam cumprir em primeiro lugar. Tal papel tem, ou deveria ter, precedência em relação aos interesses econômicos de empresas (seja jornalísticas ou quaisquer outras), os objetivos políticos de partidos e as inúmeras finalidades expressas pela multidão de grupos de interesse que ganharam proeminência em nossa sociedade.

O advento de mecanismos de comunicação que possibilitam a interação do público, dos quais os blogues são o exemplo recente mais significativo, evidenciou um problema com o qual muitos não estão conseguindo lidar.

Nenhum outro veículo publicaria o que está sendo permitido na Internet. Embora a permissividade abranja principalmente as áreas de comentários de blogues, ela não se limita a estas. Em muitos casos, os próprios responsáveis por blogues e sítios de Internet (em geral aqueles que servem a interesses específicos, usualmente partidários) permitem-se divulgar como fatos as coisas mais inacreditáveis, entregando-se livremente ao assassinato de caráter.

As manifestações de visitantes que infestam alguns dos blogues jornalísticos com grande audiência desafiam a capacidade de descrição, percorrendo todo o espectro da escatologia. Grande parte dos intercâmbios resume-se a trocas de xingamentos, tanto entre os interlocutores quanto alvejando figuras públicas, partidos políticos, grupos inteiros de pessoas. Calúnias, difamações, imputações irresponsáveis são regra em alguns ambientes da rede.

Como jornalistas sabem melhor do que ninguém, e como os não-jornalistas fariam bem se aprendessem, a responsabilidade pela publicação de qualquer informação é de todos aqueles que participam da cadeia. No caso de um comentário num blogue, são responsáveis no mínimo o autor do comentário, o titular do blogue e a empresa que o abriga.

Essa cadeia de responsabilidades é sempre explicitada nas regras dos blogues e de outros veículos em que se admite a manifestação do público. Na prática, contudo, as regras permanecem letra morta. É sobre isso que gostaria de focalizar a atenção.

A responsabilidade que lhes cabe como comunicadores não se materializa apenas na hipótese de alguém tomar medidas judiciais contra vocês e contra as empresas em que vocês trabalham ou para as quais colaboram. A responsabilidade é anterior à lei. Na verdade, a lei meramente formaliza um dever que lhes cabe como comunicadores. A lei existe porque o dever existe, e não o contrário.

Tal dever exigiria que vocês ativamente impedissem a publicação de lixo e de informação criminosa. É claro que vários procuram fazer isso, mas muitos não fazem. Mesmo blogues com moderação por vezes admitem a veiculação de ofensas e a troca gratuita de insultos, como se ofender publicamente alguém fosse aceitável. O que é mais grave, admitem também a transmissão de informação caluniosa, sujeitando-se dessa maneira a sofrer processos judiciais.

Chega a ser surpreendente que vários de vocês ainda não tenham sido alvo de tais processos – nos quais com certeza seriam condenados.

É possível que vocês, ou as empresas para as quais trabalham, calculem que coibir a publicação de porcaria afastaria parte de seu público. Digamos que seja verdade. E daí? Vocês de fato se orgulham de que parte de sua visitação milionária vem do tipo de indivíduo que se compraz em proferir obscenidades, acusações descabeladas e imputações irresponsáveis, protegido pela distância de uma comunicação eletrônica?

Esse pessoal faz confusão entre interações privadas, as quais são reguladas por consenso ou dissenso entre as partes e não são da conta de ninguém mais, e interações públicas, cujas regras não podem ser ditadas pelo interesse privado de cada um. Os blogues de alguns de vocês deixam de estabelecer essa distinção crucial. O resultado não é só uma confusão conceitual, mas a ativa transformação do espaço público em terra-de-ninguém. Não tenham dúvidas de que esse efeito extrapola o âmbito da comunicação e reforça o caos social.

Nos casos dos ambientes mais permissivos, observa-se que parte dos comentaristas não é dotada de alfabetização suficiente para sequer compreender a notícia ou análise que foi veiculada, o que não os impede de escrever o que lhes dê na telha. O fato de vocês deixarem passar tais equívocos sem assinalação não ajuda ninguém.

É patente, ainda, que a permissividade induziu em muitos dos indivíduos que usam tais espaços a noção de que teriam “direito” de fazê-lo. Não têm. O direito de publicar seja o que for é do responsável, não de seus visitantes. Estes podem, se quiserem, desempenhar plenamente seu direito de expressão pelo simples expediente de abrir eles próprios seus veículos – e, depois, de suportar as conseqüências da publicação daquilo que vierem a veicular.

Também é evidente que, ao estimular a “participação” de um público desclassificado, a permissividade afasta na mesma medida uma audiência que poderia utilizar os espaços de comentários para trocar idéias e, a partir daí, contribuir para o bem comum.

Por outro lado, é também verdade que os leitores do corpo principal desses blogues são muito mais numerosos do que o contingente que usa a área de comentários para conduzir suas pequenas guerrilhas marginais. Mas isso não altera o estado de coisas que é objeto desta carta.

Não é impossível que as empresas para as quais vocês trabalham considerem que sua atividade não gera receita suficiente para compensar a alocação de pessoal para proceder à filtragem daquilo que é publicado como comentário nos blogues que levam seus nomes. Ou talvez elas calculem que o que importa na captação de receita seja o número de “page views” gerados por seus blogues, e que a imposição de alguma espécie de critério para a aceitação de comentários afastaria visitantes, reduzindo com isso o agregado geral dos “page views”. Em outras palavras, não é fora de cogitação que, para as empresas, coibir a baixaria trabalharia contra seus interesses, o que é muito próximo de considerar que, para elas, quanto mais baixaria, melhor.

Nada disso transforma em outra coisa aquilo que é publicado sob seus nomes.

Todos vocês conhecem o caso recente do jornal norte-americano Washington Post, cuja ombudsman, Deborah Howell, inaugurou um blogue aberto livremente a comentários mas teve de fechá-lo na seqüência imediata, por excesso inadministrável de imundícies contribuídas pelos visitantes. Hoje o Post tem um único blogue para tudo e só aceita comentários enviados por e-mail. Ou seja, na prática, a interação típica de blogues deixou de existir ali, por impossibilidade de ser submetida a filtro. Isso é o certo. Não se embarca numa nau que não se possa conduzir.

Observe-se que o mal que se está causando por se permitir a persistência desse estado de coisas na Internet brasileira vai além da veiculação de porcaria, calúnias e imputações difamatórias. Cada vez que um desses comentários irresponsáveis ganha espaço de divulgação, transmite-se a noção de que é assim que se devem dar os embates de opinião.

Ao não cercearem as manifestações irresponsáveis que são feitas em seu nome, muitos comunicadores estão disseminando a idéia de que a esfera pública é governada pelo vale-tudo, prejudicando assim a formação política do público e tornando ainda mais difícil a tarefa já infeliz de incentivar valores civilizatórios.

Claudio Weber Abramo

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1 Comment

  1. Na verdade, toda minha preocupação com os nossos comentários se encaixa nas colocações do Abramo: é preciso estar atento e ter responsabilidade ao dizer certas coisas, ou não haverá respeito para com o leitor. Só isso.
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