Outro dia publiquei aqui um excerto de Ernesto Sábato, meu escritor favorito, embora não seja o autor de meu livro favorito, que é, de longe, Grande Sertão Veredas.

Sábato me fascina pelo conjunto da sua obra, pela especificidade de cada uma, pelos territórios que explora – trevas e angústia, desespero e loucura, impotência – e pelo ser humano que é, desesperado e apaixonado, racional e absolutamente descrente da razão.

O Alex Castro tem um ótimo texto sobre o Sábato, também um de seus escritores favoritos, onde chama atenção para um discurso de Saramago sobre Sábato, onde aquele inexplicavelmente afirma que o traço mais marcante deste é sua “implacável crença na razão”. Ou nós ou ele não entendemos nada.

Ora, o traço mais marcante, mais fascinante, pedra angular de toda a sua vida e obra artística é precisamente sua perda de fé na razão. Sábato se graduou e concluiu o doutorado em física com honras e se mudou para Paris, ainda muito jovem, para trabalhar como pesquisador no Laboratório Curie, à época um dos mais prestigiosos centros de pesquisa nesta Ciência e depois para o Massachussets Institute of Technology (MIT). Retornando a Buenos Aires, em princípios da década de 1940, angustiado, desesperado e perdido, decidiu, em meio a pesadas críticas e acusações de sandice, abandonar a Ciência para se dedicar à literatura. Precisamente porque a razão, diante da loucura humana, das atrocidades e da incoerência, e sobretudo de seu próprio – nosso próprio – potencial e pulsão para o mal, passou a lhe parecer absolutamente débil e ineficaz. Mais que isso, a fé humana inabalável e desmedida na razão lhe atingiu como um mal em si.

Desta virada pessoal, foi parido “O Túnel”, seu primeiro e impressionante romance, elogiado em seu lançamento por grandes autores como Thomas Mann e Albert Camus. O Túnel é uma jornada angustiante e intensa aos corredores da mente de um assassino, um pintor que se apaixona loucamente por uma mulher e termina por assassiná-la. Ou melhor, começa por assassiná-la, já que o crime é anunciado no primeiro parágrafo do livro.

Romances, já disse o próprio Sábato têm uma dinâmica específica e, por sua própria extensão, possuem altos e baixos, alternando momentos de brilho e comedimento. O Túnel não. É brilhante e intenso do começo ao fim. É um passeio angustiante por uma mente ensandecida. É calçar as sandálias do assassino e seguir cada pensamento torto e gesto desviado. Me carregou à beira das lágrimas da primeira à última página.

Seu segundo romance foi o não menos intenso e angustiante “Informe sobre Cegos”, posteriormente incluído como capítulo do monumental “Sobre Heróis e Tumbas”, terceiro romance, história do jovem Martín, filho de imigrantes nos subúrbios empobrecidos de Buenos Aires, e sua paixão pela misteriosa e insondável Alejandra, filha do louco Fernando Vidal Olmos, investigador e denunciador da conspiração dos cegos para dominar o mundo: a solidão de Martin, o desepero e o medo de Alejandra e os negros subterrâneos de Buenos Aires habitados pelos cegos.

Seu último romance foi “Abadón, el Exterminador”, que está na minha mesa de cabeceira, mas que, confesso, ainda não me capturou. Dia desses, tento de novo. O próprio Sábato é o personagem principal, num livro cheio de referências a seus outros livros e de figuras reais, com pitadas de misticismo e muita loucura, obviamente.

Além disso, Sábato tem vários livros de ensaios publicados, como “Homens e Engrenagens” e “O Escritor e seus Fantasmas”, onde reflete de maneira direta sobre as angústias e o desespero existencial que perpassam todos os seus romances.

Há também um interessante livro de diálogos entre Sábato e Jorge Luis Borges, publicado no Brasil pela Editora Globo. Os dois foram muito amigos e posteriomente romperam em função de divergências ideológicas – Sábato foi comunista e Borges, por seu lado, professava idéias anarquistas, que eram interpretadas pelos esquerdistas como fascismo disfarçado. Nada mais injusto, e o próprio Sábato lamenta em seus ensaios este rompimento que qualifica como “estupidez”.

O homem ainda está vivo, bem velhinho, mas abandonou a ficção há muito tempo. Pasmem, tornou-se um pintor reconhecido e também internacionalmente aclamado. Vejam se suas belíssimas pinturas não transmitem a mesma espécie de angústia e desespero.

Ele continua morando em sua casa no bairro de Santos Lugares, subúrbio de Buenos Aires, onde, nos finais de semana, mantém o costume de receber jovens interessados em sua obra para conversar. Quando voltar a Buenos Aires, seguramente tento encontrar o velhinho.

Não há dúvida de que o tema central de sua obra é precisamente a razão, ou melhor a dúvida sobre a razão. Todo o sentimento de seus livros é precisamente esse desespero existencial diante da impotência humana. Paixão pelo humano e terror diante da própria potência para o mal. Muita tristeza e muito ceticismo, mas uma inabalável e inexplicável esperança. E o mal, sempre o mal, especialmente o mal trazido pela fé inabalável na razão.

Meu querido Sábato, obrigado por um pouco de conforto.